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Estudo pretende demonstrar peso da ideologia nas eleições brasileiras
A razão do eleitor
FÁBIO WANDERLEY REIS
Este volume de André Singer, fruto de
tese de doutorado apresentada ao departamento de ciência política da Universidade de São Paulo em 1998, é um estudo
de natureza empírica, tendo seu cerne no
exame de dados coletados por institutos
como DataFolha e Ibope, por ocasião das
eleições presidenciais de 1989 e 1994. A
contribuição central que o livro pretende
trazer é bem simples e clara.
As pesquisas acadêmicas do processo
eleitoral até aqui desenvolvidas no Brasil
tendiam ou a deixar de lado a variável
correspondente ao contraste entre esquerda e direita ou a considerá-la em termos das posições adotadas pelos eleitores
quanto a questões como intervencionismo estatal, nacionalismo e outras normalmente associadas a ela. Já o estudo de
Singer usa dados sobre a maneira pela
qual os próprios eleitores se situam em
resposta a perguntas diretas sobre a sua
posição na escala que vai da esquerda à
direita. O resultado é que os dados mostram a existência de correlação entre a
autocolocação como esquerdistas ou direitistas, por parte das pessoas entrevistadas, e seu voto nas eleições mencionadas.
Assim, os votos em Lula tendem a concentrar-se entre os que se definem como
de esquerda, enquanto os votos em Collor e Fernando Henrique Cardoso se concentram entre os que se definem como de
direita ou de centro.
Eleição e ideologia
A grande indagação é o significado ou
alcance a atribuir a essa verificação. A leitura que faz o próprio Singer de seus dados vai na direção de destacar, como se
resume na orelha do livro, que "a ideologia está muito mais presente na decisão
eleitoral no Brasil do que é habitual imaginar". É admissível, por certo, a sugestão
de alguma "ideologização" crescente que
trazem outros aspectos dos dados, bem
como a intensificação da nitidez do confronto esquerda-direita como consequência da afirmação do PT no nível da
disputa presidencial e da introdução da
polarização própria do segundo turno.
Matéria recente da Folha (de 16/8)
mostrava também que a distribuição de
votos entre "esquerda" e "direita", tal como os eleitores revelam percebê-las em
pesquisas eleitorais, aproxima-se das
proporções de deputados federais pertencentes aos partidos percebidos como
situando-se em cada categoria. Contudo
serão indícios como esse suficientes, em
combinação com as constatações de Singer, para considerar "ideológico" o eleitorado brasileiro ou ver a presença forte
da ideologia no condicionamento da decisão eleitoral?
Em pesquisas anteriores que trataram
de utilizar a escala esquerda-direita, a razão para deixá-la de lado foi a constatação de que a enorme maioria dos eleitores brasileiros simplesmente não conhece o significado dessas categorias. Em
projeto que eu mesmo coordenei, por
exemplo, dados coletados em 1991/92
junto a uma amostra do eleitorado de Belo Horizonte e a trabalhadores paulistas e
mineiros mostram níveis de desconhecimento que alcançam 90% ou mais.
Diante da importância atribuída por
Singer à identificação com esquerda e direita, somos levados a pensar que seus
dados neguem ou corrijam, de alguma
forma, essa constatação. Ao contrário,
eles a corroboram: Singer nos informa
(com alguma demora: pág. 142), referindo-se a dados por ele utilizados, não só
que mais de 60% dos entrevistados declaram diretamente não saber o que as categorias significam ou dão respostas inteiramente equivocadas à pergunta correspondente, mas também que outros 20%
as assimilam a ser contra ou a favor do
governo, resposta igualmente errada que
ele, com leniência, decide tratar como
correta.
Ora, um pouco de sensibilidade metodológica desperta a atenção para um problema evidente. Trata-se da possibilidade
de que a correlação observada entre a decisão de voto e a opção por esquerda ou
direita (que não é lá tão intensa, com os
próprios dados de André Singer mostrando que a preferência ou identificação
partidária é muito mais importante para
o voto) não seja senão a combinação de
duas coisas: o fato de que a minoria que
sabe o significado das categorias e se
identifica com uma ou outra vota de
acordo com sua identificação, o que é banal; e o fato de que os eleitores entrevistados, que ignoram o significado das categorias e se colocam às cegas numa ou
noutra, têm uma chance razoável de estabelecer por acaso a correspondência
"correta" entre o voto e a autocolocação
na escala esquerda-direita.
Do ponto de vista da manipulação analítica a ser feita dos dados, daí resulta uma
recomendação: a de tratar de observar a
maneira como se comporta a correlação
em questão, quando se controla ou mantém constante o conhecimento do eleitor
sobre o significado de esquerda e direita.
Naturalmente, cabe esperar que, se separarmos os que sabem o que essas categorias significam daqueles que não o sabem, a correlação inicial do voto com a
identificação esquerda-direita se intensificará entre os que sabem, enquanto se
reduzirá ou eventualmente desaparecerá
entre os que não sabem.
Singer prescinde dessa operação simples, abrindo mão de assim esclarecer
melhor, no plano do processamento dos
próprios dados, o sentido da correlação
encontrada (apesar de que o livro contém, na seção 3.5, tabulações e análises
"trivariadas" ou tridimensionais a propósito de como se combinam o efeito da
"ideologia" e o do apoio ao Plano Real sobre o voto de 1994).
"Sentimento" ideológico
Mas a operação seria crucial, já que o
autor sustenta a posição sibilina segundo
a qual a correlação entre o voto e a "ideologia", tomada esta última em termos de
adesão à "esquerda" ou "direita" em circunstâncias em que a maior parte do eleitorado ignora o significado dessas categorias, indicaria a existência de um "sentimento" ideológico de natureza "intuitiva"... A clara implicação, não verificada e
de plausibilidade duvidosa, é que, se excluída a minoria informada, a correlação
não seria afetada de maneira relevante,
continuando a ocorrer distribuição significativamente diferente da que resultaria
da mera correspondência casual entre
voto e identificação "ideológica".
De acordo com Singer, sua interpretação enigmática teria respaldo em certa
perspectiva na literatura internacional relativamente recente sobre o comportamento eleitoral. Com efeito, encontra-se
nessa literatura a idéia do papel de "imagens" mais ou menos difusas dos partidos na decisão dos eleitores, além da velha idéia de Anthony Downs segundo a
qual a ideologia permite ao eleitor economizar na obtenção de informações (embora a idéia de Downs não remeta por
força à concepção do eleitor cognitivamente rústico e ignorante, mas antes à
daquele que se furta deliberadamente às
complicações e aos vaivéns das conjunturas mutáveis).
Contudo, apesar das posições confusas
de autores em que Singer encontra apoio
mais direto (como T. Levitin e W. Miller
em texto de 1979), os analistas mais sofisticados, como Giovanni Sartori, não deixam de apontar enfaticamente a conexão
dessas "imagens" com elementos intelectuais e o caráter de síntese cognitiva da
percepção de questões complexas que
elas podem adquirir.
Sartori é mal lido por Singer, que o invoca para assimilar (pág. 37) "identificação ideológica" com imagem e esta com a
idéia de um eleitorado "cognitivamente
pouco estruturado".
Na própria passagem de Sartori citada
por Singer a respeito, entretanto, a importância das imagens partidárias para o
voto aparece condicionada a que a política "se desenvolva", o eleitor adquira "capacidade de abstração" e o sistema partidário seja estruturado de modo efetivo
por partidos de massas.
Na verdade, a propósito da comparação das orientações partidário-eleitorais
na América do Norte e na Europa, Sartori
relaciona mesmo explicitamente a "capacidade" (note-se bem) de situar-se na escala esquerda-direita a "populações de
elite", tais como os estudantes universitários (e o eleitorado europeu em geral),
embora sustente que se pode atingir o
ponto em que o simbolismo emocional
das imagens ideológicas sobrepuje sua
função cognitiva (vejam-se, por exemplo,
as págs, 341 e 354, nota 55, de "Parties and
Party Systems").
Naturalmente, uma perspectiva análoga à de Sartori será indispensável se quisermos ser fiéis à complexidade da idéia
de ideologia que, além do componente
emocional ou de identificação e antagonismo, esteve sempre associada com certa visão doutrinária estruturada de modo
mais ou menos rico e sofisticado.
Sem falar de Marx e de coisas como o
condicionamento do acesso à "consciência de classe" por fatores intelectuais ligados à transformação das condições objetivas, ou da conhecida "estruturação
ideológica" de Philip Converse, seria possível lembrar, por exemplo, a cuidadosa
revisão do tema da ideologia realizada
por Robert Putnam muitos anos atrás
("Studying Elite Political Culture", 1971),
na qual o núcleo da noção de "política
ideológica" surge como remetendo ao
papel das idéias na política, enquanto o
"estilo ideológico" é caracterizado por
traços como a tendência a raciocinar politicamente em termos abstratos e teóricos e a referência a ideologias específicas
ou a utopias de algum grau de coerência.
Nessa ótica, a posição de Singer acaba por
sugerir o oxímoro de uma "ideologia
não-ideológica", paradoxo, aliás, utilizado quase nesses termos em avaliação do
trabalho de Levitin e Miller citada com
aprovação tácita por ele (pág. 35).
Seja como for, o componente cognitivo
da ideologia desaparece na perspectiva
de André Singer. Daí que o eleitor que sua
análise levaria a classificar como "ideológico" possa corresponder igualmente a
qualquer dos dois casos seguintes: em
primeiro lugar, o do eleitor sofisticado
que, ao decidir como votar, traz seus valores à avaliação de como problemas diversos da conjuntura se articulam com
um diagnóstico informado do próprio
sistema sociopolítico geral em que vive e
atua; em segundo lugar, o do eleitor tosco
que ouviu cantar o galo de "esquerda" e
"direita", teve sua simpatia por uma ou
outra despertada por motivos espúrios e
projeta sobre partidos ou candidatos os
traços que sua desinformação lhe dita como cabíveis.
Nesse segundo caso, "esquerda" e "direita" não têm sequer a consistência e o
interesse da contraposição singela entre
"ricos" e "pobres", que estudos anteriores há muito nos mostram em operação
no eleitorado popular brasileiro (que certamente "sabe" o que significa ser rico ou
ser pobre) e da qual continua a valer-se o
nosso velho populismo: haverá aí algo relevante para as verificações que Singer relata? Isso permite assinalar que o trabalho
de Singer furta-se inteiramente ao diálogo adequado com estudos brasileiros anteriores em que, como nos de minha própria autoria, são perseguidos os matizes
de identificações políticas diversas e estáveis que, justamente, "diferem" em sua
articulação com os fatores de maior ou
menor sofisticação intelectual e com a capacidade de apropriada compreensão de
questões políticas específicas ("issues")
de natureza variada.
O volume de André Singer traz contribuições interessantes em alguns aspectos, sobretudo com respeito às circunstâncias das eleições de 1989 e 1994. Em
seu ponto central, no entanto, ele redunda em erigir simplismos conceituais e
metodológicos em achado importante e
em convidar-nos a esquecer nuances do
jogo político-eleitoral brasileiro que há
tempos, com esforço, chegamos a
apreender.
Esquerda e Direita
no Eleitorado Brasileiro
André Singer
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4008)
204 págs., R$ 25,00
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor na Universidade Federal de Minas Gerais.
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