São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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Antologia reúne os melhores contos brasileiros do século 20
Quem conta um conto

WANDER MELO MIRANDA

Mário de Andrade, ao definir certa vez o conto como "um romance pra revista", ressaltou a um só tempo o poder de síntese que o gênero requer e a situação especial de leitura que institui. Diferente da atenção pontual mobilizada pelo espaço da revista, onde um conto pode fulgurar mais intensamente no seu efeito único, a atenção exigida por um livro de contos é proporcional à mudança continuada de expectativas -fatigante, para Mário- que a passagem de um texto a outro provoca. Num caso, a brevidade concorre para o impacto da leitura e, de certo modo, a facilita; no outro, não deixa de ser obstáculo para sua fluência.
O que dizer, então, do "esforço penoso" (para continuar com Mário) que livros dessa natureza demandariam, quando se tem diante de si uma antologia que reúne "os cem melhores contos brasileiros do século", mesmo se organizada com inteligência e sensibilidade? Qual a reação ou atitude do leitor ao se deparar com a variedade de relatos selecionados por Italo Moriconi e o número extenso de autores escolhidos, com o largo espectro temporal abrangido pela seleção e a promessa de balanço canônico que o título encerra?
Uma das alternativas talvez seja a de ler o livro com uma atenção distraída, detendo-se aqui e ali em um título mais sugestivo, um escritor mais conhecido ou não, entregue só ao prazer da descoberta de um tipo de escrita que Julio Cortázar chamou de "tremor de água dentro de um cristal". O leitor irá se defrontar, então, com boas surpresas e entenderá melhor a definição do escritor argentino quando encontrar, por exemplo, a obra-prima "Viagem aos Seios de Duília", de Aníbal Machado.
Preterido em outras antologias, a favor de textos mais conhecidos do autor, como "A Morte da Porta-Estandarte" ou "Tati a Garota", o conto escolhido traça os descaminhos da lembrança e do desejo de um funcionário aposentado que parte em busca do passado, mediante uma linguagem sutil em que a emoção, prestes a explodir a qualquer momento, revela-se tanto mais forte quanto mais contida na sua expansão.

Presença insinuante
A história narrada segue ecoando na memória após sua leitura ou releitura, como uma presença insinuante, a que outras boas surpresas, na força múltipla com que se expõem, vêm juntar-se e superpor-se. Formam-se, assim, percursos significantes distintos, vias inusitadas de sentido que o leitor trilha à sua maneira e dizem muito da escolha que vai fazendo e da atribuição de valores ao que é lido.
Nessa outra viagem que é a leitura, no que ela absorve do jogo de paixão e raciocínio que decide a qualidade de toda ficção curta, percebem-se, de forma emblemática, os critérios usados na organização da coletânea e o gosto literário que a especifica. Pode-se discordar de uma ou outra escolha, da ausência de um contista como Ricardo Ramos, da opção por alguns escritores que são na verdade cronistas ou por capítulos de romance inicialmente publicados sob a forma de contos. Mas não se pode deixar de reconhecer a originalidade da proposta.
Trata-se, na verdade, da perspectiva de uma certa geração, como Moriconi aponta na introdução do livro -"um olhar do final dos anos 90, pertencente a alguém cuja cabeça foi feita já depois dos anos 60". Por isso, é diferente de outras antologias exponenciais, com que dialoga e as quais suplementa: a de Graciliano Ramos, dividida de acordo com as regiões do país; a de Alfredo Bosi sobre o conto contemporâneo, realizada na década de 70; além dos 11 volumes do extenso "Panorama do Conto Brasileiro".
Por isso também o novo olhar retrospectivo privilegia obras posteriores aos anos 60, que ocupam quase dois terços das mais de 600 páginas do livro, enfatizando, pela primeira vez de modo sistemático, a produção mais recente. O critério não deixa de ser coerente com a escolha pela divisão cronológica por décadas e com a valorização da literatura do período privilegiado, que passa a ser visto, na sua exemplaridade, como a fase adulta ou o ponto alto do conto brasileiro, que teria atingido aí sua maturidade e identidade artística no âmbito da literatura nacional.

Instantes epifânicos
A proposta é sedutora, polêmica, contraditória. Apresenta um ângulo de visão instigante, em que textos recentes iluminam textos do passado, instituindo novas zonas de sentido, que vão desde a onipresença da violência urbana e da exclusão social -em Machado de Assis, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca - até a emergência de instantes epifânicos no cotidiano, de que Clarice Lispector continua a ser a mestra inconteste, passando pelo registro de sensibilidades femininas muito diferentes, como as de Júlia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles e Sonia Coutinho. Ou pelo erotismo que sublinha, de forma ora oblíqua, ora explícita, histórias tão diversas como as de João do Rio ou Caio Fernando Abreu, Mário de Andrade ou Márcia Denser.
Tudo isso a partir de uma elaboração cerrada da linguagem, espaço de travessia de timbres e dicções que abrangem preciosismos da belle époque, coloquialismos modernistas, pesquisas regionais e assonâncias contemporâneas. Níveis de experimentação, enfim, cujo auge é representado pelo grande ausente da coletânea, que nela não está por motivos alheios à vontade do organizador: Guimarães Rosa.
Desfeitas assim as fronteiras temporais pela leitura "distraída", sem abrir mão da historicidade própria a cada um dos contos, a sincronia da interpelação que efetuam acaba levantando mais dúvidas do que certezas a respeito do privilégio estético de uma época sobre outra, qualquer que ela seja, o que suporia um conceito excludente de literatura e uma concepção evolucionista e restritiva de sua constituição entre nós. Nesse sentido, a tarefa de apresentar uma "evolução do gênero ao longo do século", proposta pelo organizador e pelos editores, acaba desmentida pelo livro em si, não por causa da imperícia na organização, mas pela impossibilidade mesma de se garantir ou comprovar, em termos críticos razoavelmente persuasivos, essa evolução.
Porque, na verdade, a amostragem oferecida apresenta transformações e recorrências temáticas e de linguagem que propiciam observar linhas de tradição bem nítidas, que podem retomar conquistas do experimentalismo vanguardista dos anos 20 e do novo realismo dos anos 30 ou então propostas alternativas como o fantástico das obras de Murilo Rubião e José J. Veiga, nos anos 40 e 50.
Em outras palavras: o que a antologia permite ver, mediante o conjunto de seus textos e da comparação entre eles, é que cada grande autor cria, para lembrar Borges, seus precursores, esboçando uma linha de fuga à cronologia e a juízos de valor evolucionistas.

Classificação original
Mas o leitor pode preferir começar a leitura pelo começo, seguindo as etapas demarcadas por decênios, cujo título geral sintetiza o que vai ser lido e identifica os traços predominantes do período. Assim, de 1900 aos anos 30, aparecem as "Memórias de Ferro, Desejos de Tarlatana", aludindo a contos de Machado e João do Rio; nos anos 40-50, os "Modernos, Maduros, Líricos"; em 60, "Conflitos e Desenredos"; em 70, "Violência e Paixão"; nos anos 80, "Roteiros do Corpo" e, finalmente, a "antologia-dentro-da-antologia", que são os "Estranhos e Intrusos", dos anos 90.
A classificação, bastante original, foge aos padrões de coletâneas do gênero, pois não se prende a critérios acadêmicos, antes visa apontar caminhos para o leitor não especializado, chamando a atenção principalmente para as variadas formas que a imaginação e a vida social foram tomando entre nós por meio da literatura. É também um modo eficaz de ordenação da grande heterogeneidade temática do conto, da capacidade que ele tem de não se reduzir a uma fórmula, da intensidade e tensão com que nos faz experimentar situações inesperadas, das quais saímos vencidos -como queria Cortázar -quase sempre por nocaute.
Nesse caso, vale a pena ler com atenção redobrada o extraordinário texto de abertura -"Pai contra Mãe", de Machado de Assis- não só por sua qualidade, mas por conseguir sintetizar linhas de expressão que interagem no conto brasileiro e, em certo sentido, definem sua força e seus limites posteriores. A escolha desse relato pouco conhecido e em geral ausente de antologias, é um verdadeiro achado, que reafirma a argúcia do olhar contemporâneo de Moriconi. A narrativa se inicia com a descrição fria e minuciosa de aparelhos de ferro e máscaras de flandres, de uso comum em escravos fujões. Prossegue, com o ponto de vista distanciado do início, como uma fábula às avessas, cujo enredo resume-se a um momento especial da história de Cândido Neves e Clara -os nomes já dizem tudo da ironia que permeia a escrita.
Ele, de ofício em ofício, termina por ser caçador de escravos fugidos, tarefa a que se entrega com satisfação, por lhe permitir arcar, sem muito esforço, com as despesas da mulher. Até que esta engravida, os "negócios" vão mal e o casal se vê na expectativa de ter de abandonar o recém-nascido na "roda dos enjeitados", por sugestão da tia com quem moram. A opção difícil direciona o conto para um final feliz e terrível: Cândido Neves consegue prender uma escrava fugida, grávida, e entregá-la ao senhor, de quem recebe a recompensa que o salva de perder o filho, ao contrário da escrava, que acaba abortando. "Nem todas as crianças vingam", desculpam-se, ao final, personagem e narrador.

Outra voz
Para além das sugestões alegóricas do texto de Machado, vale destacar sua capacidade de transfigurar o fato bruto -em duplo sentido- pelo distanciamento crítico que amplia o horizonte da representação realista, abrindo espaço para uma outra voz que, persistente, se insinua como resistência às condições históricas da sua própria impossibilidade de enunciação. Afinal, o que a barbárie da situação retratada evidencia é que, de alguma "forma", as crianças conseguem "vingar-se". Realiza-se, assim, a situação de verdade do conto -"a estrutura de uma ficção onde o outro fala", no dizer de Ricardo Piglia.
Ao mostrar o que parece "quase impossível de dizer", o conto desprende-se da natureza de "fait-divers" ou de mera informação que irá comprometer a sustentação literária de muitas narrativas curtas, contemporâneas a Machado ou posteriores a ele. Essa prova de maturidade já estava evidente, portanto, desde os primórdios, digamos assim, da formação do gênero entre nós.
E nas melhores realizações do conto brasileiro, como a antologia de Italo Moriconi demonstra, essa lição está presente de alguma maneira, desdobrada em múltiplos significados que continuam ainda a emergir. Porque, segundo as palavras do poeta Murilo Mendes em epígrafe às "15 Cenas de Descobrimento de Brasis", de Fernando Bonassi, "ainda não estamos habituados com o mundo. Nascer é muito comprido".


Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais, autor de "Corpos Escritos" (Edusp) e organizador do volume "Narrativas da Modernidade" (Autêntica), entre outros.


Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
Italo Moriconi (Org.)
Objetiva (Tel. 0/xx/21/556-7824)
618 págs., R$ 49,90




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