|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Antologia reúne os melhores contos brasileiros do século 20
Quem conta um conto
WANDER MELO MIRANDA
Mário de Andrade, ao definir certa vez
o conto como "um romance pra revista",
ressaltou a um só tempo o poder de síntese que o gênero requer e a situação especial de leitura que institui. Diferente da
atenção pontual mobilizada pelo espaço
da revista, onde um conto pode fulgurar
mais intensamente no seu efeito único, a
atenção exigida por um livro de contos é
proporcional à mudança continuada de
expectativas -fatigante, para Mário-
que a passagem de um texto a outro provoca. Num caso, a brevidade concorre
para o impacto da leitura e, de certo modo, a facilita; no outro, não deixa de ser
obstáculo para sua fluência.
O que dizer, então, do "esforço penoso"
(para continuar com Mário) que livros
dessa natureza demandariam, quando se
tem diante de si uma antologia que reúne
"os cem melhores contos brasileiros do
século", mesmo se organizada com inteligência e sensibilidade? Qual a reação ou
atitude do leitor ao se deparar com a variedade de relatos selecionados por Italo
Moriconi e o número extenso de autores
escolhidos, com o largo espectro temporal abrangido pela seleção e a promessa
de balanço canônico que o título encerra?
Uma das alternativas talvez seja a de ler
o livro com uma atenção distraída, detendo-se aqui e ali em um título mais sugestivo, um escritor mais conhecido ou não,
entregue só ao prazer da descoberta de
um tipo de escrita que Julio Cortázar chamou de "tremor de água dentro de um
cristal". O leitor irá se defrontar, então,
com boas surpresas e entenderá melhor a
definição do escritor argentino quando
encontrar, por exemplo, a obra-prima
"Viagem aos Seios de Duília", de Aníbal
Machado.
Preterido em outras antologias, a favor
de textos mais conhecidos do autor, como "A Morte da Porta-Estandarte" ou
"Tati a Garota", o conto escolhido traça
os descaminhos da lembrança e do desejo de um funcionário aposentado que
parte em busca do passado, mediante
uma linguagem sutil em que a emoção,
prestes a explodir a qualquer momento,
revela-se tanto mais forte quanto mais
contida na sua expansão.
Presença insinuante
A história narrada segue ecoando na
memória após sua leitura ou releitura,
como uma presença insinuante, a que
outras boas surpresas, na força múltipla
com que se expõem, vêm juntar-se e superpor-se. Formam-se, assim, percursos
significantes distintos, vias inusitadas de
sentido que o leitor trilha à sua maneira e
dizem muito da escolha que vai fazendo e
da atribuição de valores ao que é lido.
Nessa outra viagem que é a leitura, no
que ela absorve do jogo de paixão e raciocínio que decide a qualidade de toda ficção curta, percebem-se, de forma emblemática, os critérios usados na organização da coletânea e o gosto literário que a
especifica. Pode-se discordar de uma ou
outra escolha, da ausência de um contista
como Ricardo Ramos, da opção por alguns escritores que são na verdade cronistas ou por capítulos de romance inicialmente publicados sob a forma de contos. Mas não se pode deixar de reconhecer a originalidade da proposta.
Trata-se, na verdade, da perspectiva de
uma certa geração, como Moriconi aponta na introdução do livro -"um olhar do
final dos anos 90, pertencente a alguém
cuja cabeça foi feita já depois dos anos
60". Por isso, é diferente de outras antologias exponenciais, com que dialoga e as
quais suplementa: a de Graciliano Ramos, dividida de acordo com as regiões
do país; a de Alfredo Bosi sobre o conto
contemporâneo, realizada na década de
70; além dos 11 volumes do extenso "Panorama do Conto Brasileiro".
Por isso também o novo olhar retrospectivo privilegia obras posteriores aos
anos 60, que ocupam quase dois terços
das mais de 600 páginas do livro, enfatizando, pela primeira vez de modo sistemático, a produção mais recente. O critério não deixa de ser coerente com a escolha pela divisão cronológica por décadas
e com a valorização da literatura do período privilegiado, que passa a ser visto,
na sua exemplaridade, como a fase adulta
ou o ponto alto do conto brasileiro, que
teria atingido aí sua maturidade e identidade artística no âmbito da literatura nacional.
Instantes epifânicos
A proposta é sedutora, polêmica, contraditória. Apresenta um ângulo de visão
instigante, em que textos recentes iluminam textos do passado, instituindo novas
zonas de sentido, que vão desde a onipresença da violência urbana e da exclusão
social -em Machado de Assis, Dalton
Trevisan e Rubem Fonseca - até a emergência de instantes epifânicos no cotidiano, de que Clarice Lispector continua a
ser a mestra inconteste, passando pelo registro de sensibilidades femininas muito
diferentes, como as de Júlia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles e Sonia
Coutinho. Ou pelo erotismo que sublinha, de forma ora oblíqua, ora explícita,
histórias tão diversas como as de João do
Rio ou Caio Fernando Abreu, Mário de
Andrade ou Márcia Denser.
Tudo isso a partir de uma elaboração
cerrada da linguagem, espaço de travessia de timbres e dicções que abrangem
preciosismos da belle époque, coloquialismos modernistas, pesquisas regionais
e assonâncias contemporâneas. Níveis de
experimentação, enfim, cujo auge é representado pelo grande ausente da coletânea, que nela não está por motivos
alheios à vontade do organizador: Guimarães Rosa.
Desfeitas assim as fronteiras temporais
pela leitura "distraída", sem abrir mão da
historicidade própria a cada um dos contos, a sincronia da interpelação que efetuam acaba levantando mais dúvidas do
que certezas a respeito do privilégio estético de uma época sobre outra, qualquer
que ela seja, o que suporia um conceito
excludente de literatura e uma concepção
evolucionista e restritiva de sua constituição entre nós. Nesse sentido, a tarefa de
apresentar uma "evolução do gênero ao
longo do século", proposta pelo organizador e pelos editores, acaba desmentida
pelo livro em si, não por causa da imperícia na organização, mas pela impossibilidade mesma de se garantir ou comprovar, em termos críticos razoavelmente
persuasivos, essa evolução.
Porque, na verdade, a amostragem oferecida apresenta transformações e recorrências temáticas e de linguagem que
propiciam observar linhas de tradição
bem nítidas, que podem retomar conquistas do experimentalismo vanguardista dos anos 20 e do novo realismo dos
anos 30 ou então propostas alternativas
como o fantástico das obras de Murilo
Rubião e José J. Veiga, nos anos 40 e 50.
Em outras palavras: o que a antologia
permite ver, mediante o conjunto de seus
textos e da comparação entre eles, é que
cada grande autor cria, para lembrar Borges, seus precursores, esboçando uma linha de fuga à cronologia e a juízos de valor evolucionistas.
Classificação original
Mas o leitor pode preferir começar a leitura pelo começo, seguindo as etapas demarcadas por decênios, cujo título geral
sintetiza o que vai ser lido e identifica os
traços predominantes do período. Assim,
de 1900 aos anos 30, aparecem as "Memórias de Ferro, Desejos de Tarlatana",
aludindo a contos de Machado e João do
Rio; nos anos 40-50, os "Modernos, Maduros, Líricos"; em 60, "Conflitos e Desenredos"; em 70, "Violência e Paixão"; nos
anos 80, "Roteiros do Corpo" e, finalmente, a "antologia-dentro-da-antologia", que são os "Estranhos e Intrusos",
dos anos 90.
A classificação, bastante original, foge
aos padrões de coletâneas do gênero, pois
não se prende a critérios acadêmicos, antes visa apontar caminhos para o leitor
não especializado, chamando a atenção
principalmente para as variadas formas
que a imaginação e a vida social foram tomando entre nós por meio da literatura.
É também um modo eficaz de ordenação
da grande heterogeneidade temática do
conto, da capacidade que ele tem de não
se reduzir a uma fórmula, da intensidade
e tensão com que nos faz experimentar
situações inesperadas, das quais saímos
vencidos -como queria Cortázar
-quase sempre por nocaute.
Nesse caso, vale a pena ler com atenção
redobrada o extraordinário texto de
abertura -"Pai contra Mãe", de Machado de Assis- não só por sua qualidade,
mas por conseguir sintetizar linhas de expressão que interagem no conto brasileiro e, em certo sentido, definem sua força
e seus limites posteriores. A escolha desse
relato pouco conhecido e em geral ausente de antologias, é um verdadeiro achado,
que reafirma a argúcia do olhar contemporâneo de Moriconi. A narrativa se inicia com a descrição fria e minuciosa de
aparelhos de ferro e máscaras de flandres,
de uso comum em escravos fujões. Prossegue, com o ponto de vista distanciado
do início, como uma fábula às avessas,
cujo enredo resume-se a um momento
especial da história de Cândido Neves e
Clara -os nomes já dizem tudo da ironia
que permeia a escrita. Ele, de ofício em ofício, termina por
ser caçador de escravos fugidos, tarefa a
que se entrega com satisfação, por lhe
permitir arcar, sem muito esforço, com
as despesas da mulher. Até que esta engravida, os "negócios" vão mal e o casal
se vê na expectativa de ter de abandonar
o recém-nascido na "roda dos enjeitados", por sugestão da tia com quem moram. A opção difícil direciona o conto
para um final feliz e terrível: Cândido Neves consegue prender uma escrava fugida, grávida, e entregá-la ao senhor, de
quem recebe a recompensa que o salva
de perder o filho, ao contrário da escrava,
que acaba abortando. "Nem todas as
crianças vingam", desculpam-se, ao final, personagem e narrador.
Outra voz
Para além das sugestões alegóricas do
texto de Machado, vale destacar sua capacidade de transfigurar o fato bruto
-em duplo sentido- pelo distanciamento crítico que amplia o horizonte da
representação realista, abrindo espaço
para uma outra voz que, persistente, se
insinua como resistência às condições
históricas da sua própria impossibilidade
de enunciação. Afinal, o que a barbárie da
situação retratada evidencia é que, de alguma "forma", as crianças conseguem
"vingar-se". Realiza-se, assim, a situação
de verdade do conto -"a estrutura de
uma ficção onde o outro fala", no dizer de
Ricardo Piglia.
Ao mostrar o que parece "quase impossível de dizer", o conto desprende-se da
natureza de "fait-divers" ou de mera informação que irá comprometer a sustentação literária de muitas narrativas curtas, contemporâneas a Machado ou posteriores a ele. Essa prova de maturidade já
estava evidente, portanto, desde os primórdios, digamos assim, da formação do
gênero entre nós.
E nas melhores realizações do conto
brasileiro, como a antologia de Italo Moriconi demonstra, essa lição está presente
de alguma maneira, desdobrada em múltiplos significados que continuam ainda a
emergir. Porque, segundo as palavras do
poeta Murilo Mendes em epígrafe às "15
Cenas de Descobrimento de Brasis", de
Fernando Bonassi, "ainda não estamos
habituados com o mundo. Nascer é muito comprido".
Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais,
autor de "Corpos Escritos" (Edusp) e organizador
do volume "Narrativas da Modernidade" (Autêntica), entre outros.
Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
Italo Moriconi (Org.)
Objetiva (Tel. 0/xx/21/556-7824)
618 págs., R$ 49,90
Texto Anterior: Georg Otte: O tambor do pícaro Próximo Texto: Luiz Tatit: Batida diferente Índice
|