São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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O tambor do pícaro

GEORG OTTE

Quando Hegel definiu o romance como "o conflito entre a poesia do coração e a prosa adversa da realidade", ele certamente tinha em mente a variante alemã desse gênero novo, o chamado "romance de formação" ("Bildungsroman"). Ao contrário do romance de cavalaria, cujo herói nunca erra o caminho e sempre sai vitorioso de suas aventuras, a "moderna epopéia burguesa" estaria marcada pelo "acaso das circunstâncias externas" (e "prosaicas"), que transformam o herói burguês num Dom Quixote da vida cotidiana. O protótipo desse novo gênero seria "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe.
00Marcus Mazzari retoma essa definição clássica para empreender sua leitura do "Tambor de Lata", romance que rendeu a Günter Grass o Prêmio Nobel do ano passado. Mazzari deu preferência a uma tradução mais fiel do título original da obra, "Die Blechtrommel" (cuja versão brasileira saiu como "O Tambor"), uma vez que reproduz melhor o caráter primitivo das ações do seu herói, aproximando-se assim a outro subgênero, o romance picaresco. Como Mazzari demonstra, o livro de Grass tem, além do "Wilhelm Meister", outro padrinho na literatura alemã: o "Simplicius Simplicissimus", do autor barroco Grimmelshausen.
00Ora, é possível reunir dois tipos de herói, tão contrários, numa única obra? A perspectiva rasteira do pícaro não seria muito mais adequada para um menino que, na idade de três anos, se recusa a crescer e usa um tambor de lata (e uma voz estridente) como arma contra o mundo dos "grandes"? Se uma das características do romance de formação é justamente a formação do indivíduo e sua integração na sociedade, pode-se inserir nela um livro cujo protagonista, Oskar Matzerath, começa sua longa retrospectiva com um "tudo bem, sou paciente de uma clínica de nervos ..."?
00A resposta realmente é negativa, mas a negação, como mostra Mazzari, está na própria tradição do romance de formação alemão: se o romântico Friedrich Schlegel considerava ainda o "Wilhelm Meister" como um acontecimento histórico da ordem da Revolução Francesa, para seu amigo Novalis, o romance pecava justamente pela falta de "poesia" e excesso de elementos "prosaicos", que, para o gosto clássico de Hegel, eram indispensáveis ao gênero. Seu "Heinrich von Ofterdingen" é uma figura medieval não apenas por se situar na Idade Média, mas pelo fato de ele, à maneira dos cavaleiros andantes, superar "poeticamente" todos os obstáculos que se opõem à sua busca da "flor azul".
00Estendendo sua "perspectiva histórica", Mazzari deixa claro que, para os "irmãos" de Wilhelm, os sonhos da emancipação iluminista se frustraram e que a reconciliação inerente à dialética hegeliana perdeu seu sentido na época da industrialização (atrasada) da Alemanha. No início do século 20, as chances de o indivíduo se "formar" são nulas: para Freud, os fatores decisivos para a "formação" do indivíduo tinham que ser detectados no plano do inconsciente e, para seu contemporâneo e conterrâneo Ernst Mach, o próprio conceito de indivíduo não passava de uma criação da metafísica ocidental, de uma "ficção provisória". Quem ainda duvidava desses pensadores foi logo desmentido pelos acontecimentos históricos: as matanças em escala industrial nas duas guerras mundiais e o Holocausto desmentiram qualquer esperança de considerar o indivíduo como um possível foco de resistência contra as forças deformadoras do mundo.
00"O Tambor de Lata" é uma verdadeira decepção para quem espera encontrar na história alemã do século 20 uma brecha que ofereça algum espaço para a formação do ser humano: seu anti-herói Oskar não apenas recusa sua integração no ambiente pequeno-burguês dos seus pais, mas sabota todas as manifestações coletivas que fazem parte desse ambiente e preparam a ascensão do nazismo. Passando pelos anos do Terceiro Reich, o romance de Grass abrange os anos 50, marcados pelo início do milagre econômico e o concomitante recalque do terror nazista.
00Como os filmes de estréia de Fassbinder, o primeiro livro de Grass, lançado em 1959, é uma espécie de radiografia que detecta os tumores de uma sociedade que "não sabia" o que estava acontecendo durante o nazismo porque não quis. O tambor de Oskar sempre ressoa nos momentos que denunciam a ascensão do fascismo. No entanto, por mais que atrapalhe as manifestações de propaganda nazista, Oskar não é nenhum herói de resistência -muito pelo contrário: ele deixa que sua peculiaridade física seja instrumentalizada pela companhia teatral que viaja pela Europa para divertir as tropas alemãs. Há aqui uma clara alusão a "Wilhelm Meister" e seu primeiro "estágio" de formação como membro de um elenco teatral.
00Marcus Mazzari fornece ao leitor brasileiro uma espécie de "Pequena História da Literatura Alemã", quando insere o livro de Grass na tradição do romance de formação, inserção esta procurada pelo próprio Grass. O título do livro, "Romance de Formação em Perspectiva Histórica", é ambíguo, pois a "perspectiva histórica" tanto pode ser relacionada com a evolução, isto é, a história do romance de formação, quanto com a tentativa de Grass de ligar a questão da deformação ao pano de fundo histórico, ou seja, de apresentar "O Tambor de Lata" como uma síntese entre romance de formação e romance histórico. Uma vez que o modelo goethiano não apresentou e, devido à fragmentação da Alemanha na época, nem pôde mostrar essa perspectiva histórica, o romance de Grass representa uma inovação do gênero. E é justamente a história que frustra as tentativas do indivíduo de se realizar.
00Valendo-se de uma dosagem bem equilibrada de informações históricas e teóricas, "Romance de Formação" mostra que seu autor tem consideração por um leitor que, à maneira de Wilhelm Meister, está disposto a passar por um verdadeiro aprendizado.



Romance de Formação em Perspectiva Histórica O Tambor de Lata de Günter Grass
Marcus Vinicius Mazzari
Ateliê Editorial (Tel. 0/xx/11/7922-9666)
203 págs., R$ 14,00.



Georg Otte é professor de literatura alemã e de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais.

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