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O tambor do pícaro
GEORG OTTE
Quando Hegel definiu o romance como "o conflito entre
a poesia do coração e a prosa adversa da realidade", ele certamente tinha em mente a variante alemã desse gênero novo, o chamado "romance de formação" ("Bildungsroman"). Ao contrário do romance de cavalaria, cujo herói
nunca erra o caminho e sempre sai vitorioso de suas aventuras, a "moderna epopéia burguesa" estaria marcada pelo
"acaso das circunstâncias externas" (e "prosaicas"), que
transformam o herói burguês num Dom Quixote da vida
cotidiana. O protótipo desse novo gênero seria "Os Anos de
Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe.
00Marcus Mazzari retoma essa definição clássica para empreender sua leitura do "Tambor de Lata", romance que
rendeu a Günter Grass o Prêmio Nobel do ano passado.
Mazzari deu preferência a uma tradução mais fiel do título
original da obra, "Die Blechtrommel" (cuja versão brasileira saiu como "O Tambor"), uma vez que reproduz melhor
o caráter primitivo das ações do seu herói, aproximando-se
assim a outro subgênero, o romance picaresco. Como Mazzari demonstra, o livro de Grass tem, além do "Wilhelm
Meister", outro padrinho na literatura alemã: o "Simplicius
Simplicissimus", do autor barroco Grimmelshausen.
00Ora, é possível reunir dois tipos de herói, tão contrários,
numa única obra? A perspectiva rasteira do pícaro não seria
muito mais adequada para um menino que, na idade de
três anos, se recusa a crescer e usa um tambor de lata (e uma
voz estridente) como arma contra o mundo dos "grandes"?
Se uma das características do romance de formação é justamente a formação do indivíduo e sua integração na sociedade, pode-se inserir nela um livro cujo protagonista, Oskar Matzerath, começa sua longa retrospectiva com um
"tudo bem, sou paciente de uma clínica de nervos ..."?
00A resposta realmente é negativa, mas a negação, como
mostra Mazzari, está na própria tradição do romance de
formação alemão: se o romântico Friedrich Schlegel considerava ainda o "Wilhelm Meister" como um acontecimento histórico da ordem da Revolução Francesa, para seu
amigo Novalis, o romance pecava justamente pela falta de
"poesia" e excesso de elementos "prosaicos", que, para o
gosto clássico de Hegel, eram indispensáveis ao gênero. Seu
"Heinrich von Ofterdingen" é uma figura medieval não
apenas por se situar na Idade Média, mas pelo fato de ele, à
maneira dos cavaleiros andantes, superar "poeticamente"
todos os obstáculos que se opõem à sua busca da "flor
azul".
00Estendendo sua "perspectiva histórica", Mazzari deixa
claro que, para os "irmãos" de Wilhelm, os sonhos da
emancipação iluminista se frustraram e que a reconciliação
inerente à dialética hegeliana perdeu seu sentido na época
da industrialização (atrasada) da Alemanha. No início do
século 20, as chances de o indivíduo se "formar" são nulas:
para Freud, os fatores decisivos para a "formação" do indivíduo tinham que ser detectados no plano do inconsciente
e, para seu contemporâneo e conterrâneo Ernst Mach, o
próprio conceito de indivíduo não passava de uma criação
da metafísica ocidental, de uma "ficção provisória". Quem
ainda duvidava desses pensadores foi logo desmentido pelos acontecimentos históricos: as matanças em escala industrial nas duas guerras mundiais e o Holocausto desmentiram qualquer esperança de considerar o indivíduo
como um possível foco de resistência contra as forças deformadoras do mundo.
00"O Tambor de Lata" é uma verdadeira decepção para
quem espera encontrar na história alemã do século 20 uma
brecha que ofereça algum espaço para a formação do ser
humano: seu anti-herói Oskar não apenas recusa sua integração no ambiente pequeno-burguês dos seus pais, mas
sabota todas as manifestações coletivas que fazem parte
desse ambiente e preparam a ascensão do nazismo. Passando pelos anos do Terceiro Reich, o romance de Grass
abrange os anos 50, marcados pelo início do milagre econômico e o concomitante recalque do terror nazista.
00Como os filmes de estréia de Fassbinder, o primeiro livro
de Grass, lançado em 1959, é uma espécie de radiografia
que detecta os tumores de uma sociedade que "não sabia" o
que estava acontecendo durante o nazismo porque não
quis. O tambor de Oskar sempre ressoa nos momentos que
denunciam a ascensão do fascismo. No entanto, por mais
que atrapalhe as manifestações de propaganda nazista, Oskar não é nenhum herói de resistência -muito pelo contrário: ele deixa que sua peculiaridade física seja instrumentalizada pela companhia teatral que viaja pela Europa para
divertir as tropas alemãs. Há aqui uma clara alusão a "Wilhelm Meister" e seu primeiro "estágio" de formação como
membro de um elenco teatral.
00Marcus Mazzari fornece ao leitor brasileiro uma espécie
de "Pequena História da Literatura Alemã", quando insere
o livro de Grass na tradição do romance de formação, inserção esta procurada pelo próprio Grass. O título do livro,
"Romance de Formação em Perspectiva Histórica", é ambíguo, pois a "perspectiva histórica" tanto pode ser relacionada com a evolução, isto é, a história do romance de formação, quanto com a tentativa de Grass de ligar a questão
da deformação ao pano de fundo histórico, ou seja, de apresentar "O Tambor de Lata" como uma síntese entre romance de formação e romance histórico. Uma vez que o modelo
goethiano não apresentou e, devido à fragmentação da Alemanha na época, nem pôde mostrar essa perspectiva histórica, o romance de Grass representa uma inovação do gênero. E é justamente a história que frustra as tentativas do indivíduo de se realizar.
00Valendo-se de uma dosagem bem equilibrada de informações históricas e teóricas, "Romance de Formação"
mostra que seu autor tem consideração por um leitor que, à
maneira de Wilhelm Meister, está disposto a passar por um
verdadeiro aprendizado.
Romance de Formação em Perspectiva Histórica
O Tambor de Lata de Günter Grass
Marcus Vinicius Mazzari
Ateliê Editorial (Tel. 0/xx/11/7922-9666)
203 págs., R$ 14,00.
Georg Otte é professor de literatura alemã e de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais.
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