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A ética de um perverso
ELIANE ROBERT MORAES
Em 1921, quando começava a escrever suas memórias, André Gide
ouviu de Proust uma advertência: "Você pode contar o que quiser, mas
na condição de jamais dizer: Eu". Apesar disso, ele recusou o conselho,
insistindo no testemunho em primeira pessoa, mesmo nas passagensque exigiam maior prudência. Tal procedimento seria marcante na literatura homossexual do século 20: a reivindicação de uma voz própria, atravessada pela biografia do autor, cujas ressonâncias se percebem nas obras de Cocteau e de Genet, entre outros. Não por acaso, a
voz de Gide foi decisiva na consolidação de uma das linhas de força da
literatura moderna, a que consiste justamente em dar palavra ao interdito.
A distância geográfica não impediu que Kaváfis se alinhasse a essa
tradição, da qual pode ser considerado um precursor. Vivendo na longínqua Alexandria, ele concebeu uma poética de tom confessional,
marcada pela temática dos "amores ilícitos", que o aproxima dos escritores homossexuais europeus da época. Contudo, um olhar mais atento para sua obra limita a extensão dessa afinidade, como podemos verificar nessas "Reflexões". Vejamos por quê.
Eros homossexual
A construção moderna da figura do homossexual, tal como aparece
no imaginário literário deste século, tende a se fixar no sujeito excluído
que, confinado à identidade sexual, se abandona à particularidade do
seu desejo. Distinto do pederasta antigo ou do sodomita da libertinagem setecentista, ele insiste na afirmação de uma diferença que, tornada a medida soberana de suas relações com o mundo, ecoa até os confins da desmedida. É nesse ponto que o poeta alexandrino se distingue
de seus contemporâneos: a certeza do caráter excessivo, e portanto fora
de controle, do eros homossexual, circunscreve para Kaváfis não uma
conclusão, mas um vasto campo de interrogações. Isso pode explicar o
tom reservado de sua poética dedicada aos "prazeres ilegais".
A reserva é um dos traços distintivos da lírica kaváfiana. Nela, como
observa Marguerite Yourcenar, "a emoção é voluntariamente afastada;
e a ironia, quando existe, suavizada com requinte, mata sem que se sinta a ferida". Nem mesmo a volúpia sensual escapa ao tratamento despojado: ainda que celebre o "amor dos sensuais extremados", Kaváfis
jamais se rende ao excesso. Tal controle tende a ser interpretado ora como um recurso para camuflar sua homossexualidade, ora como resultado do viés rememorativo de sua poesia, na qual a experiência erótica
é sempre evocada "a posteriori". Mas essa reserva também traduz uma
forte preocupação moral.
Nesse sentido, as anotações pessoais que compõem as "Reflexões"
são exemplares. Escritas entre 1902 e 1911, elas sintetizam o singular
empenho do autor em buscar uma dimensão ética que leve em conta a
posição oblíqua do perverso. Sua visada, portanto, não se esgota na
consciência da transgressão, nem se concentra numa atitude reivindicativa; ao contrário, ela presume um campo de valores no qual se possa
considerar a experiência humana da homossexualidade: "Não sei se a
perversão dá força. Às vezes acho que sim. Mas não há dúvida de que é
fonte de grandeza".
Uma ética individual
Se a idéia de grandeza supõe uma qualificação ética, seria equivocado
ver aí um apego a valores abstratos que, alheios às particularidades, impedem o reconhecimento das fraquezas humanas. "Tudo o que é grande acontece longe da praça pública" -esclarece um verso do poeta, sugerindo que a grandeza é um valor de foro íntimo. Com efeito, José
Paulo Paes lembra que Kaváfis se fez herdeiro de uma tradição do pensamento grego, cuja origem coincide com o declínio da "polis" democrática, na qual a preocupação em preparar o cidadão para a vida cívica
foi substituída pelo cuidado de seu desenvolvimento interior. Nessa
ética individual, que se consolida na Grécia do período alexandrino, o
poeta encontrava uma equivalência para suas inquietações.
É nessa chave que devemos ler uma das mais agudas notas do livro,
indagando a validade do termo "perverso". De um lado, o indivíduo
que se atormenta com suas perversões não pode ser identificado como
tal, pois ele "desgosta de suas próprias ações & elas não mais lhe pertencem". De outro, quem se compraz inconscientemente na perversidade também "não é um perverso de fato, já que não é responsável por
isso". Ora, o que Kaváfis coloca sob suspeita é a legitimidade de um
diagnóstico que aliena o sujeito de seus próprios atos, eximindo-o de
qualquer responsabilidade. Sendo impossível nomear o homossexual
fora desse discurso, cabe ao poeta denunciar a ineficácia das palavras.
"Quer dizer então que não existe a perversidade?" -pergunta ele, insinuando a necessidade de uma ética da linguagem. Porém, ainda que
suas reflexões sobre poesia desemboquem com frequência no juízo do
senso comum, seu olhar crítico rejeita qualquer pretensão de superioridade. José Paulo Paes -que, como nenhum outro entre nós, soube reconhecer as dimensões mais graves dos textos eróticos, normalmente
ofuscadas por seu teor escandaloso- chama a atenção para a recusa
do poeta em se colocar acima do bem e do mal, como fazia o imoralista
gideano. Na apresentação aos "Poemas" do autor, ele observa que a lírica de Kaváfis nunca se elevou sobre suas preocupações morais, em
sintonia com a tradição helênica que "desde os tempos homéricos, empregava uma mesma palavra, "tò kalón", para designar simultaneamente a beleza e a virtude".
Marcada pela nostalgia desse passado, a obra do poeta alexandrino
traduz um impasse. Se, de um lado, ele afirma seguir o exemplo dos antigos -cujos textos eram "inspirados em suas paixões amorosas"-,
de outro, lamenta não poder escrever na língua de seus contemporâneos franceses, "que discutem corajosamente os aspectos desse amor
menosprezado há séculos".
Tal como um espelho de dupla face, os distintos modelos do passado
e do presente desafiam o eu poético de Kaváfis a se reconhecer ora no
pederasta antigo, ora no homossexual da modernidade. Na tensão desse impasse, entre o hedonismo responsável de um e a transgressão escandalosa do outro, o poeta mantém viva uma interrogação de fundo
ético que, pelo simples fato de ser enunciada na época em que ele o faz,
marca a singularidade de sua voz.
Reflexões Sobre Poesia e Ética
Konstantinos Kaváfis
Tradução: José Paulo Paes
Ática (tel. 0/xx/11/3346-3000)
80 págs., R$ 12,90
Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, entre outros livros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).
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