São Paulo, Sábado, 09 de Outubro de 1999
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A ética de um perverso

ELIANE ROBERT MORAES

Em 1921, quando começava a escrever suas memórias, André Gide ouviu de Proust uma advertência: "Você pode contar o que quiser, mas na condição de jamais dizer: Eu". Apesar disso, ele recusou o conselho, insistindo no testemunho em primeira pessoa, mesmo nas passagensque exigiam maior prudência. Tal procedimento seria marcante na literatura homossexual do século 20: a reivindicação de uma voz própria, atravessada pela biografia do autor, cujas ressonâncias se percebem nas obras de Cocteau e de Genet, entre outros. Não por acaso, a voz de Gide foi decisiva na consolidação de uma das linhas de força da literatura moderna, a que consiste justamente em dar palavra ao interdito.
A distância geográfica não impediu que Kaváfis se alinhasse a essa tradição, da qual pode ser considerado um precursor. Vivendo na longínqua Alexandria, ele concebeu uma poética de tom confessional, marcada pela temática dos "amores ilícitos", que o aproxima dos escritores homossexuais europeus da época. Contudo, um olhar mais atento para sua obra limita a extensão dessa afinidade, como podemos verificar nessas "Reflexões". Vejamos por quê.

Eros homossexual
A construção moderna da figura do homossexual, tal como aparece no imaginário literário deste século, tende a se fixar no sujeito excluído que, confinado à identidade sexual, se abandona à particularidade do seu desejo. Distinto do pederasta antigo ou do sodomita da libertinagem setecentista, ele insiste na afirmação de uma diferença que, tornada a medida soberana de suas relações com o mundo, ecoa até os confins da desmedida. É nesse ponto que o poeta alexandrino se distingue de seus contemporâneos: a certeza do caráter excessivo, e portanto fora de controle, do eros homossexual, circunscreve para Kaváfis não uma conclusão, mas um vasto campo de interrogações. Isso pode explicar o tom reservado de sua poética dedicada aos "prazeres ilegais".
A reserva é um dos traços distintivos da lírica kaváfiana. Nela, como observa Marguerite Yourcenar, "a emoção é voluntariamente afastada; e a ironia, quando existe, suavizada com requinte, mata sem que se sinta a ferida". Nem mesmo a volúpia sensual escapa ao tratamento despojado: ainda que celebre o "amor dos sensuais extremados", Kaváfis jamais se rende ao excesso. Tal controle tende a ser interpretado ora como um recurso para camuflar sua homossexualidade, ora como resultado do viés rememorativo de sua poesia, na qual a experiência erótica é sempre evocada "a posteriori". Mas essa reserva também traduz uma forte preocupação moral.
Nesse sentido, as anotações pessoais que compõem as "Reflexões" são exemplares. Escritas entre 1902 e 1911, elas sintetizam o singular empenho do autor em buscar uma dimensão ética que leve em conta a posição oblíqua do perverso. Sua visada, portanto, não se esgota na consciência da transgressão, nem se concentra numa atitude reivindicativa; ao contrário, ela presume um campo de valores no qual se possa considerar a experiência humana da homossexualidade: "Não sei se a perversão dá força. Às vezes acho que sim. Mas não há dúvida de que é fonte de grandeza".

Uma ética individual
Se a idéia de grandeza supõe uma qualificação ética, seria equivocado ver aí um apego a valores abstratos que, alheios às particularidades, impedem o reconhecimento das fraquezas humanas. "Tudo o que é grande acontece longe da praça pública" -esclarece um verso do poeta, sugerindo que a grandeza é um valor de foro íntimo. Com efeito, José Paulo Paes lembra que Kaváfis se fez herdeiro de uma tradição do pensamento grego, cuja origem coincide com o declínio da "polis" democrática, na qual a preocupação em preparar o cidadão para a vida cívica foi substituída pelo cuidado de seu desenvolvimento interior. Nessa ética individual, que se consolida na Grécia do período alexandrino, o poeta encontrava uma equivalência para suas inquietações.
É nessa chave que devemos ler uma das mais agudas notas do livro, indagando a validade do termo "perverso". De um lado, o indivíduo que se atormenta com suas perversões não pode ser identificado como tal, pois ele "desgosta de suas próprias ações & elas não mais lhe pertencem". De outro, quem se compraz inconscientemente na perversidade também "não é um perverso de fato, já que não é responsável por isso". Ora, o que Kaváfis coloca sob suspeita é a legitimidade de um diagnóstico que aliena o sujeito de seus próprios atos, eximindo-o de qualquer responsabilidade. Sendo impossível nomear o homossexual fora desse discurso, cabe ao poeta denunciar a ineficácia das palavras.
"Quer dizer então que não existe a perversidade?" -pergunta ele, insinuando a necessidade de uma ética da linguagem. Porém, ainda que suas reflexões sobre poesia desemboquem com frequência no juízo do senso comum, seu olhar crítico rejeita qualquer pretensão de superioridade. José Paulo Paes -que, como nenhum outro entre nós, soube reconhecer as dimensões mais graves dos textos eróticos, normalmente ofuscadas por seu teor escandaloso- chama a atenção para a recusa do poeta em se colocar acima do bem e do mal, como fazia o imoralista gideano. Na apresentação aos "Poemas" do autor, ele observa que a lírica de Kaváfis nunca se elevou sobre suas preocupações morais, em sintonia com a tradição helênica que "desde os tempos homéricos, empregava uma mesma palavra, "tò kalón", para designar simultaneamente a beleza e a virtude".
Marcada pela nostalgia desse passado, a obra do poeta alexandrino traduz um impasse. Se, de um lado, ele afirma seguir o exemplo dos antigos -cujos textos eram "inspirados em suas paixões amorosas"-, de outro, lamenta não poder escrever na língua de seus contemporâneos franceses, "que discutem corajosamente os aspectos desse amor menosprezado há séculos".
Tal como um espelho de dupla face, os distintos modelos do passado e do presente desafiam o eu poético de Kaváfis a se reconhecer ora no pederasta antigo, ora no homossexual da modernidade. Na tensão desse impasse, entre o hedonismo responsável de um e a transgressão escandalosa do outro, o poeta mantém viva uma interrogação de fundo ético que, pelo simples fato de ser enunciada na época em que ele o faz, marca a singularidade de sua voz.



Reflexões Sobre Poesia e Ética Konstantinos Kaváfis Tradução: José Paulo Paes Ática (tel. 0/xx/11/3346-3000) 80 págs., R$ 12,90


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, entre outros livros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).

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