São Paulo, Sábado, 09 de Outubro de 1999
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Clássico do romance francês do século 18 em saborosa tradução de Bocage
A lucidez do pícaro

FRANKLIN DE MATOS

No famoso catálogo de escritores franceses do século de Luís 14, Voltaire não poupou Lesage. Com a secura habitual, sobre ele escreveu: "Nascido em 1677. Seu romance "Gil Blas" permaneceu porque tem algo de natural; é inteiramente tomado do romance espanhol intitulado "A Vida do Escudeiro dom Marcos de Obregón". Morto em 1747" (1).
Essa não foi a primeira nem a última vez no século 18 que se fez esse tipo de imputação a Lesage. Em 1787-88, o padre José Francisco de Isla y Royo, convencido de que "Gil Blas" não passava da versão de um texto espanhol que se perdera, resolveu devolvê-lo à Espanha e publicou uma tradução cujo título é tão saboroso que merece ser citado na íntegra e em sua língua original: "Aventuras de Gil Blas de Santillana, Robadas a España y Adaptadas en Francia por Lesage, Restituídas a su Patria y su Lengua por un Español Celoso que no Sufre se Burlan de sua Nación". Para má sorte de Lesage, parece que a tradução era tão boa que só tornou plausível a acusação de furto.

O terceiro Dom Quixote
A desconfiança do zeloso padre talvez procedesse das traduções livres que Lesage fizera de vários romances picarescos espanhóis. Em 1732, por exemplo, retomara o "Guzmán de Alfarache", de Mateo Alemán, e em 1707 adaptara "O Diabo Coxo", de Vélez de Guevara, que em suas mãos se tornou um dos três ou quatro maiores êxitos editoriais do século (essa paixão pela figura do "pícaro" ainda o levaria a escrever a "História de Estebanillo González" e "O Bacharel de Salamanca").
Aliás, Lesage conhecia bem o gênero de disputa que lhe moveria o padre Francisco de Isla, pois estreara como romancista, intrometendo-se numa das maiores falsificações da história da literatura. Em 1605, Cervantes publicou a primeira parte de "Dom Quixote" e, mais tarde, em 1616, a segunda. Em 1614, porém, assinada por Alonzo Fernández de Avellaneda, saiu uma pretensa continuação das aventuras do cavaleiro manchego.
Cervantes (que, por sinal, apresentava-se como mero "tradutor" do cronista Cide Hamete Benengeli) integrou o episódio em seu segundo tomo, perseguindo e denunciando com verve inesgotável o "Dom Quixote" apócrifo (por sua vez, supostamente traduzido dos originais do historiador Alisolán). O anel seguinte dessa cadeia de tradutores coube a Lesage que, em 1704, publicou uma adaptação do romance de Avellaneda -as "Novas Aventuras do Admirável Dom Quixote de la Mancha"-, integrando ao texto, à maneira de Cervantes, a disputa dos "historiadores", mas tomando comicamente o partido do usurpador. "Querendo fazer-me passar por louco, Benengeli não devia fazer-me falar como sábio", dirá este terceiro Dom Quixote. (Não custa lembrar que "Gil Blas" contém várias referências respeitosas a Cervantes, o que mostra que Lesage sabia muito bem quem era quem nessa história.)

Realismo e moralidade
De qualquer modo, "Gil Blas" não pertence ao gênero da tradução livre. Suas fontes são múltiplas: não apenas o "Marcos Obregón", de Vicente Espinel, mas também vários outros romances picarescos, "As Mil e Uma Noites" (Lesage escreveu "Os Mil e Um Dias"...) e ainda memórias políticas e panfletos sobre os reinados de Felipe 3º e Felipe 4º. Hoje é outra sua fortuna crítica, pois todos estamos de acordo que o romance é um dos maiores do tempo. E mais: sua superfície é espanhola, porém o fundo é francês.
No início do século 18, o romance ainda era um gênero menor, que mal comprara a briga pelo reconhecimento dos críticos e leitores. Para impor-se, acabará por seguir dois rumos -o realismo e a moralidade-, nem sempre compatíveis e que muitas vezes seriam para ele um "dilema", segundo o termo de Georges May (2). Acusados de "inverossimilhança", os romancistas apostam no "realismo"; entretanto, porque realistas, são chamados de "imorais" e, por isso, vêem-se obrigados a homenagear a virtude em prefácios retóricos e desenlaces forçados.
Quanto ao realismo, pode-se dizer que as conquistas do romance não foram poucas: a cena histórica ou geográfica aproxima-se do lugar e da época do leitor e, em consequência, o romance é obrigado a usar novos métodos narrativos, próprios da crônica histórica ou das memórias, que tendem a desviá-lo do imaginário; a isso se acrescente que os protagonistas escolhidos pelo romancista são pessoas de baixo nascimento e moral corrompida (segundo May, esta ligação entre realismo social e moral não é lógica ou psicológica, mas estética e literária, consistindo numa recusa do romance precioso, que excluía tanto as personagens de condição medíocre quanto as de baixa moral).
Em geral, Lesage obtém tudo isso tomando um atalho aberto há mais de século: o romance picaresco. O pícaro é um indivíduo de origem miserável, filho de mãe viúva e pai desconhecido, desaparecido ou executado pela justiça. Desde cedo, mergulha na dura realidade da sobrevivência -trabalha como criado para muitos senhores e conhece assim várias camadas da sociedade. Graças unicamente a seu mérito pessoal -se assim se podem chamar não apenas a inteligência, mas igualmente a falta de escrúpulos do pícaro-, acaba por subir na vida e, ao fim dessa carreira atribulada, decide relatar sua trajetória, convidando o leitor a apreciar a enorme distância entre o presente e o passado.

O ritmo da alternância
Lesage apodera-se notoriamente desse esquema em "Gil Blas". De seu retiro de homem bem-casado, o velho Gil Blas de Santillana, pai de dois filhos e dono de considerável fortuna, põe-se a escrever suas memórias. Filho de um escudeiro e uma aia, Gil Blas é educado pelo tio cônego, que um dia dá-lhe sua mula, uma pequena soma e despacha-o para a Universidade de Salamanca. Mal o herói deixa Oviedo e ganha a estrada, uma sucessão de imprevistos dá outro rumo a sua vida.
Primeiro, um almocreve rouba-lhe a bolsa e a montaria; em seguida, um bando de ladrões o faz prisioneiro. Para poder safar-se, finge converter-se à vida de bandido, cai nas graças do chefe da companhia e um dia consegue evadir-se, levando consigo uma dama de condição, sua companheira de cativeiro. Injustamente acusado, é jogado na prisão em Astorga, mas um feliz acaso faz valer sua inocência. Parte para Burgos, onde é largamente recompensado pela senhora que libertara. A caminho de Madri, detém-se em Valadolid e perde tudo o que ganhara ao deixar-se lograr por um casal de aventureiros. Encontra Fabrício, seu compatriota, que o convence a servir: torna-se assim criado de um cônego, em seguida de um médico, do qual logo passa a ajudante e substituto. Manda desta para melhor vários pacientes e um dia abandona a profissão, seguindo para Madri. Serve um petimetre, frequenta os comediantes, torna-se amante de uma atriz. Passa por diferentes amos, até que uma sucessão de aventuras extraordinárias o leva a Valência, onde se torna intendente do fidalgo Afonso de Leiva.
Após várias peripécias em Granada, volta a Madri e acaba secretário do Duque de Lerma, ministro de Felipe 3º. Com o auxílio do criado Cipião, Gil Blas põe-se a vender influência e, desse modo, enriquece no cargo. Mas cai em desgraça e é encerrado na torre de Segóvia. Esta experiência o transforma por completo. Posto em liberdade, resolve renunciar ao mundo e parte para Liria com o fiel Cipião, a fim de acabar seus dias na quinta que recebera dos Leiva.
Entretanto, a morte de sua primeira esposa e a coroação de Felipe 4º, a quem prestara vários serviços outrora, levam-no de volta à corte. Desta feita, torna-se secretário do Conde de Olivares, todo-poderoso ministro do novo soberano, que afinal lhe dá por recompensa o foro de nobreza. Mas Gil Blas já não se desvanece com a distinção e procura redimir-se dos erros passados exercendo seu cargo com probidade e benevolência. A queda do Conde o leva de volta a Liria, onde se casa em segundas núpcias com uma fidalga, pronto enfim a levar a vida suave e pacífica que há muito desejava.
Como se vê, Lesage dá ao romance o ritmo da alternância (3), próprio da aventura picaresca: recorre com abundância aos lances teatrais e leva o herói a passar sucessivamente da boa para a má fortuna. O esquema, já se fez o reparo, é sempre o mesmo: Gil Blas cai nas graças de algum senhor, que o aceita como criado e passa até a tratá-lo como confidente; de uma hora para outra, devido a um imprevisto, perde o emprego e então é obrigado a recomeçar do zero.

A alma de Gil Blas
Entretanto, também se vê que Lesage guarda suas distâncias em relação ao modelo picaresco, que se aprofundam à medida que "Gil Blas" é escrito (os seis primeiros volumes saíram em 1715, os três seguintes em 1724 e os demais em 1735) e um desígnio de fundo moral vai se impondo. Antes de mais nada, é de se notar que Gil Blas não tem as origens do pícaro completamente despossuído (típicos nesse sentido são Rafael, filho da comediante Lucinda, e Cipião, da cigana Coscolina, ambos protagonistas de duas histórias inseridas no romance). Além disso, do sexto livro em diante, o ritmo da alternância se torna menos vertiginoso e o romance troca de cenário: deixa a estrada, com seus salteadores, estalagens e encontros casuais, e ganha a corte, mergulhando nas intrigas palacianas e tornando-se crônica política (como se sabe, por intermédio da história espanhola do século 17, Lesage acerta nos ministérios da Regência francesa).
Mais decisivo, porém, é que cada situação gerada pelas reviravoltas da fortuna representa uma etapa da trajetória de Gil Blas. O herói perde suas ilusões de mocidade, torna-se por isso inescrupuloso e cínico, mas consegue emendar-se e alcança afinal a sabedoria, que lembra um pouco a idéia voltairiana de "cultivar seu jardim" (3). Se, no romance picaresco, a ascensão social do protagonista é feita por intermédio de sua degradação moral, em "Gil Blas", apesar das idas e vindas, o êxito social acaba coincidindo com o aperfeiçoamento moral do herói.
Desse modo, mesmo sem maiores prejuízos ao realismo -afinal, Gil Blas não é nenhum modelo inalcançável de virtude-, o romance ruma decididamente para a empreitada moral, satisfazendo, aliás, a expectativa criada por seu prólogo, no qual se conta uma parábola.
Dois estudantes seguiam para Salamanca e detiveram-se ao pé de uma fonte. Após matar a sede, repararam que sobre uma pedra, à superfície da terra, havia uma inscrição já gasta pelo tempo. Dizia: "Aqui jaz encerrada a alma do Licenciado Pedro Garcia". O mais moço, ardente e estouvado, riu-se muito do epitáfio, achou-o "tolo" e "ridículo", e logo retomou a estrada. O outro, mais avisado, pensou: aqui há mistério, e ficou para averiguar. Começou a cavar com uma faca em torno da pedra e acabou achando uma bolsa de couro, com cem ducados e outra inscrição, que o fazia herdeiro da quantia. "Leitor, quem quer que fores", termina o prólogo, "tu hás de parecer-te com algum destes dois estudantes. Se leres os meus sucessos sem tomares sentido nas instruções morais que contêm, não tirarás proveito desta obra; mas, se a leres com atenção, acharás nela, segundo o preceito de Horácio, o útil misturado com o agradável." Apesar do lugar-comum, esta advertência não é apenas retórica e seu significado é patente. Do romance de Lesage pode-se dizer que traz encerrado um tesouro mais precioso que a bolsa do Licenciado Garcia: a alma de Gil Blas.
Assim, "Gil Blas de Santillana" antecipa e resolve à sua maneira a questão das complicadas relações entre o pícaro e a Ilustração. Como se sabe, durante o século 18, repetidas vezes a filosofia viria a apropriar-se do romance picaresco: para ficar nos exemplos mais célebres, não custa citar o "Cândido", de Voltaire (1758) e "Jacques o Fatalista", de Diderot (1778). As razões dessa parceria certamente são muitas. Jean-Marie Goulemot (5) enfatiza duas: o pícaro é cínico, desonesto e ávido -e assim, como o sobrinho de Rameau, representa uma espécie de alteridade para o filósofo; mas é igualmente lúcido e realista -implacável com a aristocracia e a igreja-, e por isso torna-se aliado das Luzes, assemelhando-se ao herói do conto filosófico, este estrangeiro cujo olhar desmistifica a familiaridade do mundo.
"Gil Blas" ainda não tem o realismo nem tampouco a unidade que o romance conheceria no futuro. Como já se observou, em geral Lesage abusa do "feliz acaso" (embora vez por outra faça até uso paródico do procedimento); de mais a mais, podia ter unidade irretocável uma obra escrita e publicada por etapas, durante 20 longos anos? No entanto, continua sendo uma leitura muito divertida e um dos grandes testemunhos da paciente afinação do romance, que logo se tornaria um inigualável instrumento para pintar a história de um destino individual e o vasto quadro da vida social.
Quero voltar ao tema da cadeia de tradutores e dizer que o texto de Bocage é um capítulo à parte nesta edição: embora fiel ao original, é ao mesmo tempo deliciosamente lusitano. Bocage, que se julgava o sucessor de Camões, era, como se diz, uma figura. Para esquecer uma paixão contrariada, alistou-se na marinha e partiu mocinho para Goa. A caminho, deteve-se no Rio de Janeiro, onde entregou-se às mulheres e à comida farta. Ao chegar às Indias, foi promovido a tenente, mas logo desertou, enredado em novos amores. De volta a Lisboa, achou a mulher que amava casada com o irmão. Este novo desgosto mergulhou-o na vida de botequim, até ser preso e condenado a receber doutrina dos oratorianos. Depois, começou a viver de traduções; morreu na maior miséria. Em suma, teve uma vida típica de aventureiro do século 18 e bem podia ter sido herói de alguma história secundária de "Gil Blas".



História de Gil Blas de Santillana Alain-René Lesage Tradução: Manuel Maria Barbosa du Bocage Mercado Aberto (tel. 0/xx/51/337-4905) 808 págs., R$ 48,00



Notas.
(1) Voltaire - "Le Siècle de Louis 14", Paris, Garnier-Flammarion, 1966, Tomo 2, pág. 250.
(2) Ver May, George - "Le Dilèmme du Roman au 18e. Siècle", Paris, PUF, 1963.
(3) Ver Coulet, Henri - "Le Roman Jusqu'à la Révolution", Paris, Armand Colin, 1967, págs. 330ss., ao qual devo algumas das idéias que seguem.
(4) Lesage usa a expressão em sentido literal, para referir-se ao retiro do Conde-duque de Olivares que entretanto, contrariamente a Gil Blas, não sobrevive longe dos azares da corte.
(5) Goulemot, Jean-Marie e outros - "Vocabulaire de la Littérature du 18e. Siècle", Paris, Minerve, 1996, pág. 200.
Franklin de Matos é professor de filosofia na USP e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios Sobre Filosofia e Literatura no Século 18" (Iluminuras, a ser publicado)




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