São Paulo, Sábado, 09 de Outubro de 1999
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A sintaxe da pulsão

LUIZ ROBERTO MONZANI

O livro de Luís Hanns é, no mínimo, corajoso. Sim, porque há certos temas, certos problemas conceituais, que desafiam o leitor ou o estudioso. Tal é o caso da famosa teoria freudiana das pulsões. Reconhecida por quase todos, e inclusive pelo próprio Freud, como a parte mais obscura da teoria psicanalítica, ela foi, e é até hoje, objeto de interpretações as mais díspares, para não dizer, às vezes, aberrantes.
O texto de Hanns caracteriza-se, sobretudo, pela clareza da exposição (qualidade, aliás, já presente no seu "Dicionário Comentado do Alemão de Freud", Imago). Nessa matéria tão controvertida, ele nos conduz de forma precisa e metódica. Isso produz um ganho inestimável para o leitor, na medida em que todos os níveis e toda complexidade do texto freudiano são minuciosamente abordados, às custas, é verdade, de algumas inevitáveis repetições.
Não se trata, rigorosamente falando, de uma nova interpretação de Freud (graças a Deus!), mas simplesmente de uma leitura atenta e rigorosa dos textos. Simplesmente? Essa tarefa de ler um autor, mas todo o autor, é talvez das mais difíceis, sobretudo no caso de Freud. Não se entenda aqui, portanto, o "simplesmente" no seu sentido corriqueiro, mas sim no sentido em que, às vezes, Cícero usava o termo: franca, honestamente.
Todos nós, que anos atrás nos debruçávamos sobre a problemática freudiana, não tivemos a felicidade de ter um livro similar ao de Hanns (até onde vão minhas leituras) e sabemos o quanto era difícil chegar a compreender Freud no meio de tantas interpretações. Nesse sentido, considero o livro de Renato Mezan, "Freud - A Trama dos Conceitos", um marco em nossa história. Foi um pouco livrando-nos dessas interpretações que começamos a vislumbrar Freud e a respeitar o seu texto que, além ou aquém de rótulos mais ou menos vazios (mecanicismo, hermenêutica etc.), nos colocava frente a uma problemática e uma concepção novas.
É nesse ponto que vejo um dos principais méritos do livro em questão: o respeito às diferentes dimensões e patamares da teoria freudiana das pulsões. E, por isso mesmo, ela não é uma interpretação no sentido tradicional do termo. Basta olhar com atenção sua estratégia de análise para se perceber isso.

Guia do léxico freudiano
Hanns parte do conceito central de pulsão (retomando as análises que já havia feito no "Dicionário Comentado do Alemão de Freud") e, a partir daí, vai pacientemente compondo seu trajeto desde o nascedouro, sua inflexão somática, neurofisiológica, até seu impacto com o aparelho psíquico, seu entrelaçamento com as representações, a formação do circuito do desejo etc. Aprendemos aqui a sintaxe da pulsão. De qualquer modo, das secreções glandulares às mais sofisticadas elaborações psíquicas, tudo é devidamente considerado. E o que vai se armando frente ao leitor, pouco a pouco, são as bases, o arcabouço central, da teoria pulsional freudiana. Isso mesmo sobre o que não deveria haver controvérsia.
Os problemas de interpretação, eu tenderia a dizer, nascem a partir desse ponto. E uma interpretação minimamente sóbria deveria respeitar todos esses níveis. É o que nos avisa o autor por duas vezes. Primeiro, quando afirma que é importante que estudemos não só a dimensão psíquica dos desejos, mas também a fisiologia pulsional, suas hipóteses energéticas etc. (pág. 43). Segundo, bem mais à frente, num texto que cito: "A consideração isolada de qualquer um dos patamares transforma a teoria pulsional em algo de outra ordem, por exemplo, numa teoria dos impulsos, dos afetos, das imagens, ou em uma teoria da linguagem, ou em uma teoria organicista, ou em uma teoria biológica ou ainda em uma teoria metafísica" (pág.161).
Quanta coisa não deixaria de ser escrita se se observasse essa regra elementar. E aqui está outro mérito da obra: ela pode servir como uma espécie de unidade de medida a partir do qual podem-se medir ou regular diferentes leituras. Trata-se de um léxico sóbrio e que serve de guia.
Alguns problemas afloram nessa leitura, mas nem de longe comprometem o texto como um todo. A começar, me parece, por alguns erros de impressão. Para não ficar no vazio: há uma certa confusão nas págs. 106-107, por exemplo. O próprio título do livro não me parece corresponder ao seu conteúdo. O "na" clínica de Freud não expressa bem o que de fato acontece. Na minha opinião, ou se eliminaria essa precisão ou, para ser mais adequado, deveria se dizer "na teoria e na clínica de Freud". Há páginas belíssimas de Hanns sobre a complexidade da escuta freudiana e os perigos de sua simplificação. São as páginas mais densas e sintéticas do livro e aparecem claramente como uma consequência do dito anteriormente.

Angústia e medo
Há, também, às vezes, algo que chamaria de pequenos deslizes que, no entanto, não comprometem em nada a leitura como um todo. Por exemplo, na pág. 84, é afirmado que é o "sistema de "Vorstellungen'", conscientes e inconscientes, "que compõe o que Freud denomina como aparelho psíquico". Uma frase como essa pode dar a entender que o aparelho psíquico é composto de representações, exclusivamente. O que é, no mínimo, questionável.
Gostaria de apontar, por último, o problema da tradução do termo "Angst". Nada tenho contra as observações do autor. Minha dúvida vai apenas na direção de que talvez seja problemática qualquer uniformização de tradução, seja por angústia, seja por medo, se realizada sistematicamente. O caso que denominamos de "expectativa ansiosa ou angustiosa" difere claramente do medo, e o próprio Freud o diferencia explicitamente por três vezes. E a expressão, em português, que melhor traduz isso, na minha opinião, é "estado de angústia", não de medo. Concordo também com o autor que, quando traduzimos "Angst" por angústia, devemos afastar as conotações existenciais do termo. Mas é bom não esquecer que o termo também tem uma tradição psiquiátrica, anterior à Freud (só para lembrar, as pesquisas de Brissaud, por exemplo), que dava um outro tratamento ao tema e que foi daí, provavelmente, que Freud herdou a idéia, enquanto descrição clínica.
Mas essas questões em nada desmerecem o texto. O fato é que Luís Hanns nos oferece um valiosíssimo instrumento de trabalho. Saibamos aproveitá-lo.



A Teoria Pulsional na Clínica de Freud Luís Alberto Hanns Imago (tel. 0/xx/21/502-9092) 232 págs., R$ 25,00


Luiz Roberto Monzani é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas e na Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de "Prazer e Desejo na Idade Moderna" (Ed. da Unicamp).


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