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A utopia pragmatista
JÉZIO HERNANI BOMFIM GUTIERRE
A voga da filosofia norte-americana é reconhecida, e Richard Rorty é
um dos responsáveis por isso, tanto no papel de participante ativo
quanto no de propagador dessa linhagem que ele próprio remonta a
Emerson, James e Dewey. Sua persistente pregação neopragmatista
continua no livro agora traduzido.
No primeiro capítulo, "Verdade sem Correspondência com a Realidade", o autor desenvolve sua conhecida crítica à noção de verdade
correspondencial e propõe um objetivo pragmático para a inquirição
gnosiológica, seja ela científica ou não: qualquer enunciado deve ser
julgado não conforme seu poder de acuradamente espelhar o mundo,
mas a partir de sua utilidade. À questão óbvia "útil para quê?", Rorty
responde: útil no sentido de criar um mundo melhor, um mundo que
propicie maior diversidade e liberdade. Essa "utopia pragmatista" tem
necessariamente uma tessitura aberta, seria um universo à "Blade
Runner", algo não limitado seja pela imposição de uma realidade imutável à qual deveríamos obedecer, seja por uma dada natureza única da
mente humana que, a seu ver, teria como única característica distintiva
a própria plasticidade.
Obedecendo as premissas definidas na seção anterior, no segundo
capítulo, "O Mundo sem Substâncias ou Essências", Rorty equipara
sua versão de pragmatismo a um antiessencialismo. Não há características intrínsecas aos objetos e só podemos considerá-los de maneira
relacional. Essa conclusão tem sua contrapartida numa imagem darwiniana da linguagem, isto é, não como um instrumento que descreve
as características imanentes de objetos, mas como um artefato que pode refletir a forma como o homem, na qualidade de antropóide superior, se relaciona com o meio que habita.
O terceiro capítulo, "Ética sem Obrigações Universais", se concentra
sobre a distinção entre moralidade e prudência. Como sempre, o vilão
a ser condenado é o transcendentalismo imanente que exige a incondicionalidade e imutabilidade das regras morais. Para Rorty, a busca do
Bem é tão fadada ao fracasso quanto a busca da Verdade. Para substituir esses dois empreendimentos clássicos, sugere prestigiar a criatividade, uma aposta em nossa capacidade de criar formas de vida inesperadas e mais interessantes, um futuro melhor -presumivelmente,
sempre conforme o preceito de liberdade e diversidade.
"A Filosofia e o Futuro" aprofunda a conclusão precedente e une a
própria justificativa da empresa filosófica à tarefa de ajustar a linguagem do passado às necessidades do futuro. Leibniz e Kant supostamente constituiriam exemplo paradigmático disso quando assumiram a responsabilidade de coadunar a linguagem associada às intuições morais da teologia cristã com o advento da física newtoniana.
Um ensaio autobiográfico
No pequeno ensaio autobiográfico que fecha a coletânea, "Trótski e
as Orquídeas Selvagens", Rorty descreve rapidamente sua trajetória
intelectual, discutindo um dos elementos fundamentais que originalmente definiram seu interesse pela filosofia: como conciliar a responsabilidade em relação aos demais seres humanos (algo que associava
às preocupações que Trótski teria vivenciado) e os sentimentos pessoais que nutrimos pelas pessoas ou coisas que amamos (as "orquídeas", citadas no título)? Conclui que não há qualquer necessidade racional de que esses dois pólos coincidam. Ainda aqui, Rorty não perde
a oportunidade de açoitar seu alvo constante: nada que possa ser descoberto por meio da razão, como os transcendentalistas, ao estilo de
Kant ou Espinosa, pretenderam, poderia demonstrar a necessidade de
comunhão com outros seres humanos. O que define o avanço da humanidade em direção a formas de vida mais benevolentes é um sentimento de indignação e consequente solidariedade perante a dor
alheia, algo que ocorre independentemente de demonstrações.
Mesmo abordando praticamente todas as complexas e polêmicas
personagens e teses canônicas do universo rortiano, esta coletânea é
sempre clara e acessível. O estilo lembra, às vezes, o de um diário íntimo intelectual em que o autor despretensiosamente resenha os elementos de seu sistema. Nesse sentido, pode-se dizer que é uma eficiente introdução a Rorty, especialmente para aqueles que não têm a disposição necessária para enfrentar seus trabalhos mais ambiciosos. Assim, se o que se procurou alcançar foi um retrato resumido e acessível
desse filósofo influente, a seleção de textos foi uma boa idéia que não é
deslustrada mesmo pela tradução algumas vezes sofrível -transgressões como "self moral e self não-empírico" kantiano (cf. pág. 105) e
predileção por galicismos como "adequam" (cf. págs. 97 e 139) não são
raras.
Embora, como foi dito, cumpra bem o papel de uma introdução ao
pensamento de Rorty, e talvez por isso mesmo, no livro não se pretende acrescentar muito ao que o autor de "A Filosofia e o Espelho da Natureza" já argumentou em artigos e livros anteriores e, assim, deixa
pendentes as mesmas questões que leitores atentos sempre lhe dirigiram. Evidentemente, não cabe fazer um mapeamento desses problemas que talvez sejam inevitáveis para um pensador que pretende ser
original e não quer chancelar nenhuma das alternativas tradicionais, e
isso não deveria obscurecer o significado de Rorty para a filosofia contemporânea: o debate "edificador" (conforme sua própria terminologia) que ajuda a promover é um dos importantes definidores da agenda filosófica da próxima década, razão mais que suficiente para justificar a leitura deste livro por um público mais amplo.
Pragmatismo: A Filosofia da Criação e da Mudança
Richard Rorty
Organização e tradução: Cristina Magro e Antonio Marcos Pereira
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
192 págs., R$ 18,00
Jézio Hernani Bomfim Gutierre é professor do departamento de filosofia da Universidade Estadual
Paulista (Unesp-Marília).
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