São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2000

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O legado de Tolstói



Coletânea reúne os contos mais representativos do escritor russo, autor do romance "Guerra e Paz"
BORIS SCHNAIDERMAN

Uma coletânea abrangente de contos de Leão Tolstói (a equipe que elaborou o livro preferiu a forma russa do prenome, Liev) como esta, organizada por Paulo Bezerra, obriga-nos a repensar todo o seu legado. Tornou-se até um lugar-comum da crítica apontar a exuberância, a vitalidade que há em sua obra, em contraste com a postura de pregador evangélico, inimigo da Igreja oficial e que vê na religião e na purificação interior a superação de todos os males causados pelo sistema social injusto. Segundo essa perspectiva, o criador e artista atingiu o ápice da perfeição, enquanto o pregador ficou repetindo uma cantilena cacete, que não tinha nada de original.
Durante muito tempo essa visada crítica pareceu-me perfeitamente correta, sobretudo depois de reforçada, de modo incisivo, numa série de trabalhos de Boris Eichenbaum (dois ensaios nesse sentido foram traduzidos para o português por Rubens Pereira dos Santos e incluídos em apêndice no livro de Máximo Górki, "Leão Tolstói", Perspectiva, 1983). Segundo Eichenbaum, que desenvolve uma concepção já exposta por diversos autores russos, inclusive o próprio Górki, Tolstói artista deveria ser desvinculado do Tolstói pregador religioso. Teríamos assim um "Tolstói sem tolstoísmo" (1), um artista sem par, senhor absoluto das palavras e das imagens, que não perderia absolutamente nada com esta desvinculação. A própria crise moral que ele viveu a partir de fins da década de 1870 seria na realidade manifestação de uma crise de forma literária.
A insatisfação de Tolstói com o instrumento que ele havia levado à máxima perfeição seria o motor oculto daquele processo. Pois o que mais ele poderia produzir depois de "Ana Karênina"? (esse argumento deixa de lado as grandes novelas tolstoianas da década de 1880 e seguintes, inclusive "A Morte de Ivan Ilitch" e o romance curto "Khadji-Murát"). E as idéias que defendeu então com tanta veemência já se encontram em sua obra anterior. O apego à forma do conto popular seria igualmente manifestação de sua busca de outras formas de expressão.

O "pathos" do pregador
Mas, sem dúvida, tudo isso pede um acréscimo. Se é verdade que os seus escritos puramente argumentativos não se comparam em criatividade e poder de sedução às obras ficcionais, o "pathos" do pregador muitas vezes imprime intensidade e veemência ao texto literário. É o que acontece com outra obra de Tolstói, a novela "Sonata a Kreutzer". Não há como aceitar a visão do sexo como pecado expressa ali, a sua advertência sobre o perigo que haveria na aproximação entre um homem e uma mulher casada, a sua condenação dos movimentos femininos pela igualdade de direitos com o homem, aquela argumentação francamente retrógrada etc. Mas, ao mesmo tempo, o texto é empolgante e nos arrasta mesmo que não queiramos.
Essas características da obra tolstoiana tornam-se flagrantes nos contos agora publicados em nova tradução.
"Três Mortes" baseia-se num esquema tão simples que dá pena resumi-lo. A morte de uma dama da alta sociedade é contraposta no conto às de um cocheiro e de uma árvore derrubada para se erguer a cruz em cima do túmulo do segundo. Mostrando, no entanto, a morte de alguém cuja vida decorria no vazio, Tolstói não descamba nem um momento sequer para a pregação pura e simples. Por mais que ele apresente o vazio da existência daqueles aristocratas, há muita intensidade vital em tudo o que narra. E é pungente a ansiedade da velha senhora (moribunda, na estrada) em chegar à Itália, à salvação que ela parecia vislumbrar. A exuberância da natureza, daquela árvore derrubada no meio da mata, é confrontada com o ambiente sórdido da isbá dos cocheiros, onde o rapaz morre, e com a elegância e riqueza do quarto em que a dama vai agonizar. Mas a história, que poderia facilmente transformar-se num libelo medíocre, acaba impondo-se como grande criação literária.
Aqui, certamente, temos a vitória do Tolstói artista. O pregador está sem dúvida presente, mas o poder vital do criador foi mais forte. Algo semelhante aconteceu com o grande romance curto "Khadji-Murát", um de seus últimos textos. No decorrer do processo de sua criação, ele chegou a pôr de lado trechos magníficos de acusação ao regime czarista, mas que certamente não cabiam no tipo de composição então elaborado.
"Kholstomier - A História de um Cavalo" constitui outra etapa do infindável diálogo entre natureza e cultura que perpassa pela obra de Tolstói. Aquele cavalo que vive com toda a plenitude e poesia a sua condição animal, uma plenitude em que há um toque de suavidade, e, ao mesmo tempo, a sua perplexidade ante o mundo dos homens aponta, pelo estranhamento, para o que há de absurdo nas relações sociais. Por conseguinte, não foi por acaso que um grande teórico russo da literatura, Víctor Chklóvski, tomou para exemplo de estranhamento em Tolstói justamente esse conto, em seu famoso ensaio "A Arte Como Procedimento".

A cadência do ficcionista
Se muitas afirmações desse estudo de 1916 parecem completamente superadas hoje, a abordagem que ele faz de "Kholstomier" e de outras passagens de Tolstói é realmente magistral. "Minha casa", "minha terra", "minha mulher", "meu cavalo", que os homens repetiam naturalmente, passavam a soar absurdas na apreensão do cavalo. Essa estranheza a partir do olhar de fora, tão frequente em literatura, encontra nesse conto um dos seus momentos máximos. Mais uma vez, não é a novidade do procedimento que marca o vigor de Tolstói ficcionista, mas sim, a cadência que soube imprimir ao texto.
"O Diabo" constitui um dos grandes momentos em que a obsessão de Tolstói por temas sexuais encontra sua plena realização. Nesse sentido, ele pode ser colocado no mesmo nível de "Confissão" e de outro conto, "Padre Sérgio". História autobiográfica? Sim, mas não no sentido de uma transposição direta. Tolstói certamente criou o seu personagem, que é diferente dele, mas o fez viver na sociedade que ele conhecia e enfrentar problemas semelhantes aos que havia enfrentado. É assim pelo menos que entendo a referência de Paulo Bezerra ao caráter autobiográfico dessa narrativa.
Encontrada entre os papéis guardados por Tolstói nos últimos anos de vida, ela tem dois finais diferentes. No primeiro, o personagem se suicida; no segundo, ele mata a mulher objeto de seu desejo extraconjugal. Relendo ambos, tenho a impressão de que o suicídio está perfeitamente motivado e surge como consequência natural do que ficou narrado. Já o segundo final, apesar da mestria de Tolstói , parece resultar sobretudo de sua vontade de expor as mazelas da sociedade em que vivia.
Em "Falso Cupom", vejo o que há de melhor e pior em Tolstói (aliás, graças a isso, a coletânea se tornou mais representativa). Alguns momentos do conto são inesquecíveis. É o caso, certamente, dos episódios iniciais, em que um ginasiano, filho de um alto funcionário, depois de tentar obter do pai um adiantamento de mesada, acaba efetuando com um colega mais malandro a falsificação de um cupom. Aquele enredamento de um rapazinho numa trama policial é narrado com o poder de convicção bem tolstoiano.
A narrativa acompanha depois as peripécias do cupom que passa de mão em mão, e há todo um encadeamento de episódios, uns bem narrados, outros completamente forçados no sentido de afirmar a ideologia do autor.
É o que sucede, por exemplo, com o início do capítulo 21 da primeira parte, em que uma jovem cossaca se apaixona por um rapaz e o autor afirma que seu amor não era aquele "comum às mulheres, expresso no desejo de ser esposa e mãe dos filhos dele, mas com um amor de companheira alimentado sobretudo por uma mesma revolta e ódio tanto à ordem social estabelecida como às pessoas que a representavam e pela consciência da superioridade intelectual, cultural e moral" de ambos em relação a elas.
Ora, por mais que se queira ter tolerância com convicções alheias, essa passagem desanima qualquer um que não partilhe a ideologia do autor. Sem dúvida, Tolstói é capaz do máximo em ficção, mas também descamba às vezes para o que pode haver de pior. E ao mesmo tempo, a trama complexa é muito bem urdida, e os episódios como esse não são muito numerosos.

Humano e convincente
Já em "Depois do Baile", temos Tolstói em pleno vigor, afirmando as suas opiniões, mas sempre em termos humanos e convincentes. A história do jovem que se apaixona pela filha de um coronel e, depois de ter dançado com ela no baile e ter visto o pai muito simpático e afável, vai dar uma volta de manhã e acaba vendo aquele oficial comandar uma execução pública, isto é, fazer os seus comandados espancarem com requintes de crueldade um soldado conduzido entre a tropa formada, é realmente um dos pontos altos de Tolstói contista. E sobretudo o texto convence pelo horror daquele costume, e não por qualquer argumentação.
Esse conto faz pensar na habilidade extraordinária que ele tinha de expor vastos panoramas, como em "Guerra e Paz", mas também concentrar tudo numa narrativa curta; parece até que ele se movimenta como se tivesse uma câmera na mão, e não foi por acaso que Eisenstein o considerou cinematográfico por excelência, alguém que usava plenamente os recursos daquela arte, quando ela ainda não existia.
O livro contém ainda um estudo de Víctor Chklóvski, "Os Paralelos em Tolstói" (1923), traduzido por André Pinto Pacheco, um texto importante e que não é muito encontradiço nas antologias ocidentais do formalismo russo, bem como boas sugestões de leitura, elaboradas pelo organizador da coletânea.
Deve-se dar um destaque especial à tradução. Uma das dificuldades maiores na transposição de um texto para outra língua consiste em que o ato tradutório exige um trabalho pessoal e criativo, mas seu controle requer pelo menos mais um participante, cujas sugestões podem ser de grande valia. Sem este cotejo de texto, evidentemente superior a um cotejo com auxílio de gravador, fica-se muito sujeito a eventuais enganos.
No caso, houve uma atividade em equipe, como está explicado no prefácio do organizador, e isso certamente diminui a possibilidade de erro. E, embora haja mais de um tradutor, Beatriz Morabito, Beatriz Ricci e Maira Pinto (alunas do curso de russo da USP), a identificação com o texto foi tamanha que se sente o fluir das narrativas como se uma única voz transmitisse em português o texto de Tolstói.
Enfim, tradução, notas, apêndice, prefácio do organizador, formam um conjunto homogêneo e coerente, um exemplo de como uma atividade didática pode dar origem a boa realização literária.

Nota

1. A expressão é de Boris Eichenbaum. Ela foi retomada por Nina Gourfinkel no livro "Tolstoi sans Tolstoïsme", Paris, Editions du Seuil, 1946.



O Diabo e Outras Histórias
Liev Tolstói
Seleção e apresentação: Paulo Bezerra
Tradução: Beatriz Morabito, Beatriz Ricci e Maíra Pinto
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/255-8808)
283 págs., R$ 35,00


Boris Schnaiderman é crítico e tradutor. Autor, entre outros livros, de "Turbilhão e Semente - Ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin" (Duas Cidades).


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