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O legado de Tolstói
Coletânea reúne os contos
mais representativos do escritor russo,
autor do romance "Guerra e Paz"
BORIS SCHNAIDERMAN
Uma coletânea abrangente de contos
de Leão Tolstói (a equipe que elaborou o
livro preferiu a forma russa do prenome,
Liev) como esta, organizada por Paulo
Bezerra, obriga-nos a repensar todo o seu
legado. Tornou-se até um lugar-comum
da crítica apontar a exuberância, a vitalidade que há em sua obra, em contraste
com a postura de pregador evangélico,
inimigo da Igreja oficial e que vê na religião e na purificação interior a superação
de todos os males causados pelo sistema
social injusto. Segundo essa perspectiva,
o criador e artista atingiu o ápice da perfeição, enquanto o pregador ficou repetindo uma cantilena cacete, que não tinha
nada de original.
Durante muito tempo essa visada crítica pareceu-me perfeitamente correta, sobretudo depois de reforçada, de modo incisivo, numa série de trabalhos de Boris
Eichenbaum (dois ensaios nesse sentido
foram traduzidos para o português por
Rubens Pereira dos Santos e incluídos em
apêndice no livro de Máximo Górki,
"Leão Tolstói", Perspectiva, 1983). Segundo Eichenbaum, que desenvolve uma
concepção já exposta por diversos autores russos, inclusive o próprio Górki,
Tolstói artista deveria ser desvinculado
do Tolstói pregador religioso. Teríamos
assim um "Tolstói sem tolstoísmo" (1),
um artista sem par, senhor absoluto das
palavras e das imagens, que não perderia
absolutamente nada com esta desvinculação. A própria crise moral que ele viveu
a partir de fins da década de 1870 seria na
realidade manifestação de uma crise de
forma literária.
A insatisfação de Tolstói com o instrumento que ele havia levado à máxima
perfeição seria o motor oculto daquele
processo. Pois o que mais ele poderia
produzir depois de "Ana Karênina"? (esse argumento deixa de lado as grandes
novelas tolstoianas da década de 1880 e
seguintes, inclusive "A Morte de Ivan
Ilitch" e o romance curto "Khadji-Murát"). E as idéias que defendeu então com
tanta veemência já se encontram em sua
obra anterior. O apego à forma do conto
popular seria igualmente manifestação
de sua busca de outras formas de expressão.
O "pathos" do pregador
Mas, sem dúvida, tudo isso pede um
acréscimo. Se é verdade que os seus escritos puramente argumentativos não se
comparam em criatividade e poder de sedução às obras ficcionais, o "pathos" do
pregador muitas vezes imprime intensidade e veemência ao texto literário. É o
que acontece com outra obra de Tolstói, a
novela "Sonata a Kreutzer". Não há como
aceitar a visão do sexo como pecado expressa ali, a sua advertência sobre o perigo que haveria na aproximação entre um
homem e uma mulher casada, a sua condenação dos movimentos femininos pela
igualdade de direitos com o homem,
aquela argumentação francamente retrógrada etc. Mas, ao mesmo tempo, o texto
é empolgante e nos arrasta mesmo que
não queiramos.
Essas características da obra tolstoiana
tornam-se flagrantes nos contos agora
publicados em nova tradução.
"Três Mortes" baseia-se num esquema
tão simples que dá pena resumi-lo. A
morte de uma dama da alta sociedade é
contraposta no conto às de um cocheiro e
de uma árvore derrubada para se erguer a
cruz em cima do túmulo do segundo.
Mostrando, no entanto, a morte de alguém cuja vida decorria no vazio, Tolstói
não descamba nem um momento sequer
para a pregação pura e simples. Por mais
que ele apresente o vazio da existência
daqueles aristocratas, há muita intensidade vital em tudo o que narra. E é pungente a ansiedade da velha senhora (moribunda, na estrada) em chegar à Itália, à
salvação que ela parecia vislumbrar. A
exuberância da natureza, daquela árvore
derrubada no meio da mata, é confrontada com o ambiente sórdido da isbá dos
cocheiros, onde o rapaz morre, e com a
elegância e riqueza do quarto em que a
dama vai agonizar. Mas a história, que
poderia facilmente transformar-se num
libelo medíocre, acaba impondo-se como
grande criação literária.
Aqui, certamente, temos a vitória do
Tolstói artista. O pregador está sem dúvida presente, mas o poder vital do criador
foi mais forte. Algo semelhante aconteceu com o grande romance curto "Khadji-Murát", um de seus últimos textos. No
decorrer do processo de sua criação, ele
chegou a pôr de lado trechos magníficos
de acusação ao regime czarista, mas que
certamente não cabiam no tipo de composição então elaborado.
"Kholstomier - A História de um Cavalo" constitui outra etapa do infindável
diálogo entre natureza e cultura que perpassa pela obra de Tolstói. Aquele cavalo
que vive com toda a plenitude e poesia a
sua condição animal, uma plenitude em
que há um toque de suavidade, e, ao mesmo tempo, a sua perplexidade ante o
mundo dos homens aponta, pelo estranhamento, para o que há de absurdo nas
relações sociais. Por conseguinte, não foi
por acaso que um grande teórico russo da
literatura, Víctor Chklóvski, tomou para
exemplo de estranhamento em Tolstói
justamente esse conto, em seu famoso
ensaio "A Arte Como Procedimento".
A cadência do ficcionista
Se muitas afirmações desse estudo de
1916 parecem completamente superadas
hoje, a abordagem que ele faz de "Kholstomier" e de outras passagens de Tolstói é
realmente magistral. "Minha casa", "minha terra", "minha mulher", "meu cavalo", que os homens repetiam naturalmente, passavam a soar absurdas na
apreensão do cavalo. Essa estranheza a
partir do olhar de fora, tão frequente em
literatura, encontra nesse conto um dos
seus momentos máximos. Mais uma vez,
não é a novidade do procedimento que
marca o vigor de Tolstói ficcionista, mas
sim, a cadência que soube imprimir ao
texto.
"O Diabo" constitui um dos grandes
momentos em que a obsessão de Tolstói
por temas sexuais encontra sua plena
realização. Nesse sentido, ele pode ser colocado no mesmo nível de "Confissão" e
de outro conto, "Padre Sérgio". História
autobiográfica? Sim, mas não no sentido
de uma transposição direta. Tolstói certamente criou o seu personagem, que é diferente dele, mas o fez viver na sociedade
que ele conhecia e enfrentar problemas
semelhantes aos que havia enfrentado. É
assim pelo menos que entendo a referência de Paulo Bezerra ao caráter autobiográfico dessa narrativa.
Encontrada entre os papéis guardados
por Tolstói nos últimos anos de vida, ela
tem dois finais diferentes. No primeiro, o
personagem se suicida; no segundo, ele
mata a mulher objeto de seu desejo extraconjugal. Relendo ambos, tenho a impressão de que o suicídio está perfeitamente motivado e surge como consequência natural do que ficou narrado. Já
o segundo final, apesar da mestria de
Tolstói , parece resultar sobretudo de sua
vontade de expor as mazelas da sociedade em que vivia.
Em "Falso Cupom", vejo o que há de
melhor e pior em Tolstói (aliás, graças a
isso, a coletânea se tornou mais representativa). Alguns momentos do conto são
inesquecíveis. É o caso, certamente, dos
episódios iniciais, em que um ginasiano,
filho de um alto funcionário, depois de
tentar obter do pai um adiantamento de
mesada, acaba efetuando com um colega
mais malandro a falsificação de um cupom. Aquele enredamento de um rapazinho numa trama policial é narrado com o
poder de convicção bem tolstoiano.
A narrativa acompanha depois as peripécias do cupom que passa de mão em
mão, e há todo um encadeamento de episódios, uns bem narrados, outros completamente forçados no sentido de afirmar a ideologia do autor.
É o que sucede, por exemplo, com o início do capítulo 21 da primeira parte, em
que uma jovem cossaca se apaixona por
um rapaz e o autor afirma que seu amor
não era aquele "comum às mulheres, expresso no desejo de ser esposa e mãe dos
filhos dele, mas com um amor de companheira alimentado sobretudo por uma
mesma revolta e ódio tanto à ordem social estabelecida como às pessoas que a
representavam e pela consciência da superioridade intelectual, cultural e moral"
de ambos em relação a elas.
Ora, por mais que se queira ter tolerância com convicções alheias, essa passagem desanima qualquer um que não partilhe a ideologia do autor. Sem dúvida,
Tolstói é capaz do máximo em ficção,
mas também descamba às vezes para o
que pode haver de pior. E ao mesmo tempo, a trama complexa é muito bem urdida, e os episódios como esse não são muito numerosos.
Humano e convincente
Já em "Depois do Baile", temos Tolstói
em pleno vigor, afirmando as suas opiniões, mas sempre em termos humanos e
convincentes. A história do jovem que se
apaixona pela filha de um coronel e, depois de ter dançado com ela no baile e ter
visto o pai muito simpático e afável, vai
dar uma volta de manhã e acaba vendo
aquele oficial comandar uma execução
pública, isto é, fazer os seus comandados
espancarem com requintes de crueldade
um soldado conduzido entre a tropa formada, é realmente um dos pontos altos
de Tolstói contista. E sobretudo o texto
convence pelo horror daquele costume, e
não por qualquer argumentação.
Esse conto faz pensar na habilidade extraordinária que ele tinha de expor vastos
panoramas, como em "Guerra e Paz",
mas também concentrar tudo numa narrativa curta; parece até que ele se movimenta como se tivesse uma câmera na
mão, e não foi por acaso que Eisenstein o
considerou cinematográfico por excelência, alguém que usava plenamente os recursos daquela arte, quando ela ainda
não existia.
O livro contém ainda um estudo de
Víctor Chklóvski, "Os Paralelos em Tolstói" (1923), traduzido por André Pinto
Pacheco, um texto importante e que não
é muito encontradiço nas antologias ocidentais do formalismo russo, bem como
boas sugestões de leitura, elaboradas pelo
organizador da coletânea.
Deve-se dar um destaque especial à tradução. Uma das dificuldades maiores na
transposição de um texto para outra língua consiste em que o ato tradutório exige um trabalho pessoal e criativo, mas seu
controle requer pelo menos mais um participante, cujas sugestões podem ser de
grande valia. Sem este cotejo de texto,
evidentemente superior a um cotejo com
auxílio de gravador, fica-se muito sujeito
a eventuais enganos.
No caso, houve uma atividade em equipe, como está explicado no prefácio do
organizador, e isso certamente diminui a
possibilidade de erro. E, embora haja
mais de um tradutor, Beatriz Morabito,
Beatriz Ricci e Maira Pinto (alunas do
curso de russo da USP), a identificação
com o texto foi tamanha que se sente o
fluir das narrativas como se uma única
voz transmitisse em português o texto de
Tolstói.
Enfim, tradução, notas, apêndice, prefácio do organizador, formam um conjunto homogêneo e coerente, um exemplo de como uma atividade didática pode
dar origem a boa realização literária.
Nota
1. A expressão é de Boris Eichenbaum. Ela foi retomada por Nina Gourfinkel no livro "Tolstoi sans
Tolstoïsme", Paris, Editions du Seuil, 1946.
O Diabo e Outras Histórias
Liev Tolstói
Seleção e apresentação: Paulo Bezerra
Tradução: Beatriz Morabito, Beatriz
Ricci e Maíra Pinto
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/255-8808)
283 págs., R$ 35,00
Boris Schnaiderman é crítico e tradutor. Autor,
entre outros livros, de "Turbilhão e Semente - Ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin" (Duas Cidades).
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