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Dilemas da América Latina
REGINALDO DE MORAES
Temos aqui duas antologias contendo documentos relevantes
sobre a história do pensamento crítico na América Latina no seu
período mais recente (segunda metade do século 20). A reconstrução histórica permite entender como os outros pensaram sobre
problemas que hoje também enfrentamos. E pode ser uma excelente via para libertar o espírito do sempre trilhado e jamais contestado. Existe algo em comum, portanto, entre os dois lançamentos.
Mas, para que esse objetivo emancipador seja atingido, é decisivo
que o documento que lemos seja devidamente contextualizado,
compreendido no seu universo de virtudes, condicionantes, limites. E nesse particular as duas antologias são desiguais e têm perfis
distintos.
A organizada por Bielchowsky dá conta de rico e variado manancial, a doutrina cepalina e seus "filhotes". Estão aí reunidos documentos que antes o interessado teria que buscar em numerosos
outros periódicos, antologias, arquivos. Um a zero para Bielchowsky, que amplia o placar em seguida, dando ao material um
tratamento condizente com a sua importância. Substanciosa apresentação contextualiza os documentos, tenta dar a eles uma interpretação retrospectiva, informa, enfim, o leitor, preparando-o para
compreender o material que terá à sua frente. A antologia constitui
assim útil material para o investigador e, de quebra, interessante
recurso didático para professores e estudantes.
O primeiro volume traz aquilo que em certa medida poderíamos
chamar de "antigo testamento" da Cepal (Comissão Econômica
para a América Latina). Textos fundadores, ou pelo menos paramétricos, aí predominam. Cabe destaque, evidentemente, para
Raul Prebisch e Celso Furtado, mas também para o menos citado
José Medina Echavarria. O segundo volume, o "novo testamento",
dá conta das versões (e dissensões) produzidas pelos apóstolos. Aí
podemos encontrar o enfoque da dependência (Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto), a contestação do estagnacionismo
por Maria da Conceição Tavares e José Serra, dois influentes estudos de Anibal Pinto sobre a homogeneidade estrutural e o "estilo
de desenvolvimento" da América Latina e um ensaio de Fjanzylber
sobre as peculiaridades da industrialização no continente. Além
disso, textos dando conta do debate mais atual sobre transformação produtiva, equidade e inserção competitiva no mercado mundial.
A antologia de Rui Mauro Marini apanha também importantes
documentos para conhecermos a história do pensamento de esquerda no Brasil, seus problemas, escolhas, contrastes. Tem o inegável mérito de trazer para nossos leitores um autor quase inédito
em nosso idioma, embora bastante editado em espanhol, francês e
italiano (tanto quanto eu saiba). Um a zero para o organizador.
Mas o placar é ameaçado por alguns descuidos da edição. Como
adiantamos, contextualização, para textos dessa natureza, é fundamental. E nesta coletânea, infelizmente, nem sequer somos informados da data em que os estudos foram escritos ou publicados, a
que tipo de polêmica ou situação respondiam. Resulta desse modo
uma injustiça para Marini.
Vejamos o primeiro artigo, por exemplo: "Dialética do Desenvolvimento Capitalista no Brasil", aliás parcialmente publicado na revista paulista "Teoria e Prática", no final dos anos 60 (já tivera edição em espanhol em 1965). Sem a referência contextual, como
compreender devidamente sua discussão a respeito do "caráter da
revolução brasileira", seus prognósticos a respeito dos caminhos e
protagonistas da luta política no continente?
O mesmo, ou quase, se pode dizer dos demais artigos -nada nos
diz a coletânea sobre a data de seu surgimento. Recomendar-se-ia
igualmente uma revisão cuidadosa na tradução do texto. Há ruídos
inconvenientes. Em determinado momento, no primeiro ensaio, o
autor, com ironia, afirma que o pacto burguesia-latifúndio no Brasil recente não fora assinado numa mesa de chá. Mas o texto da antologia (pág. 19) diz positivamente que ele foi assinado numa mesa
de chá -o que soa apenas engraçado. Também erros óbvios de revisão têm esse tipo de efeito -Talheimer passa de "suficientemente lúcido" a "suficientemente lúdico" (pág. 51). Nada que iluda um
leitor mais lúcido, ainda que lúdico. Mas o ruído é evidentemente
desnecessário.
A publicação desses documentos tem várias utilidades, teóricas e
políticas. Retoma a saudável e ultimamente esquecida reflexão
centrada no longo prazo, na consideração dos eventos, dilemas e
escolhas no interior de considerações mais globalizantes do que a
moda adaptativa e conformista a que tanto o pensamento econômico neoclássico como o neoliberal têm procurado nos acostumar. E é iniciativa que traz de novo à reflexão temas que essa voga
tem omitido ou minimizado -sobretudo a questão da luta política, do caráter social (e não natural) das relações entre indivíduos e
grupos, entre tantos outros. E, de modo direto, mas não menos importante, recuperações do pensamento crítico latino-americano,
como estas, evidenciam o ridículo das inclinações neocolonizadoras de alguns "brazilianists" e seus bajuladores nativos, moda que
volta e meia nos impinge a fala de algum gênio de dois neurônios a
nos informar que as luzes desses missionários nos ajudaram a
"pensar" o Brasil. Mesmo quando, com uma "generosidade" desastrada, nos dizem que "já" não precisamos deles... Variante intelectual do destino de escorpião: destilam arrogância e ofensa até
quando pensam estar elogiando.
Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor de ciência política na Unicamp e autor de "Celso Furtado, o Subdesenvolvimento e as Idéias da Cepal" (Ática).
Cinquenta Anos de Pensamento na Cepal
Ricardo Bielchowsky (org.)
Tradução: Vera Ribeiro
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
977 págs (vol. 1 e 2); R$ 40,00 cada vol.
Dialética da Dependência
Rui Mauro Marini
Organização e apresentação: Emir Sader
Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112)
295 págs., R$ 26,00
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