|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Saquê ou cerveja?
RUBEN G. OLIVEN
Renato Ortiz contraria a tendência de grande parte dos autores que
se debruçaram sobre a sociedade
japonesa. Em vez de sucumbir à
tentação de uma interpretação essencialista do "enigma japonês",
ele começa seu livro justamente
discutindo por que o Japão e o
Oriente em geral têm exercido um
fascínio tão notável sobre o Ocidente. Essa curiosidade é antiga:
Oliveira Lima esteve no Japão de
1901 a 1902 como encarregado de
negócios brasileiros e escreveu um
livro sobre sua experiência. O interesse pelo Japão se acentuou mais
recentemente diante do "milagre
econômico nipônico". Em vez de
abraçar a busca de uma "essência
oriental" que explicaria o sucesso
japonês, "O Próximo e o Distante"
é uma tentativa bem-sucedida de
analisar como se fez o Japão atual,
como se tornou moderno e, principalmente, como articula a tradição
com a modernidade.
Partindo da idéia de que a globalização perpassa os diferentes países do mundo, o autor toma como
fio condutor o que chama de modernidade-mundo, retomando o
tema de seus livros anteriores:
"Mundialização e Cultura" e "Um
Outro Território - Ensaios Sobre a
Mundialização". Para fins de análise, selecionou os seguintes temas:
consumo, cultura popular, publicidade, meios de comunicação,
música popular, moda, turismo,
nação. Esses temas são analisados
do ponto de vista da transversalidade, já que o autor argumenta
que a globalização é um fenômeno
que atravessa de forma diferenciada as realidades nacionais e locais.
Assinalando que o Japão nunca
foi uma comunidade isolada, Ortiz
mostra como no século passado a
política expansionista ocidental
obrigou o Japão a se inserir de forma mais concreta na ordem econômica internacional. A partir da
era Meiji, iniciada na segunda metade do século 19, dá-se um processo de modernidade e unidade nacional, que ocorre por meio de
uma revolução industrial, de uma
integração econômica, do estabelecimento de um mercado e de
uma moeda nacional, e de uma integração linguística. Como o Japão
carecia das tecnologias administrativas e de produção, a solução
encontrada foi a imitação e adaptação do que se encontrava fora:
sistema bancário, Exército e Marinha, escola primária, Judiciário,
polícia, sistema telegráfico e postal
etc. Em 1872 o imperador apresenta-se em público usando trajes ocidentais.
Durante a era Meiji criou-se uma
ideologia do trabalho como base
de sustentação da industrialização
que excluía uma ética do lazer e
que significou uma contenção do
consumo, à semelhança do que
ocorreu na Inglaterra durante sua
Revolução Industrial. Isso perdurou praticamente até o final da Segunda Guerra Mundial. Entre 1946
e 1973, o PIB japonês teve um crescimento médio de 10% ao ano.
Houve rápida urbanização e queda
na natalidade. Esses processos tiveram consequências diretas no
mundo da cultura, com o desenvolvimento de um mercado nacional de bens simbólicos e de consumo. Isso propiciou o acesso ao lazer e ao consumo por parte de uma
população que não tivera esse tipo
de experiência antes. Geladeiras,
televisores, aparelhos de ar condicionado, máquinas de lavar roupa,
câmeras fotográficas, automóveis,
bens até então praticamente inexistentes começaram a se tornar
comuns nos lares japoneses.
A partir da década de 80, o Japão
redefine seu papel e lugar no mundo, tornando-se uma potência
mundial. Nesse contexto, o tema
da internacionalização se impõe e
a metáfora da "ilha" cede lugar a
um espaço cada vez mais integrado a um mundo globalizado. Esse é
o momento em que o Japão perde
seu complexo de inferioridade
diante do Ocidente.
A oposição entre "nós" e "eles"
sempre esteve presente na cultura
japonesa. Na busca de sua identidade, o "nós" japonês necessita de
um outro, e a alteridade estaria
sempre alhures. Ortiz salienta que
os japoneses costumam classificar
os objetos em dois grupos: "wa" e
"yo". "Wa" aponta para a autenticidade autóctone: comidas, bebidas e roupas japonesas; "yo" aponta para o que vem de fora, os objetos estrangeiros importados: comidas, bebidas e roupas ocidentais. Ora, como ele bem adverte, esse tipo de classificação tem cada
vez mais dificuldade de se sustentar, tendo em vista a desterritorialização dos objetos. O exemplo da
bebida é expressivo nesse sentido:
como o "wa" de uma bebida típica
como o saquê pode sobreviver se o
consumo de cerveja, visto como
expressão cultural do Ocidente, representa 70% do mercado de bebidas do Japão?
Tradição do moderno
Esse tipo de constatação não leva, entretanto, o autor a afirmar
que o Japão foi invadido pelo Ocidente e está perdendo sua singularidade. Para ele, o que interessa é a
"tradicionalidade do moderno" e
sua presença enquanto constitutivo do mundo contemporâneo. A
crescente exportação de produtos
japoneses tampouco leva o autor à
tese da japonização do mundo. Para ele, Honda, Mitsubishi, Toyota e
Nissan não podem ser vistas como
empresas tradicionais, pois são
grandes corporações transnacionais que atuam numa economia
globalizada e que têm como mercado o mundo todo.
O autor conclui seu livro assinalando que no contexto da modernidade-mundo, com a desterritorialização e reterritorialização das
culturas, faz pouco sentido utilizar
categorias como Oriente/Ocidente, pois elas perdem a pouca força
explicativa que ainda possuíam.
Os parâmetros de navegação são
outros: "O imaginário coletivo "internacional-popular" nada tem de
ocidental ou de oriental, de norte-americano ou de nipônico, as formas/representações que o compõem (Madonna, Asterix, Doraemon, karaokê) perderam sua cor
local. (...) Para o objetivo de minha
análise, os japoneses são parte de
um "nós". "Nós" problemático, contraditório, pois revela a expansão
em nível global de representações
culturais vinculadas a interesses
concretos, a uma ordem hierárquica cuja organicidade se associa a
valores de mercado e de consumo,
fundando assim as relações entre
os indivíduos, grupos e classes sociais em outras formas de dominação". "O Próximo e o Distante" é
um livro instigante pelas questões
que suscita. Além de traçar um panorama inteligente sobre como o
Japão se transformou articulando
a tradição com a modernidade, ele
nos coloca diante da necessidade
de repensar nossas categorias de
apreensão do social num mundo
que está se transformando e que
não pode ser compreendido a partir de conceitos ultrapassados.
Ruben George Oliven é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor, entre outros livros de "A Parte e o Todo - A Diversidade
Cultural no Brasil-Nação" (Vozes).
O Próximo e o Distante.
Japão e
Modernidade-Mundo<BR>
Renato Ortiz
Brasiliense (Tel. 0/xx/11/218-1488)
206 págs., R$ 34,80
Texto Anterior: Dalton Trevisan: A casa das quatro meninas Próximo Texto: Flávio Aguiar: O mundo ao revés Índice
|