São Paulo, sábado, 10 de março de 2001

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Saquê ou cerveja?

RUBEN G. OLIVEN

Renato Ortiz contraria a tendência de grande parte dos autores que se debruçaram sobre a sociedade japonesa. Em vez de sucumbir à tentação de uma interpretação essencialista do "enigma japonês", ele começa seu livro justamente discutindo por que o Japão e o Oriente em geral têm exercido um fascínio tão notável sobre o Ocidente. Essa curiosidade é antiga: Oliveira Lima esteve no Japão de 1901 a 1902 como encarregado de negócios brasileiros e escreveu um livro sobre sua experiência. O interesse pelo Japão se acentuou mais recentemente diante do "milagre econômico nipônico". Em vez de abraçar a busca de uma "essência oriental" que explicaria o sucesso japonês, "O Próximo e o Distante" é uma tentativa bem-sucedida de analisar como se fez o Japão atual, como se tornou moderno e, principalmente, como articula a tradição com a modernidade.
Partindo da idéia de que a globalização perpassa os diferentes países do mundo, o autor toma como fio condutor o que chama de modernidade-mundo, retomando o tema de seus livros anteriores: "Mundialização e Cultura" e "Um Outro Território - Ensaios Sobre a Mundialização". Para fins de análise, selecionou os seguintes temas: consumo, cultura popular, publicidade, meios de comunicação, música popular, moda, turismo, nação. Esses temas são analisados do ponto de vista da transversalidade, já que o autor argumenta que a globalização é um fenômeno que atravessa de forma diferenciada as realidades nacionais e locais.
Assinalando que o Japão nunca foi uma comunidade isolada, Ortiz mostra como no século passado a política expansionista ocidental obrigou o Japão a se inserir de forma mais concreta na ordem econômica internacional. A partir da era Meiji, iniciada na segunda metade do século 19, dá-se um processo de modernidade e unidade nacional, que ocorre por meio de uma revolução industrial, de uma integração econômica, do estabelecimento de um mercado e de uma moeda nacional, e de uma integração linguística. Como o Japão carecia das tecnologias administrativas e de produção, a solução encontrada foi a imitação e adaptação do que se encontrava fora: sistema bancário, Exército e Marinha, escola primária, Judiciário, polícia, sistema telegráfico e postal etc. Em 1872 o imperador apresenta-se em público usando trajes ocidentais.
Durante a era Meiji criou-se uma ideologia do trabalho como base de sustentação da industrialização que excluía uma ética do lazer e que significou uma contenção do consumo, à semelhança do que ocorreu na Inglaterra durante sua Revolução Industrial. Isso perdurou praticamente até o final da Segunda Guerra Mundial. Entre 1946 e 1973, o PIB japonês teve um crescimento médio de 10% ao ano. Houve rápida urbanização e queda na natalidade. Esses processos tiveram consequências diretas no mundo da cultura, com o desenvolvimento de um mercado nacional de bens simbólicos e de consumo. Isso propiciou o acesso ao lazer e ao consumo por parte de uma população que não tivera esse tipo de experiência antes. Geladeiras, televisores, aparelhos de ar condicionado, máquinas de lavar roupa, câmeras fotográficas, automóveis, bens até então praticamente inexistentes começaram a se tornar comuns nos lares japoneses.
A partir da década de 80, o Japão redefine seu papel e lugar no mundo, tornando-se uma potência mundial. Nesse contexto, o tema da internacionalização se impõe e a metáfora da "ilha" cede lugar a um espaço cada vez mais integrado a um mundo globalizado. Esse é o momento em que o Japão perde seu complexo de inferioridade diante do Ocidente.
A oposição entre "nós" e "eles" sempre esteve presente na cultura japonesa. Na busca de sua identidade, o "nós" japonês necessita de um outro, e a alteridade estaria sempre alhures. Ortiz salienta que os japoneses costumam classificar os objetos em dois grupos: "wa" e "yo". "Wa" aponta para a autenticidade autóctone: comidas, bebidas e roupas japonesas; "yo" aponta para o que vem de fora, os objetos estrangeiros importados: comidas, bebidas e roupas ocidentais. Ora, como ele bem adverte, esse tipo de classificação tem cada vez mais dificuldade de se sustentar, tendo em vista a desterritorialização dos objetos. O exemplo da bebida é expressivo nesse sentido: como o "wa" de uma bebida típica como o saquê pode sobreviver se o consumo de cerveja, visto como expressão cultural do Ocidente, representa 70% do mercado de bebidas do Japão?

Tradição do moderno
Esse tipo de constatação não leva, entretanto, o autor a afirmar que o Japão foi invadido pelo Ocidente e está perdendo sua singularidade. Para ele, o que interessa é a "tradicionalidade do moderno" e sua presença enquanto constitutivo do mundo contemporâneo. A crescente exportação de produtos japoneses tampouco leva o autor à tese da japonização do mundo. Para ele, Honda, Mitsubishi, Toyota e Nissan não podem ser vistas como empresas tradicionais, pois são grandes corporações transnacionais que atuam numa economia globalizada e que têm como mercado o mundo todo.
O autor conclui seu livro assinalando que no contexto da modernidade-mundo, com a desterritorialização e reterritorialização das culturas, faz pouco sentido utilizar categorias como Oriente/Ocidente, pois elas perdem a pouca força explicativa que ainda possuíam. Os parâmetros de navegação são outros: "O imaginário coletivo "internacional-popular" nada tem de ocidental ou de oriental, de norte-americano ou de nipônico, as formas/representações que o compõem (Madonna, Asterix, Doraemon, karaokê) perderam sua cor local. (...) Para o objetivo de minha análise, os japoneses são parte de um "nós". "Nós" problemático, contraditório, pois revela a expansão em nível global de representações culturais vinculadas a interesses concretos, a uma ordem hierárquica cuja organicidade se associa a valores de mercado e de consumo, fundando assim as relações entre os indivíduos, grupos e classes sociais em outras formas de dominação". "O Próximo e o Distante" é um livro instigante pelas questões que suscita. Além de traçar um panorama inteligente sobre como o Japão se transformou articulando a tradição com a modernidade, ele nos coloca diante da necessidade de repensar nossas categorias de apreensão do social num mundo que está se transformando e que não pode ser compreendido a partir de conceitos ultrapassados.


Ruben George Oliven é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor, entre outros livros de "A Parte e o Todo - A Diversidade Cultural no Brasil-Nação" (Vozes).

O Próximo e o Distante. Japão e Modernidade-Mundo<BR> Renato Ortiz
Brasiliense (Tel. 0/xx/11/218-1488)
206 págs., R$ 34,80


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