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O mundo ao revés
Edição organiza produção poética
do autor gaúcho Qorpo-Santo
FLÁVIO AGUIAR
Em pertinente edição, chega ao
público leitor a primeira publicação extensa de poemas do autor
gaúcho José Joaquim de Campos
Leão Qorpo-Santo, considerado
hoje como precursor oitocentista
do teatro do absurdo.
Qorpo-Santo era antes de tudo
um excêntrico, que foi considerado louco por seus contemporâneos. Aparentemente padecia
mesmo de algum mal-estar íntimo que o torturava, e deve ter
causado problemas à sua família.
Em controvertido processo judicial, foi declarado incapaz de gerir
os próprios bens e chefiar a família, em 1868. Mas isso não o impediu de continuar a usufruir de
parte de suas posses. Entre outras
iniciativas, teve uma tipografia
em que, na Porto Alegre de final
do século 19, publicou suas obras
em vários fascículos, sob o título,
em sua grafia arrevesada e reformista, de "Ensiqlopèdia" ou "Seis
Mezes de Huma Enfermidade"
(os "seis mezes" se referiam a período que passou preso numa casa de saúde, no Rio de Janeiro, para avaliar sua condição mental,
em virtude do processo).
Era natural da Vila do Triunfo,
tendo nascido em 1829. Cedo tornou-se arrimo de família, devido
à morte do pai republicano, emboscado pelos imperiais durante
a Guerra dos Farrapos. Qorpo-Santo exerceu diversas profissões,
notadamente as de professor e delegado de polícia, em diversas cidades gaúchas, terminando por se
estabelecer, já casado e com filhos, em Porto Alegre. A partir de
1863 adotou a alcunha de Corpo-Santo, dizendo-se uma nova encarnação de vigário desse nome,
que teria vivido na região no século 18. (Nunca encontrei referências a um frade com esse nome
em minhas pesquisas no Rio
Grande do Sul. Entretanto assinale-se que houve, parece, um cura
assim nomeado em Recife.) Propôs uma reforma ortográfica estabelecendo que para cada "som"
haveria apenas uma única "letra",
passando então a grafar seu nome
como Jozè Joaqim de Qampos
Leão Qorpo-Santo.
As atribulações do processo de
interdição -movido pela esposa- o afastaram definitivamente
das profissões que exercia. Em
1868 é preso e enviado ao Rio para
exames. Volta a Porto Alegre, munido de atestados que lhe garantem a saúde mental, dizendo apenas que padece de leves perturbações. Assim mesmo é interditado.
Apesar disso, manteve um armazém na cidade onde se reunia a
intelectualidade boêmia da capital gaúcha. Passou a publicar jornais para defender seus pontos de
vista e contestar a pecha de louco.
Mas as publicações só fizeram
confirmar a pecha entre os contemporâneos. Além do mais,
Qorpo-Santo publicava textos,
em prosa ou poesia, sobre assuntos que não eram considerados literariamente relevantes: receitas,
insetos, lápis, tinta, canivetes etc.,
nem sempre obedecendo às regras de metrificação. Ficou com a
fama de louco, embora manso,
até 1883, quando morreu de tuberculose.
Versos de pé-quebrado
Não passou de todo ao esquecimento, no entanto. Começou,
primeiro, a ser citado nos livros
de evocação de tipos populares da
cidade. Posteriormente, quando
da repercussão do Movimento
Modernista, foi seguidamente
lembrado... pelos passadistas. Diziam estes que a "mania" de escrever com versos de pé-quebrado ou nenhum pé não era coisa
nova. Já havia um "louquinho" lá
nos pampas que fazia isso no século anterior. Mas os modernistas
não lhe deram pelota e Qorpo-Santo entrou num período de relativa hibernação. Suas obras, impressas em cadernos precários,
foram desaparecendo. Os poucos
exemplares restantes acabaram
guardados por colecionadores,
como antiguidades.
Na década de 60, entretanto,
veio a reviravolta. Instigados por
Aníbal Damasceno Ferreira, alunos e professores do então recém-criado curso de arte dramática tiveram acesso a um dos cadernos
de Qorpo-Santo, onde ele imprimira umas quantas pecinhas curtas, na maior parte cômicas
-que eram espantosamente modernas, depois que o teatro do absurdo mandara pelos ares as noções de ação, enredo e personagem convencionais. As primeiras
tentativas de encenação não vingaram. Mas, em 1966, afinal Antonio Carlos Sena dirigiu a montagem de três das comédias: "Mateus e Mateusa", "Eu Sou Vida, Eu
Não Sou Morte" e "As Relações
Naturais", que ficaria como sua
peça mais conhecida, tratando
com uma liberalidade inusitada a
questão das relações extraconjugais.
O sucesso foi imediato e repercutiu logo no Rio e em São Paulo.
Os poetas do movimento concreto interessaram-se por aquele
inesperado precursor. Houve
montagens consagradoras no
Rio. Mas a consagração mesmo
chegou quando a censura federal
proibiu, depois de liberar, a encenação de "As Relações Naturais",
dirigida por Luís Carlos Maciel.
Redivivo, ombro a ombro com os
militantes do momento, Qorpo-Santo entrava na liça contra a ditadura militar. Carlos Drummond de Andrade, ao escrever
seu poema "Relatório de Maio",
publicado no "Correio da Manhã", dedicou-lhe estas comoventes linhas: "Qorpo-Santo é
quem tinha razão/ Naquele
maio".
Depois viriam anos mais serenos: montagens, teses, filmes até.
Guilhermino César organizou a
primeira antologia de peças suas,
publicada em 1969. E o Serviço
Nacional de Teatro publicaria
mais tarde, com preparo do mesmo Guilhermino César, que primeiro estudou de modo sistemático a obra, o "Teatro Completo".
Qorpo-Santo e seu teatro passaram em definitivo a ser parte de
nosso patrimônio artístico e cultural. Numa posição peculiar: autor de um século, fenômeno teatral de outro.
Faltava o resto, que agora começa a ser desvelado, parece, de modo sistemático, pois a organizadora deste volume promete outros.
Este abrange textos do primeiro
dos fascículos da "Ensiqlopèdia"
publicada por Qorpo-Santo. Imprimindo-os em condições precárias, o atribulado autor reunia os
textos meio a esmo, sem ordená-los nem organizá-los. Denise empreendeu uma paciente ordenação temática, dividindo o material
em partes como "Bichos", "Comida", "Cenas da Escrita" etc.
O que vemos ali é o resultado de
vida de um homem que, aparentemente, anotava tudo o que via,
sentia ou lhe acorria. Há textos de
ferina pena, como este: "Cruzes!
Estou hoje tão científico/ Que até
pelos calcanhares sinto entrarem-me/ Pensamentos, idéias e não sei
que mais".
Ao lado de outros verdadeiramente banais. Os poemas de Qorpo-Santo inscrevem-se numa linha de uma poética simples, uma
ou outra vez descendo ao simplório, vez por outra tocando a genialidade, em geral na chave da ironia e na tópica do mundo ao revés, do nonsense, como diz a organizadora. Têm forte e constante
preocupação metalinguística, indagando-se o autor com frequência sobre a natureza da escrita, do
escrever e sobre a "persona" do
escritor.
Para quem estuda Qorpo-Santo, poesia brasileira, século 19, temas como loucura e arte (ressalvando-se sempre que "loucura" é
um papel social, e doença mental
ou perturbação, outra), o volume
preparado por Denise é de leitura
obrigatória. Esperemos os outros
prometidos.
Mas.... há sempre um "mas". Só
que desta vez não é de restrição.
Penso que, ao fim deste paciente
trabalho, seria de bom alvitre
pensar numa "antologia" com "o
melhor" de Qorpo-Santo. Sei que
isso pode parecer arbitrário e, em
certa medida o é, pois esse "melhor" será sempre o "nosso" melhor, do nosso tempo, para um
autor que anotava tudo em jorro.
Mas seria um modo, a meu ver, de
colocar a obra de Qorpo-Santo à
disposição de um público maior.
Veremos. O tempo dirá.
Flávio Aguiar é professor de literatura
brasileira na USP e autor de "Os Homens
Precários - Inovação e Convenção na
Dramaturgia de Qorpo-Santo" (Ed. A Nação / Instituto Estadual do Livro do Rio
Grande do Sul, 1975).
Poemas
Qorpo-Santo
Denise do Espírito Santo (org.)
Contra Capa (Tel. 0/xx/21/236-1999)
382 págs., R$ 37,00
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