São Paulo, sábado, 10 de março de 2001

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O mundo ao revés

Edição organiza produção poética do autor gaúcho Qorpo-Santo

FLÁVIO AGUIAR

Em pertinente edição, chega ao público leitor a primeira publicação extensa de poemas do autor gaúcho José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo, considerado hoje como precursor oitocentista do teatro do absurdo.
Qorpo-Santo era antes de tudo um excêntrico, que foi considerado louco por seus contemporâneos. Aparentemente padecia mesmo de algum mal-estar íntimo que o torturava, e deve ter causado problemas à sua família. Em controvertido processo judicial, foi declarado incapaz de gerir os próprios bens e chefiar a família, em 1868. Mas isso não o impediu de continuar a usufruir de parte de suas posses. Entre outras iniciativas, teve uma tipografia em que, na Porto Alegre de final do século 19, publicou suas obras em vários fascículos, sob o título, em sua grafia arrevesada e reformista, de "Ensiqlopèdia" ou "Seis Mezes de Huma Enfermidade" (os "seis mezes" se referiam a período que passou preso numa casa de saúde, no Rio de Janeiro, para avaliar sua condição mental, em virtude do processo).
Era natural da Vila do Triunfo, tendo nascido em 1829. Cedo tornou-se arrimo de família, devido à morte do pai republicano, emboscado pelos imperiais durante a Guerra dos Farrapos. Qorpo-Santo exerceu diversas profissões, notadamente as de professor e delegado de polícia, em diversas cidades gaúchas, terminando por se estabelecer, já casado e com filhos, em Porto Alegre. A partir de 1863 adotou a alcunha de Corpo-Santo, dizendo-se uma nova encarnação de vigário desse nome, que teria vivido na região no século 18. (Nunca encontrei referências a um frade com esse nome em minhas pesquisas no Rio Grande do Sul. Entretanto assinale-se que houve, parece, um cura assim nomeado em Recife.) Propôs uma reforma ortográfica estabelecendo que para cada "som" haveria apenas uma única "letra", passando então a grafar seu nome como Jozè Joaqim de Qampos Leão Qorpo-Santo.
As atribulações do processo de interdição -movido pela esposa- o afastaram definitivamente das profissões que exercia. Em 1868 é preso e enviado ao Rio para exames. Volta a Porto Alegre, munido de atestados que lhe garantem a saúde mental, dizendo apenas que padece de leves perturbações. Assim mesmo é interditado.
Apesar disso, manteve um armazém na cidade onde se reunia a intelectualidade boêmia da capital gaúcha. Passou a publicar jornais para defender seus pontos de vista e contestar a pecha de louco. Mas as publicações só fizeram confirmar a pecha entre os contemporâneos. Além do mais, Qorpo-Santo publicava textos, em prosa ou poesia, sobre assuntos que não eram considerados literariamente relevantes: receitas, insetos, lápis, tinta, canivetes etc., nem sempre obedecendo às regras de metrificação. Ficou com a fama de louco, embora manso, até 1883, quando morreu de tuberculose.

Versos de pé-quebrado
Não passou de todo ao esquecimento, no entanto. Começou, primeiro, a ser citado nos livros de evocação de tipos populares da cidade. Posteriormente, quando da repercussão do Movimento Modernista, foi seguidamente lembrado... pelos passadistas. Diziam estes que a "mania" de escrever com versos de pé-quebrado ou nenhum pé não era coisa nova. Já havia um "louquinho" lá nos pampas que fazia isso no século anterior. Mas os modernistas não lhe deram pelota e Qorpo-Santo entrou num período de relativa hibernação. Suas obras, impressas em cadernos precários, foram desaparecendo. Os poucos exemplares restantes acabaram guardados por colecionadores, como antiguidades.
Na década de 60, entretanto, veio a reviravolta. Instigados por Aníbal Damasceno Ferreira, alunos e professores do então recém-criado curso de arte dramática tiveram acesso a um dos cadernos de Qorpo-Santo, onde ele imprimira umas quantas pecinhas curtas, na maior parte cômicas -que eram espantosamente modernas, depois que o teatro do absurdo mandara pelos ares as noções de ação, enredo e personagem convencionais. As primeiras tentativas de encenação não vingaram. Mas, em 1966, afinal Antonio Carlos Sena dirigiu a montagem de três das comédias: "Mateus e Mateusa", "Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte" e "As Relações Naturais", que ficaria como sua peça mais conhecida, tratando com uma liberalidade inusitada a questão das relações extraconjugais.
O sucesso foi imediato e repercutiu logo no Rio e em São Paulo. Os poetas do movimento concreto interessaram-se por aquele inesperado precursor. Houve montagens consagradoras no Rio. Mas a consagração mesmo chegou quando a censura federal proibiu, depois de liberar, a encenação de "As Relações Naturais", dirigida por Luís Carlos Maciel. Redivivo, ombro a ombro com os militantes do momento, Qorpo-Santo entrava na liça contra a ditadura militar. Carlos Drummond de Andrade, ao escrever seu poema "Relatório de Maio", publicado no "Correio da Manhã", dedicou-lhe estas comoventes linhas: "Qorpo-Santo é quem tinha razão/ Naquele maio".
Depois viriam anos mais serenos: montagens, teses, filmes até. Guilhermino César organizou a primeira antologia de peças suas, publicada em 1969. E o Serviço Nacional de Teatro publicaria mais tarde, com preparo do mesmo Guilhermino César, que primeiro estudou de modo sistemático a obra, o "Teatro Completo". Qorpo-Santo e seu teatro passaram em definitivo a ser parte de nosso patrimônio artístico e cultural. Numa posição peculiar: autor de um século, fenômeno teatral de outro.
Faltava o resto, que agora começa a ser desvelado, parece, de modo sistemático, pois a organizadora deste volume promete outros.
Este abrange textos do primeiro dos fascículos da "Ensiqlopèdia" publicada por Qorpo-Santo. Imprimindo-os em condições precárias, o atribulado autor reunia os textos meio a esmo, sem ordená-los nem organizá-los. Denise empreendeu uma paciente ordenação temática, dividindo o material em partes como "Bichos", "Comida", "Cenas da Escrita" etc.
O que vemos ali é o resultado de vida de um homem que, aparentemente, anotava tudo o que via, sentia ou lhe acorria. Há textos de ferina pena, como este: "Cruzes! Estou hoje tão científico/ Que até pelos calcanhares sinto entrarem-me/ Pensamentos, idéias e não sei que mais".
Ao lado de outros verdadeiramente banais. Os poemas de Qorpo-Santo inscrevem-se numa linha de uma poética simples, uma ou outra vez descendo ao simplório, vez por outra tocando a genialidade, em geral na chave da ironia e na tópica do mundo ao revés, do nonsense, como diz a organizadora. Têm forte e constante preocupação metalinguística, indagando-se o autor com frequência sobre a natureza da escrita, do escrever e sobre a "persona" do escritor.
Para quem estuda Qorpo-Santo, poesia brasileira, século 19, temas como loucura e arte (ressalvando-se sempre que "loucura" é um papel social, e doença mental ou perturbação, outra), o volume preparado por Denise é de leitura obrigatória. Esperemos os outros prometidos.
Mas.... há sempre um "mas". Só que desta vez não é de restrição. Penso que, ao fim deste paciente trabalho, seria de bom alvitre pensar numa "antologia" com "o melhor" de Qorpo-Santo. Sei que isso pode parecer arbitrário e, em certa medida o é, pois esse "melhor" será sempre o "nosso" melhor, do nosso tempo, para um autor que anotava tudo em jorro. Mas seria um modo, a meu ver, de colocar a obra de Qorpo-Santo à disposição de um público maior.
Veremos. O tempo dirá.


Flávio Aguiar é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Os Homens Precários - Inovação e Convenção na Dramaturgia de Qorpo-Santo" (Ed. A Nação / Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, 1975).


Poemas
Qorpo-Santo
Denise do Espírito Santo (org.)
Contra Capa (Tel. 0/xx/21/236-1999)
382 págs., R$ 37,00


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