São Paulo, sábado, 10 de março de 2001

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Sábia tristeza

Songbook contém manuscritos de letras, partituras e cartas do compositor Tom Jobim

JOSÉ MIGUEL WISNIK

 "Eu sou apenas um pobre amador/ apaixonado/ um aprendiz do teu amor."
"Luíza", Tom Jobim

Ter nas mãos o "Cancioneiro Jobim" não deixa de ser algo parecido com um sonho. Não me refiro só às fotos que acompanham o texto biográfico, aos manuscritos de letras, partituras e cartas, que pontuam com índices de interesse variado a sequência narrativa, além de um prefácio do qual será preciso falar com vagar, tudo primorosamente desenhado do ponto de vista gráfico. É que ali estão as partituras, em cristalina linguagem pianística, de um conjunto de cerca de 40 das mais importantes canções de Tom Jobim.
Ao contrário da música de concerto, que tem na partitura uma referência obrigatória, a música popular não se apóia necessariamente na escrita. Partituras de canções resumem-se geralmente a uma sumária linha melódica acompanhada de cifras indicativas de acordes, e costumam ser livremente alteradas e rearranjadas. Sem deixar de pertencer a esse universo, as músicas de Tom Jobim exigem outro tratamento. As sutilezas harmônicas, incapturáveis pelas cifras rotineiras, os movimentos internos aos encadeamentos, as notas milimetricamente antecipadas ou adiadas, as introduções e os interlúdios instrumentais, com suas modulações e desenvolvimentos inesperados, os contracantos e comentários sugeridos, tudo isso é inerente a essas canções e compõe junto com a melodia e a letra a sua graça e riqueza irredutíveis.
Fazendo justiça a essa natureza, as partituras do "Cancioneiro Jobim" são ricas em detalhes e ao mesmo tempo transparentes, registrando o essencial daquilo que, no gênero, é passível de escritura. O "Cancioneiro" anuncia também um conjunto de cinco volumes nos quais se terá a obra completa de Tom -o quarto deles, abrangendo o período de 1971 a 1982, já lançado juntamente. Coloca ao alcance das mãos uma imensa gama de pequenas e grandes maravilhas que conhecemos de ouvido, mas que, além de escapadiças por natureza, estariam entregues, com o tempo, ao desfiguramento e à redução banalizante. Sem exagero, é como se resgatássemos em filme uma coleção de gols de Pelé em câmera lenta.
Tal resultado foi possível graças à intimidade que Paulo Jobim, instrumentista, compositor e arranjador, filho e companheiro musical de Tom, mantém com o repertório há tantos anos e à competência com que o decantou, transcreveu e arranjou para piano (além de aglutinar, em alguns casos, os esforços de outros arranjadores históricos, como Claus Ogerman e Eumir Deodato).

Nitidez de um clássico
Um efeito curioso do volume como um todo é a sensação de que Tom Jobim esplende aos nossos olhos, além de já fazê-lo aos nossos ouvidos. Por um lado, com a nitidez acabada e fluente de um clássico, estampada nas partituras. Por outro, com a beleza que ele próprio empresta ao halo de anos dourados que irradia das fotos, cartas, manuscritos, rascunhos e entrecho biográfico. Nesses, embora organizados do ponto de vista da consagração, pode-se intuir o processo formativo, os tateios e as derivas de cada momento inacabado ao longo da trajetória, e que fazem pensar em como a bossa nova foi possível.
E, nesse ponto, o "Prefácio" de Lorenzo Mammì é, mais uma vez, uma contribuição fundamental para o esclarecimento do tema. O texto desdobra, em chave especificamente jobiniana, algumas das questões cruciais já trazidas à tona por Lorenzo no ensaio "João Gilberto e a Bossa Nova", publicado pela revista "Novos Estudos" (nš 34, novembro de 1992). São recorrentes nos dois textos a identificação de elementos finos da dicção lírico-instrumental de Tom Jobim e João Gilberto, o contraponto da bossa nova com o jazz, além do entendimento da bossa nova como expressão de ambivalências, singularidades, possibilidades e impasses do Brasil.
Lorenzo Mammì retoma à idéia de que a melodia jobiniana é feita muitas vezes de frases extensas, "tortuosas e assimétricas", livres, escapadiças e modulantes, que não se esgotam sem percorrer o arco de uma longa preparação e de um longo esvaziamento. Nesse movimento, elas parecem entregar-se ao escoar do tempo, abandonando-se a uma espécie de tristeza sábia da qual extraem um saldo flutuante de experiência e beleza. Ouça-se o "Retrato em Branco e Preto" pensando nisso. O arco melódico, distendido, vai se deparando com certas notas ou acordes surpreendentes, cuja aparição se faz, no entanto, curtida e sem alarde, como parte natural do processo.
A tendência expansiva das melodias é contrabalançada por outra: alterações mínimas no movimento da harmonia, deslizando em semitons, vão transfigurando a cor emocional de pequenas células melódicas que se repetem, dando-lhes uma dinâmica e uma dimensão emocional que a sua singeleza primeira não prometeria. "A insensatez/ que você fez": ao longo dessa frase, lentamente escandida em apenas duas notas melódicas, a harmonia muda três vezes e vai aprofundando a cada mudança a irradiação afetiva das palavras. O mesmo princípio está na base tanto de "Corcovado" quanto dos recortes nítidos de "Águas de Março", do motivo obstinado do "Retrato em Branco e Preto" ou da maravilhosa escalada ascensional em terças de "Eu Sei Que Vou Te Amar".

Queda em semitons
As canções são expansivas, mas nucleadas: desenvolvem-se refugando a mera repetição, mas a partir de células geradoras precisas e sintéticas. O "Samba de uma Nota Só" é a versão compacta desse método: se a melodia não se move, a harmonia desliza numa queda em semitons que, no entanto, flutua. Na segunda parte, a melodia esvoaça com aquela liberdade modulante que o "Desafinado" explora, por sua vez, num isomorfismo irônico entre música e letra.
A temporalidade das músicas de Tom Jobim participa de uma intuição lírica próxima da conversa informal, como uma sequência de momentos insubstituíveis, pontilhada de significados afetivos únicos e irrepetíveis. Exatamente por isso elas não se prestam, segundo Mammì, à improvisação jazzística. Um tema jazzístico consiste num núcleo harmônico mais duro (maleável, mas solidamente definido), que permite e pede improvisação, ao contrário do núcleo evasivo dos temas jobinianos. A temporalidade jazzística quer triunfar sobre o tempo, dominando-o com o gesto afirmativo da competência instrumental ostensiva, sem deixar de mimetizar, com a alta definição dos seus metais, uma versão liberada do modelo da fábrica e da produção industrial.
O jazz luta contra o tempo imitando o trabalho e testemunha uma sociedade ostensivamente ligada ao valor profissionalístico, ao qual se rende a própria intimidade doméstica. A bossa nova, ao contrário, com sua instrumentação timbristicamente atenuada, suas cordas e madeiras, suas melodias cambiantes, suas síncopas relaxadas ao mesmo tempo em que precisas, tendendo a deslizar para antes ou depois das marcas do compasso, com as senhas cordiais de seus diminutivos (Tonzinho, Joãozinho, Poetinha) remeteria à decantação de um mundo onde o valor, mesmo para a vida pública, é o das relações pessoais e informais, entre as quais se cultivaria subliminarmente não o profissionalismo, mas um doce e consentido amadorismo.
Mas nesse caso o pulo-do-gato está em que, em vez de dar um tratamento amadorístico à nossa propensão amadora (em sentido negativo), Tom e João, com Vinícius, quintessenciam esse traço com rigor obstinado, elevando aquilo mesmo que seria um índice do nosso eterno fracasso, inconsequência ou exotismo a um patamar raro de eficácia artística. Não me refiro somente ao sucesso comercial, aliás considerável no caso de um compositor que durante longo tempo só foi superado, em número de execuções, pelos Beatles, mas ao grau de densidade estética, mundialmente reconhecido, que emprestou ao sucesso comercial.
Segundo Lorenzo Mammì, Tom Jobim, "profissional desde sempre, parece aceitar o pendor amadorístico da bossa nova como uma convenção de gênero", o que lhe permite no entanto, manter-se em equilíbrio, "com indiscutível genialidade, (...) resistindo às tentações complementares de um tecnicismo jazzístico e de uma vulgarização populista".

O jazz e a bossa nova
Diferentemente daquela crítica que vê a bossa nova como música brasileira jazificada, Lorenzo Mammì, sem deixar de reconhecer a imbricação, identifica uma série de traços simetricamente opostos entre as duas manifestações, que dariam muito o que pensar, sob a condição de serem testados e matizados também, alguma vez, no confronto mais especificamente cancional com a produção de Gershwin e Cole Porter.
De um lado, a vocação instrumental do jazz leva a voz a comportar-se como instrumento improvisador, de outro, a vocação lírica da música brasileira faz o instrumento render-se à voz e à entoação da palavra. Os jazzistas fazem variação: mudam o revestimento rítmico e melódico de um tema, sem alterar-lhe a estrutura métrica e harmônica (a forma geral determina o detalhe). Tom Jobim desenvolve: parte de um detalhe, "uma pequena célula melódica, para criar longas sequências que nunca voltam exatamente sobre elas mesmas" (é o detalhe que engendra as formas). De um lado, o tempo dominado, de outro, o tempo vivido; de um lado, o trabalho e a produção industrial, de outro, a conversa e a suspensão das marcas do trabalho, ou ainda, numa síntese mais vertiginosa, de um lado, a "vontade de potência", de outro, a "promessa de felicidade", vale dizer, a possibilidade impossível, que não é vã, pois anuncia o que promete realizando-o no seu próprio corpo estético.
A bossa nova "nos salvou na dimensão da eternidade", diz um samba de Gil e Caetano -ela é uma promessa de Brasil que o Brasil tem que fazer por merecer. Mammì retoma a bola, "cum granu salis": "A música de Tom Jobim (...) é uma promessa que o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu". Ele explica: a bossa nova expressa um momento de passagem, nos anos 50, em que o rápido processo de modernização permite admitir um "humanismo doce", tecnológico e arejado, que decanta uma sociabilidade tradicionalmente avessa aos signos ostensivos do trabalho, sublimando o que há nisso de herança escravista e encarnando "a esperança de uma modernidade (...) lúdica e eficiente como um drible de Pelé, natural e culta como um jardim de Burle Marx, exata e solta" como uma melodia de Tom Jobim. Não é pouco. Configura-se aí um Macunaíma transcendental, aparentemente capaz de, no momento breve da oportunidade histórica, driblar o limite concreto e entrar "na era dos consumos sem passar pela fase heróica e sombria da industrialização".
Mas a industrialização brutal, a violência crescente e a vulgarização obrigada, que se seguiram e que em princípio anulariam os conteúdos etéreos e aparentes desse lirismo, não impedem, segundo Mammì, que algo da generosa potência que há nele continue a ressurgir teimosamente, num espaço amplo e pouco determinado que vai das músicas, dos livros e das artes aos campos de futebol. Qual é a natureza dessa teima: pura insistência inconsistente e vã ou força profunda da singularidade plural da cultura?
Eu não tenho dúvida em apostar na segunda alternativa. Se for para jogar Tom Jobim fora, e com ele tudo o que de melhor se produziu no Brasil, é preciso desistir também de qualquer projeto de educação, de desconcentração de renda, de equacionamento da economia no quadro interno e externo, de desarmar o circuito vicioso da violência e da desordem em progresso. Num país em que o que é de primeira linha não está no primeiro plano, João Gilberto deu esse recado, a seu modo, àquela parte da elite paulista que o vaiava no famoso show do Credicard Hall (ou Credicall Hard). Sobre o qual Tom Zé compôs, bem a propósito, "Vaia de Bêbado".


José Miguel Wisnik é compositor, professor de literatura brasileira na USP e autor, entre outros livros, de "O Som e o Sentido" (Cia. das Letras).

Cancioneiro Jobim - Vol. 4
Organizador: Paulo Jobim
Prefácio: Lorenzo Mammì
Casa da Palavra
(Tel. 0/xx/21/215-2382)
216 págs., R$ 45,00


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