|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Sábia tristeza
Songbook contém
manuscritos de letras,
partituras e cartas
do compositor Tom Jobim
JOSÉ MIGUEL WISNIK
"Eu sou apenas um pobre amador/ apaixonado/ um aprendiz do teu amor."
"Luíza", Tom Jobim
Ter nas mãos o "Cancioneiro Jobim"
não deixa de ser algo parecido com um
sonho. Não me refiro só às fotos que
acompanham o texto biográfico, aos manuscritos de letras, partituras e cartas,
que pontuam com índices de interesse
variado a sequência narrativa, além de
um prefácio do qual será preciso falar
com vagar, tudo primorosamente desenhado do ponto de vista gráfico. É que ali
estão as partituras, em cristalina linguagem pianística, de um conjunto de cerca
de 40 das mais importantes canções de
Tom Jobim.
Ao contrário da música de concerto,
que tem na partitura uma referência obrigatória, a música popular não se apóia
necessariamente na escrita. Partituras de
canções resumem-se geralmente a uma
sumária linha melódica acompanhada de
cifras indicativas de acordes, e costumam
ser livremente alteradas e rearranjadas.
Sem deixar de pertencer a esse universo,
as músicas de Tom Jobim exigem outro
tratamento. As sutilezas harmônicas, incapturáveis pelas cifras rotineiras, os movimentos internos aos encadeamentos, as
notas milimetricamente antecipadas ou
adiadas, as introduções e os interlúdios
instrumentais, com suas modulações e
desenvolvimentos inesperados, os contracantos e comentários sugeridos, tudo
isso é inerente a essas canções e compõe
junto com a melodia e a letra a sua graça e
riqueza irredutíveis.
Fazendo justiça a essa natureza, as partituras do "Cancioneiro Jobim" são ricas
em detalhes e ao mesmo tempo transparentes, registrando o essencial daquilo
que, no gênero, é passível de escritura. O
"Cancioneiro" anuncia também um conjunto de cinco volumes nos quais se terá a
obra completa de Tom -o quarto deles,
abrangendo o período de 1971 a 1982, já
lançado juntamente. Coloca ao alcance
das mãos uma imensa gama de pequenas
e grandes maravilhas que conhecemos de
ouvido, mas que, além de escapadiças
por natureza, estariam entregues, com o
tempo, ao desfiguramento e à redução
banalizante. Sem exagero, é como se resgatássemos em filme uma coleção de gols
de Pelé em câmera lenta.
Tal resultado foi possível graças à intimidade que Paulo Jobim, instrumentista,
compositor e arranjador, filho e companheiro musical de Tom, mantém com o
repertório há tantos anos e à competência com que o decantou, transcreveu e arranjou para piano (além de aglutinar, em
alguns casos, os esforços de outros arranjadores históricos, como Claus Ogerman
e Eumir Deodato).
Nitidez de um clássico
Um efeito curioso do volume como um
todo é a sensação de que Tom Jobim esplende aos nossos olhos, além de já fazê-lo aos nossos ouvidos. Por um lado, com
a nitidez acabada e fluente de um clássico, estampada nas partituras. Por outro,
com a beleza que ele próprio empresta ao
halo de anos dourados que irradia das fotos, cartas, manuscritos, rascunhos e entrecho biográfico. Nesses, embora organizados do ponto de vista da consagração, pode-se intuir o processo formativo,
os tateios e as derivas de cada momento
inacabado ao longo da trajetória, e que
fazem pensar em como a bossa nova foi
possível.
E, nesse ponto, o "Prefácio" de Lorenzo
Mammì é, mais uma vez, uma contribuição fundamental para o esclarecimento
do tema. O texto desdobra, em chave especificamente jobiniana, algumas das
questões cruciais já trazidas à tona por
Lorenzo no ensaio "João Gilberto e a Bossa Nova", publicado pela revista "Novos
Estudos" (nš 34, novembro de 1992). São
recorrentes nos dois textos a identificação de elementos finos da dicção lírico-instrumental de Tom Jobim e João Gilberto, o contraponto da bossa nova com
o jazz, além do entendimento da bossa
nova como expressão de ambivalências,
singularidades, possibilidades e impasses
do Brasil.
Lorenzo Mammì retoma à idéia de que
a melodia jobiniana é feita muitas vezes
de frases extensas, "tortuosas e assimétricas", livres, escapadiças e modulantes,
que não se esgotam sem percorrer o arco
de uma longa preparação e de um longo
esvaziamento. Nesse movimento, elas
parecem entregar-se ao escoar do tempo,
abandonando-se a uma espécie de tristeza sábia da qual extraem um saldo flutuante de experiência e beleza. Ouça-se o
"Retrato em Branco e Preto" pensando
nisso. O arco melódico, distendido, vai se
deparando com certas notas ou acordes
surpreendentes, cuja aparição se faz, no
entanto, curtida e sem alarde, como parte
natural do processo.
A tendência expansiva das melodias é
contrabalançada por outra: alterações
mínimas no movimento da harmonia,
deslizando em semitons, vão transfigurando a cor emocional de pequenas células melódicas que se repetem, dando-lhes
uma dinâmica e uma dimensão emocional que a sua singeleza primeira não prometeria. "A insensatez/ que você fez": ao
longo dessa frase, lentamente escandida
em apenas duas notas melódicas, a harmonia muda três vezes e vai aprofundando a cada mudança a irradiação afetiva
das palavras. O mesmo princípio está na
base tanto de "Corcovado" quanto dos
recortes nítidos de "Águas de Março", do
motivo obstinado do "Retrato em Branco
e Preto" ou da maravilhosa escalada ascensional em terças de "Eu Sei Que Vou
Te Amar".
Queda em semitons
As canções são expansivas, mas nucleadas: desenvolvem-se refugando a mera
repetição, mas a partir de células geradoras precisas e sintéticas. O "Samba de
uma Nota Só" é a versão compacta desse
método: se a melodia não se move, a harmonia desliza numa queda em semitons
que, no entanto, flutua. Na segunda parte, a melodia esvoaça com aquela liberdade modulante que o "Desafinado" explora, por sua vez, num isomorfismo irônico
entre música e letra.
A temporalidade das músicas de Tom
Jobim participa de uma intuição lírica
próxima da conversa informal, como
uma sequência de momentos insubstituíveis, pontilhada de significados afetivos
únicos e irrepetíveis. Exatamente por isso
elas não se prestam, segundo Mammì, à
improvisação jazzística. Um tema jazzístico consiste num núcleo harmônico
mais duro (maleável, mas solidamente
definido), que permite e pede improvisação, ao contrário do núcleo evasivo dos
temas jobinianos. A temporalidade jazzística quer triunfar sobre o tempo, dominando-o com o gesto afirmativo da
competência instrumental ostensiva,
sem deixar de mimetizar, com a alta definição dos seus metais, uma versão liberada do modelo da fábrica e da produção
industrial.
O jazz luta contra o tempo imitando o
trabalho e testemunha uma sociedade ostensivamente ligada ao valor profissionalístico, ao qual se rende a própria intimidade doméstica. A bossa nova, ao contrário, com sua instrumentação timbristicamente atenuada, suas cordas e madeiras,
suas melodias cambiantes, suas síncopas
relaxadas ao mesmo tempo em que precisas, tendendo a deslizar para antes ou
depois das marcas do compasso, com as
senhas cordiais de seus diminutivos
(Tonzinho, Joãozinho, Poetinha) remeteria à decantação de um mundo onde o
valor, mesmo para a vida pública, é o das
relações pessoais e informais, entre as
quais se cultivaria subliminarmente não
o profissionalismo, mas um doce e consentido amadorismo.
Mas nesse caso o pulo-do-gato está em
que, em vez de dar um tratamento amadorístico à nossa propensão amadora
(em sentido negativo), Tom e João, com
Vinícius, quintessenciam esse traço com
rigor obstinado, elevando aquilo mesmo
que seria um índice do nosso eterno fracasso, inconsequência ou exotismo a um
patamar raro de eficácia artística. Não me
refiro somente ao sucesso comercial,
aliás considerável no caso de um compositor que durante longo tempo só foi superado, em número de execuções, pelos
Beatles, mas ao grau de densidade estética, mundialmente reconhecido, que emprestou ao sucesso comercial.
Segundo Lorenzo Mammì, Tom Jobim,
"profissional desde sempre, parece aceitar o pendor amadorístico da bossa nova
como uma convenção de gênero", o que
lhe permite no entanto, manter-se em
equilíbrio, "com indiscutível genialidade,
(...) resistindo às tentações complementares de um tecnicismo jazzístico e de
uma vulgarização populista".
O jazz e a bossa nova
Diferentemente daquela crítica que vê a
bossa nova como música brasileira jazificada, Lorenzo Mammì, sem deixar de reconhecer a imbricação, identifica uma série de traços simetricamente opostos entre as duas manifestações, que dariam
muito o que pensar, sob a condição de serem testados e matizados também, alguma vez, no confronto mais especificamente cancional com a produção de
Gershwin e Cole Porter.
De um lado, a vocação instrumental do
jazz leva a voz a comportar-se como instrumento improvisador, de outro, a vocação lírica da música brasileira faz o instrumento render-se à voz e à entoação da
palavra. Os jazzistas fazem variação: mudam o revestimento rítmico e melódico
de um tema, sem alterar-lhe a estrutura
métrica e harmônica (a forma geral determina o detalhe). Tom Jobim desenvolve: parte de um detalhe, "uma pequena
célula melódica, para criar longas sequências que nunca voltam exatamente
sobre elas mesmas" (é o detalhe que engendra as formas). De um lado, o tempo
dominado, de outro, o tempo vivido; de
um lado, o trabalho e a produção industrial, de outro, a conversa e a suspensão
das marcas do trabalho, ou ainda, numa
síntese mais vertiginosa, de um lado, a
"vontade de potência", de outro, a "promessa de felicidade", vale dizer, a possibilidade impossível, que não é vã, pois
anuncia o que promete realizando-o no
seu próprio corpo estético.
A bossa nova "nos salvou na dimensão
da eternidade", diz um samba de Gil e
Caetano -ela é uma promessa de Brasil
que o Brasil tem que fazer por merecer.
Mammì retoma a bola, "cum granu salis": "A música de Tom Jobim (...) é uma
promessa que o Brasil fez ao mundo, e
ainda não cumpriu". Ele explica: a bossa
nova expressa um momento de passagem, nos anos 50, em que o rápido processo de modernização permite admitir
um "humanismo doce", tecnológico e
arejado, que decanta uma sociabilidade
tradicionalmente avessa aos signos ostensivos do trabalho, sublimando o que
há nisso de herança escravista e encarnando "a esperança de uma modernidade (...) lúdica e eficiente como um drible
de Pelé, natural e culta como um jardim
de Burle Marx, exata e solta" como uma
melodia de Tom Jobim. Não é pouco.
Configura-se aí um Macunaíma transcendental, aparentemente capaz de, no
momento breve da oportunidade histórica, driblar o limite concreto e entrar "na
era dos consumos sem passar pela fase
heróica e sombria da industrialização".
Mas a industrialização brutal, a violência crescente e a vulgarização obrigada,
que se seguiram e que em princípio anulariam os conteúdos etéreos e aparentes
desse lirismo, não impedem, segundo
Mammì, que algo da generosa potência
que há nele continue a ressurgir teimosamente, num espaço amplo e pouco determinado que vai das músicas, dos livros e
das artes aos campos de futebol. Qual é a
natureza dessa teima: pura insistência inconsistente e vã ou força profunda da singularidade plural da cultura?
Eu não tenho dúvida em apostar na segunda alternativa. Se for para jogar Tom
Jobim fora, e com ele tudo o que de melhor se produziu no Brasil, é preciso desistir também de qualquer projeto de
educação, de desconcentração de renda,
de equacionamento da economia no
quadro interno e externo, de desarmar o
circuito vicioso da violência e da desordem em progresso. Num país em que o
que é de primeira linha não está no primeiro plano, João Gilberto deu esse recado, a seu modo, àquela parte da elite paulista que o vaiava no famoso show do
Credicard Hall (ou Credicall Hard). Sobre o qual Tom Zé compôs, bem a propósito, "Vaia de Bêbado".
José Miguel Wisnik é compositor, professor de literatura brasileira na USP e autor, entre outros livros, de "O Som e o Sentido" (Cia. das Letras).
Cancioneiro Jobim - Vol. 4
Organizador: Paulo Jobim
Prefácio: Lorenzo Mammì
Casa da Palavra
(Tel. 0/xx/21/215-2382)
216 págs., R$ 45,00
Texto Anterior: Flávio Aguiar: O mundo ao revés Próximo Texto: Réplicas - Emir Sader: Dois lados Índice
|