São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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O comunismo difícil


"A Complicação", livro do filósofo Claude Lefort recém-lançado na França, reexamina o fenômeno do comunismo soviético


RUY FAUSTO

Claude Lefort é, sem exagero, um dos heróis do pensamento socialista do século 20. Quando se fizer o balanço do século, a lucidez não aparecerá como a coisa no mundo mais bem distribuída. Para falar como Merleau-Ponty, nos ares do tempo que o século balizou, não circulou muita verdade. Mais do que o século 19, sem dúvida, foi o tempo dos ideais instrumentalizados, dos projetos generosos postos de cabeça para baixo, dos quiproquós políticos. Muito poucos foram aqueles que conseguiram nadar contra a corrente.
Rompendo com o trotskismo em 1948, quando ainda não tinha 25 anos, Claude Lefort, ex-aluno de Merleau-Ponty, seguiu um itinerário "sui generis" de universitário, homem de ação e pensador político. Com Cornelius Castoriadis, funda naquele ano, em Paris, o grupo Socialismo ou Barbárie, que propõe uma política socialista alternativa, numa época de bloqueio teórico e prático das esquerdas. Socialismo ou Barbárie é um caso único. Contraprova da tese de Theodor Adorno sobre a quase impossibilidade de uma práxis autêntica no ""mundo administrado" do pós-guerra? Ou refutação da tese? Se houve fracasso prático, a prática do grupo permitiu grandes avanços da teoria (ou da consciência em geral), contraprova isso sim do cruzamento complicado desses dois registros, que se supunham, ""outrora", unidos. Assim como a ""teoria crítica" frankfurtiana teve um impacto prático apreciável, os franco-atiradores do que era sem dúvida a autêntica esquerda antiburocrática acabaram fazendo um estrago considerável -a longo prazo, bem entendido- nas construções teóricas bem assentadas das ortodoxias revolucionárias.
Curioso como se escreveu pouco sobre Lefort ou Castoriadis (também é pouco o que se publicou sobre Adorno), pelo menos diante da avalanche bibliográfica consagrada a outros grandes do século. A política crítica e a teoria crítica prestam-se mal à hermenêutica universitária? É possível. De qualquer modo, os problemas que elas levantam têm uma dimensão histórica pouco compatível com as exigências usuais de um trabalho universitário.
""La Complication - Retour sur le Communisme" (que se poderia traduzir por ""A Complicação - Reexaminando -ou Revisitando- o Communismo") é o último de uma série de ensaios políticos reunidos em livros, alguns dos quais foram traduzidos para o português. Além da promessa de um grande estudo sobre Maquiavel, anunciado por Merleau-Ponty -o texto, já famoso no momento da publicação, veio à luz em 1972 (""Le Travail de l'Oeuvre. Machiavel")-, Lefort se tornou conhecido pela polêmica que teve com Sartre a propósito do comunismo e pelas referências feitas a ela por Merleau-Ponty em ""As Aventuras da Dialética" (1955).
Provavelmente, foi também por causa disso que foi convidado a vir ao Brasil em 1953. Para ilustrar o quanto Lefort e o grupo eram alvo de fogo cerrado vindo de todos os lados, poderia lembrar algumas das observações que ouvi, por ocasião da sua chegada ao Brasil. ""Isto não é artigo de importação", dizia a seus colegas brasileiros um professor de letras francês, bom especialista em sua área e muito conservador em política. ""Lefort marxista?", perguntava-se ironicamente um jovem dirigente trotskista, depois de uma primeira conversa com o recém-chegado, em face do rumor que se espalhava de que Claude Lefort, professor marxista, viera dar aulas na USP. Não tive notícia das reações da gente do PCB, mas salvo efeitos da tradição de cordialidade respeitosa e subdesenvolvida diante dos intelectuais europeus, eles não haviam de exultar com a chegada de um ex-trotskista, dissidente pelo lado errado, alguém que lhes deveria aparecer -horror supremo- como uma espécie de trotskista elevado à potência...
""A Complicação" -título feliz: "(O regime comunista de tipo totalitário) põe à prova a complicação da história"- tem como ponto de partida dois livros sobre o comunismo: ""O Passado de uma Ilusão" (1995), de François Furet, e ""A Tragédia Soviética - História do Socialismo na Rússia 1917-1991" (original americano, 1994, tradução francesa, 1995), de Martin Malia.
Há uma convergência nas teses desses dois livros. Embora afirmando a originalidade do regime da URSS -""(Ele) não tem precedente na história. Não se parece com nada do que existiu (...), nenhuma das características do bolchevismo, em sua segunda versão, é inteligível a partir de exemplos do passado, ou no interior de um quadro conceitual familiar" (Furet, citado por Lefort)-, François Furet concebe a história do comunismo como fruto de uma idéia, mais precisamente, de uma ""ilusão": ""(Para Furet) -escreve Lefort- uma "ilusão" (...) é a primeira e constante mola propulsora do sistema soviético e da política dos partidos que o haviam erigido em modelo no Ocidente". Em segundo lugar, o regime burocrático aparece como um ""parênteses". A ""ilusão" do comunismo pertence ao passado.
Quanto a Martin Malia, se afirma a existência de uma ""partidocracia", ele a remete a uma ""ideocracia". O sistema soviético seria a ""consequência não desejada, mas inevitável" da tentativa de realizar uma utopia. Segundo Malia, o sistema criado pelo movimento de Outubro não mereceria nem mesmo o nome de sociedade, apenas o de ""regime, de regime ideocrático". E, se ele terminou ""como um castelo de cartas" (Malia, citado por Lefort), ""é porque nunca foi mais do que um castelo de cartas".
Em resumo, nos dois livros, publicados quase ao mesmo tempo, o que exclui a possibilidade de influências, o regime burocrático aparece como digressão ou parênteses da história passada -o seu fim nos daria de resto a chave para o seu julgamento- e como produto de uma idéia ilusória. Essa idéia é a utopia marxista do socialismo, a qual tem as suas raízes no igualitariamo, no jacobinismo e, mais remotamente, ""no racionalismo e no liberalismo do século 18".

A OBRA
La Complication - Retour sur le Communisme Claude Lefort Fayard, 260 págs. Onde encomendar: Livraria Francesa (Tel. 011/829-7956)



Se Furet e Malia são as primeiras referências, Lefort incorpora também dois dos maiores estudiosos do ""totalitarismo" e da burocracia, Raymond Aron e Hannah Arendt, além de Tocqueville e La Boétie entre os clássicos do pensamento político, e Kautsky, Trotsky, Souvarine, Ciliga, Soljenitsyne, Ferro, Wittfogel, o crítico Harold Rosemberg, entre outros, para o século 20. Acrescente-se o que ele tira da sua experiência pessoal. As anedotas históricas são reduzidas a três episódios: as invectivas dos comunistas contra Edgar Morin em 1956, quando, numa reunião promovida pelos intelectuais contra a guerra da Argélia, Morin apresenta uma moção contra a intervenção soviética na Hungria; o ""meeting" organizado pelo PCF em 1955, na ""Mutualité" de Paris, para condenar ""As Aventuras da Dialética", de Merleau-Ponty; e a violência dos militantes do PCF, no imediato pós-guerra, por ocasião do lançamento de um candidato trotskista, que o jovem Lefort apresentara -em especial, a violência contra uma ex-prisioneira em Ravensbrück, cuja carta de deportada exibida pela vítima como prova de que não era uma ""hitlero-trotskista", é rasgada e lançada em pedaços ao seu rosto...
Como na opinião de Aron e Hannah Arendt, e também na de Furet, a sociedade e o regime burocrático representam para Lefort uma forma inteiramente nova, ""um novo tipo de sociedade". Não se trata de capitalismo de Estado, ""por tentadora que seja a hipótese", dada a ausência ""de mercado que implique concorrência e (...) trabalho livre". Ele também não é uma tirania, a qual ""se exerce sob o signo do arbítrio"; nem um despotismo, ""o poder do déspota" depende ""de Deus ou dos deuses"; nem uma ditadura moderna, a qual ""nasce de circunstâncias extraordinárias", quando ""as classes dominantes não podem se manter" "por meios pacíficos"". Também não pode ser posto no plano dos governos que encontramos nos países ""em desenvolvimento", como pretendem certos sovietólogos. As diferenças entre os dois casos são muito grandes. Além disso, como já sugeria Aron, a própria burocracia ocidental é em parte uma falsa pista: no modelo russo, "os dirigentes do trabalho (...) são todos integrados em uma administração" e não ""dispersos em empresas autônomas" (Aron, cit. por Lefort).
Há aí um resultado que, sem ser muito novo, é fundamental. Nada dificultou mais a compreensão do sistema burocrático do que a idéia de que, no arsenal das teorias políticas clássicas (incluindo a de Marx), encontrar-se-iam elementos suficientes para entendê-lo. Com relação a Marx, eu observaria: uma coisa é a prática desastrosa de subsumir a burocracia a algum momento da apresentação do ""Capital" ou da obra de Marx, outra coisa é utilizar o ""corpus" daquele grande crítico do capitalismo para, a partir das figuras lógicas que nos oferece (mas servindo-se também de outros elementos), tentar uma teoria diferencial da burocracia como forma social radicalmente nova. ""Os trotskistas (que acreditavam tratar-se de um "Estado operário com deformações burocráticas") não compreenderão nunca, diante do espetáculo do stalinismo, que eles estavam diante de um regime irredutível às categorias tradicionais". E não só os trotskistas.
Para dar um exemplo, veja-se o caso interessante de um teórico alemão bem conhecido em nosso meio, que considera o mundo burocrático como ""ramo lateral da modernização burguesa" (Robert Kurz, ""O Colapso da Modernização", 1993). O que significa defini-lo como ""sistema produtor de mercadorias". Às vezes, o autor chega mesmo a falar do ""caráter capitalista" dele, como se a presença do mercado -na realidade um quase-mercado- oferecesse a essência de uma sociedade do tipo da que havia na URSS nos anos 30. No caso do teórico alemão -diga-se de passagem-, o que o desorienta não é propriamente a vontade de subsumir novas formas históricas sob um momento qualquer do ""Livro"; mas a tendência simplificadora em considerar as formas sociais contemporâneas com o olhar de Sirius, isto é, do ideal -mais do que do ""pressuposto", como fazia Marx, que por isso mesmo, ou apesar de tudo, examinava de perto as formas históricas- de uma comunidade sem mercadorias, sem dinheiro e, pelo menos nos epígonos, sem formas políticas. (Sob esse último aspecto, as diatribes contra a democracia, de estilo neo-soreliano -alusão a Georges Sorel, teórico ""anarco-autoritário" das extremas-esquerda e direita-, por parte de certos epígonos, são inquietantes). Em geral, tem-se aí a idéia enganosa, da qual Lefort escapa, segundo a qual as conexões existentes no mercado mundial permitem por si mesmas homogeneizar sem mais (ou com muito pouco mais) as diferentes formas sociais que coexistiram e em parte coexistem neste século.
Lefort ataca o psicologismo que faz de uma ""crença" o elemento propulsor do sistema burocrático; quanto ao papel que se quis atribuir à ""utopia", chega a dizer brutalmente, mas com alguma justificação, que ela ""é estranha à mentalidade comunista", e questiona tanto a gênese do sistema proposta pelos dois autores, como a idéia de que o comunismo é um parênteses que se fechou. A propósito, citando seus próprios textos dos anos 50, mostra a inverdade da opinião dominante, segundo a qual ""ninguém" teria previsto a crise do sistema burocrático: não se previu, é certo, a forma que ela tomaria. Voltando ao problema. Se o igualitarismo, uma das peças essenciais da gênese suposta, é a ""crença numa igualdade real" entre o igualitarismo e o leninismo (e ""a fortiori" o stalinismo), a diferença é muito grande.
A ""deskulakização (liquidação dos camponeses "ricos') stalinista" não foi ""signo de uma vontade de nivelar as condições", ela garantiu uma nova hierarquização da sociedade. Se o comunismo só pode nascer depois do advento da democracia moderna, seria inexato dizer que ele deriva ""de uma mesma matriz". O jacobinismo, por sua vez, por razões que veremos, também não serve como modelo. Nem se pode fortalecer o argumento com o tema, que se encontra em Tocqueville, de um deslizamento possível das democracias em direção a um ""despotismo democrático". (Lefort tem razão em utilizar com cuidado esse tema, a propósito do qual Tocqueville hesita: muito importante, ele parece constituir uma premonição de fenômenos característicos do capitalismo contemporâneo, da qual o poder da mídia daria talvez uma imagem).


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