São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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SEGUNDA PARTE


Quanto à ""responsabilidade" de Marx, se não se trata ""de pô(-lo) ao abrigo da crítica", Lefort afirma, citando Souvarine, que a noção de ditadura do proletariado não é central na crítica marxiana. Isto, diga-se de passagem, só é verdade em parte: o tema não é ""marginal" em Marx, ver a respeito ""Marx's Theory of Revolution", de Hal Draper. Também aduz a definição ""dêitica" da ditadura do proletariado por Engels: a ditadura do proletariado é a Comuna de Paris (regida democraticamente, se acrescenta). De resto, Lefort observa muitas vezes -lembrando o jovem Trotsky, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Souvarine (eu acrescentaria: Martov) e até parte da direção bolchevique- que, mesmo minoritária, houve sempre, sob formas diversas, uma crítica do bolchevismo feita em nome da herança de Marx. (No que se refere às oposições no interior do partido bolchevique no início dos anos 20, e às suas limitações, em particular às da ""Oposição Operária" -esta lutou pelos direitos das minorias nos limites do partido, mas não a rigor para além dele-, ver o livro clássico de Leonard Shapiro, ""As Origens do Absolutismo Comunista (Os Bolcheviques e a Oposição, 1917-1922)", que Lefort não cita).
A suposta gênese do bolchevismo e da burocracia é recusada por causa do seu conteúdo, mas trata-se também, em parte, de uma questão de método: importaria centrar a análise no próprio fenômeno e concebê-lo à maneira de Marcel Mauss, como ""fato social total", ou seja, como ""intrincação de fatos políticos, sociais e econômicos, jurídicos, morais e psíquicos". Lefort propõe entretanto a sua versão da gênese do sistema, versão que permitirá escapar tanto do determinismo como de um simples apelo a fatores contingentes: o poder burocrático teria nascido da ""condensação de processos heterogêneos".
Por um lado, ele tira elementos da ""racionalidade do capitalismo", dissociado da democracia. Embora esta série exemplificativa sirva em parte também para designar o que o poder burocrático herdou do outro pólo, o do despotismo, vale a pena citá-la: ""o Exército (ver o privilégio do modelo militar em "Terrorismo e Comunismo", de Trotsky), a polícia, a fábrica (ver o tema da educação revolucionária por meio da fábrica em Lênin, criticado pelo jovem Trotsky), a burocracia estatal". Por outro lado, o poder burocrático tem uma dívida para com os ""regimes semi-asiáticos" e com a forma de contestação que eles segregavam (ver as alusões a Bakunin e Netchaiev, a partir de Souvarine): houve um ""enxerto" dos elementos capitalistas no modelo semi-asiático ou vice-versa.
Essas considerações sobre a origem preparam a análise interna do sistema. Lefort dá grande ênfase ao estudo da legislação e ao da relação entre o poder político e a sociedade civil. Ter visto o Estado totalitário-burocrático como uma espécie de auto-encarnação de ""leis do movimento" da história, sem atentar suficientemente para o legalismo -paradoxal embora- desse Estado é, para Lefort, o ponto frágil da análise de Arendt. Não basta dizer que ele desafia ""todas as leis inclusive as suas" (Arendt, cit. por Lefort), nem mesmo (fórmula que se aproxima, mas não se confunde com a do autor) que ele ""abole a alternativa" herdada da Antiguidade ""entre sociedades submetidas a leis e sociedades sem leis" (Arendt, cit. por Lefort). Seria preciso examinar de perto o fenômeno ""da preocupação constante" dessa sociedade em ""dar consistência à aparência de legalidade".
Quanto a Raymond Aron, quaisquer que sejam os méritos de ""Democracia e Totalitarismo", ele cai de certa forma no erro oposto, o de dar um peso excessivo às proclamações de ""fé nos princípios democráticos" (Aron, cit. por Lefort), por exemplo, as que se encontram na Constituição Soviética de 1936. Aron chega a falar em contradição entre, de um lado, ""aspiração e (...) objetivo democrático", e, de outro, uma ""prática de Estado de partido único" (Aron, cit. por Lefort). A análise do artigo 58 do Código Penal Soviético de 1922, reelaborado em 1926, às vésperas do processo dos socialistas-revolucionários, revela pelo contrário, replica Lefort, ""uma combinação jamais imaginada entre a lei e o arbítrio". ""Indicando as ações, abstenções, intenções ou presunções de intenções e não-denúncias, que remetem a crimes contra o Estado, o Povo ou o Partido", o artigo ""designa um modelo de sociedade" em que todos são ""culpados potenciais", e em que ""a fronteira entre o legal e o ilegal não é garantida".
Esta análise da jurisdição se articula com o tema maior do livro, o da relação entre Estado e sociedade civil. Conforme observa Aron, ""política designa a "politéia", a sociedade política, mas ao mesmo tempo o regime político, o modo (...) de comando" (Aron, cit. por Lefort). Se, nesse sentido, em qualquer sociedade há um primado do ""político", e ""regime e sociedade política são noções equivalentes", ""o signo de formação de um novo tipo de sociedade" é que nela (as expressões são ainda aronianas) desaparece ""a distinção entre o que remete ao político e o que remete ao não-político". Eu diria que, em regime democrático ou pelo menos não totalitário, há algo como um movimento rigorosamente dialético entre os dois sentidos objetivos do político, um dos quais indica ao mesmo tempo um momento do todo e o próprio todo (o outro indica o todo e a sua reflexão num momento), e que a sociedade burocrática, como as sociedades totalitárias em geral, cristaliza o movimento que existe entre esses dois pólos.
O que era momento do todo, isto é, o que fazia aparecer o todo pela sua negação, torna-se positivamente ""parte-todo", parte que é imediata e abstratamente todo, e vice-versa. Se o pensamento liberal, no sentido de democrático, ""introduz a exigência de dissociar o que remete ao domínio da política do que, por princípio, se lhe escapa", dissociação que tem ""ela própria uma significação política", a sociedade burocrática, ""novo modo de dominação", efetua ""uma espécie de fechamento do social sobre si mesmo", mobilizando ao mesmo tempo as ""energias coletivas" para supostamente criar, de modo paradoxal, ""um mundo novo e (...) um homem novo". (Um problema que permanece pendente, e que introduzirei logo mais, é o das relações e diferenças entre a sociedade burocrática, de um lado, e fascismo e nazismo, de outro.)
Mas em que condições se dá esse fechamento, que se opera, contraditoriamente, em nome de uma alteridade radical? Aqui reaparece o trabalho de comparação entre os diferentes tipos de regimes ou de sociedades. Na democracia, ""o poder não pertence a ninguém, (...) os que o exercem não o encarnam, são apenas depositários da autoridade pública, temporariamente, (...) neles não se investe a lei". No despotismo, o poder se incorpora, pelo contrário, na figura do déspota. Ora, no caso do bolchevismo, temos ""a idealização do partido, figuração de um Ser coletivo" -""órgão coletivo, (...) alma das instituições"- e que está ""acima dos militantes e dos dirigentes, mas ao mesmo tempo os engloba". A significação disso é que ""a revolução se torna por assim dizer incorporada". O partido ""deve encarnar a lei suprema e ao mesmo tempo ter o conhecimento exclusivo da marcha da história". Assim, embora órgão coletivo e abstrato, o partido ""encarna".
Comento: na sociedade burocrática, há uma encarnação como no despotismo, mas ela se opera por meio de um particular, que é abstrato, como os universais da democracia. Porém o poder burocrático, pelo menos na sua grande época, não se limita a isso. Se o poder se encarna no Partido, o chefe, por sua vez, é a ""encarnação" deste.
Aludindo ao ""Discurso sobre a Servidão Voluntária", de La Boétie, Lefort observa, recusando reconhecer na pessoa de Stálin a figura clássica do déspota: ""Por tentador que seja transferir a Stálin o poder dessa fé (a fé que o "servo voluntário" deposita no déspota ou tirano), (deve-se observar que) ele próprio (Stálin) aparece como a encarnação do partido (...). O corpo dele (do partido) (...) não se oferece à vista. Ele tem essa extraordinária propriedade de dar consistência ao Uno, sob a forma de um indivíduo coletivo".
Comento: há uma dupla mediação na sociedade burocrática, e nas duas mediações se vê o que ela deve ao despotismo e o que ela tira, para pervertê-la, da democracia. Diante dos extremos do poder encarnado (despotismo) e do poder como lugar vazio (democracia), a sociedade burocrática aparece dotada de duas instâncias: a do poder de um particular abstrato -não se trata de um indivíduo-, mas que é ao mesmo tempo (por sua ""vocação") universal: o partido (o partido encarna o universal); e, em segundo lugar, a do poder de um indivíduo, encarnado nesse particular universal (que, acabamos de ver, exprime ele próprio uma ""encarnação"). O poder burocrático se mostra, assim, como um jogo complicado de forma e de conteúdo, de universalização e de particularização. Há nele uma espécie de silogismo da encarnação, em que o singular se encarna no particular (o chefe no partido), e o particular no universal (o partido na história). No despotismo, há somente encarnação do singular no universal. Enquanto na democracia não há encarnação, o poder permanece abstrato, manifestando-se e também se modificando pelo movimento da delegação.
Um problema importante e já clássico (ver Arendt) é o da relação entre o comunismo burocrático, de um lado, e o fascismo e o nazismo, de outro. Começo por observar: se a sociedade burocrática foi tida como ""socialista" ou ""proto-socialista", mesmo quando se admitiu que ela continha certas ""deformações", o nazismo e o fascismo foram vistos como variantes do capitalismo. De certo modo, eles o são, mas como indicarei mais adiante, ""capitalismo" não define por si só uma forma social específica, mas -ouso dizer- só um modo de produção (o conceito de ""modo de produção" marca época na história da teoria social, mas é insuficiente para definir as formas sociais contemporâneas).
Nesse sentido, apesar das aparências, dizer que eles eram capitalistas, se não for falso, é pouco. Trata-se de uma forma particular de sociedade e de regime (deixo de lado aqui as diferenças entre fascismo e nazismo) que se distingue tanto das sociedades democráticas, como da sociedade burocrática. Lefort assinala o que, em termos de gênese, separa o nazismo e o fascismo do comunismo: nazismo e fascismo representam à sua maneira uma revolução, mas uma revolução que não nasce de uma ""insurreição popular".
A minoria nazista e fascista chega ao poder graças ao ""apoio ativo de uma ampla fração da classe média" e beneficiando-se ""do comprometimento de uma parte dos dirigentes conservadores". Isso não significa (sou eu que o digo, mas esta deve ser a posição de Lefort) que, com o nazismo e o fascismo, não se tenha uma nova forma social. Sem dúvida, há convergências entre eles e a sociedade burocrática. Como o texto assinala, há, nos dois casos, partido único e subordinação do Estado a esse partido. Para estabelecer um critério de diferenciação, talvez se possa afirmar, em conexão com o que eu disse mais acima sobre a sociedade burocrática: se nesta última tem-se o singular (o chefe), o particular (o partido), e o universal (a história, o gênero humano, presentes no plano da ideologia, mas esta importa), no nazismo tem-se o singular (o chefe), o particular (o partido), mas falta o terceiro termo. Falta o universal (Lefort: ""O fascismo foi abertamente anti-universalista"). O espaço do terceiro termo, do universal, é ocupado pela comunidade ou pela natureza (cf. Arendt). É para essa diferença que apontam as observações de Aron e de Merleau-Ponty sobre o fio que liga o comunismo à democracia, fio que não é essencial, mas também não é literalmente insignificante.
No fascismo ou no nazismo falta assim o universal. Se é permitido dar um salto e tocar no problema do jacobinismo, eu diria que no jacobinismo falta o particular. Isso ""traduz" a observação de Lefort de que no modelo jacobino não se tem partido. A tensão entre ""a ditadura e a liberdade" de que fala Lefort é o sintoma do confronto imediato com o princípio universal. A presença do particular, do partido, no bolchevismo, atenua enormemente essa tensão, mas não a liquida inteiramente. No nazismo -que expulsa o universal- ela desaparece.
A essas considerações sobre a estrutura ou a forma do poder burocrático, é preciso acrescentar uma análise do tipo de ""sujeito" que serve de mola propulsora ao sistema, pelo menos como base da sua ideologia. O livro se ocupa do problema. Não creio ser infiel ao texto, resumindo-o assim: no despotismo temos um ""eu" ou um ""ele"; na democracia o sujeito é indeterminado (algo como o ""on" francês). Na sociedade burocrática -Lefort volta várias vezes ao tema-, o Sujeito é um ""nós". Nela tem-se ""um sistema de pensamento que implica na abolição do Sujeito ("Sujeito" visa aqui a autonomia individual) e uma submersão do indivíduo no "nós" comunista". "(As ilusões) não bastam para dar conta de uma captura do indivíduo, tal como a que ele sofre no "nós" comunista." O que nos conduz ao universo dos processos. ""O acusado está constantemente incluído no Nós que o excluía". ""Você tem de se arrepender (diz o promotor) porque você e nós, juntos, isso faz ("c'est') um nós" (Soljenitsyne, cit. por Lefort). Esse ""nós" que, apesar do ""We the people" -observo- da Constituição americana, não representa o princípio da democracia, é evidentemente a base do mecanismo psicológico principal de coerção na sociedade burocrática, o da ""culpabilização".
A meu ver, o privilégio do ""nós" ajuda por outro lado a entender o que contém de verdade o tema do ""movimento" em Arendt (o das leis de movimento que dominam ou inspiram as sociedades totalitárias). A legitimidade a que faz apelo o poder burocrático é a de um projeto e, portanto, a de um processo (o que não exclui -pelo contrário, implica- o caráter ilusório de um e de outro). E ""projeto" entende-se aqui como projeto ""contra" alguma coisa, sendo essa coisa o capitalismo ou antes uma fantasmagoria dele. A ""perversão da crítica" é certamente um traço fundamental da ideologia burocrática (cf. Lefort, pág. 102, sobre a ""exploração ideológica do marxismo").
Acrescentaria ainda: o "nós" é por outro lado o fulcro de uma operação que aparece como a caricatura do contrato clássico. Aqui não se alienam todos os direitos naturais em troca da sua plena restituição como direitos civis (o que significa no fundo só uma "supressão" em sentido hegeliano dos primeiros), alienam-se todos os direitos; o que vai mais longe também do que a variante hobbesiana, onde desaparece a "restituição", mas que, além de ter como consequência subtrair o indivíduo à contradição autodestrutiva do "direito natural", exclui explicitamente do pacto o sacrifício da própria vida. É também no sentido da oposição ao contrato clássico que vai o tema recorrente, no livro de Lefort, da relação dual e da recusa de todo terceiro, como dominantes no mundo burocrático. Eu diria que, na base da leitura burocrática da realidade internacional como da realidade nacional, encontra-se uma "lógica política do terceiro excluído", talvez a matriz ideológica fundamental para descrever os desvarios -"de esquerda"- do século. "(...) Em todos os registros da vida social se estabelece uma relação dual entre o representante da autoridade pública e o cidadão". "Não é a primeira vez que a dimensão do outro se acha senão abolida -como poderia sê-lo-, pelo menos apagada?". "Em democracia, a presunção de inocência, o direito à defesa que tem o acusado, (...) a autoridade do juiz enquanto terceiro acima das partes, (...) essas regras derivam da natureza do regime".
Essa temática se articula por sua vez com a questão do imaginário e do simbólico, "um dos pontos mais difíceis da reflexão sobre o comunismo". "Num certo sentido -escreve Lefort- pode-se falar de eficácia simbólica (do poder burocrático), em outro de uma dominação ("emprise') do imaginário". Esses dois pólos -na situação geral, sem dúvida- "parecem se contradizer". Mas a sua relação se apresenta como um "enigma" na sociedade burocrática. De fato, há por um lado "relações regulamentadas entre os grupos e os indivíduos"; de outro há o "fantasma" do "Uno" que denega furiosamente "a divisão social". O dilema nos conduziria ao "limite do nomeável": como falar em simples fantasma, se há instituições legais, porém o que são essas instituições, se a sua "idéia" só nos é dada "pela coação que ela impõe"? Toda dificuldade -eu observaria- está em que também em democracia há alguma imbricação entre o simbólico e o imaginário, enquanto que, no despotismo, o real e o simbólico se interpenetram. Qual a especificidade da versão burocrática da imbricação (ou qualquer que seja a natureza do relacionamento) entre o simbólico e o imaginário? Retomando a idéia de uma dupla instância, o comunismo burocrático parece se caracterizar -no que se refere ao problema- por dois momentos ou movimentos.


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