São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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Diáspora e reunificação

LUIZ COSTA LIMA

Este livro ao mesmo tempo nos orgulha e desespera. Orgulha: sua leitura impõe a percepção de ser a cultura em língua portuguesa que com ele se enriquece, e precisamente em uma área, a da reflexão filosófica, em que sempre foi carente. Desespera, por sabermos que é contemporâneo da destruição, em processo acelerado, do projeto de investigação universitária (ver a respeito, "A Universidade Hoje", de Marilena Chaui, revista "Praga", nº 6, Ed. Hucitec). Ou conseguimos nos opor a essa "razzia", ou Suzuki pertencerá a uma das últimas levas de pesquisadores que contaram com o apoio de órgãos de financiamento federal. Mostrar um tanto de sua densidade correrá paralelo à nossa indignação política. Para fazê-lo, entretanto, preciso converter em exposição reta, o que é um trajeto necessariamente com meandros.
Trata-se, em "O Gênio Romântico", de mostrar a transformação e simultânea sistematização que a herança kantiana, espraiando-se sobre a obra de Fichte, em menor grau sobre a de Schelling, alcança na obra de Friedrich Schlegel. Da herança kantiana, destaquem-se, com Suzuki, uns poucos princípios orientadores da "Primeira Crítica" e, um pouco melhor, outros presentes na "Terceira". Da "Primeira", releve-se apenas a função "copernicana" desempenhada pela crítica -cuja importância crescia porque "o problema da metafísica reside em grande parte numa incapacidade de compreender a si mesma"- e o papel dos esquemas, a respeito dos quais dizia a própria "Crítica da Razão Pura": "Os esquemas dos conceitos puros do entendimento são, portanto, as verdadeiras e únicas condições para proporcionar a estes uma referência a objetos e, por conseguinte, significação".
Com o aparato de que faziam parte a crítica, como elemento chave, e o esquema, como mediador entre o sensível do fenômeno e o abstrato-intelectual das categorias, a "Primeira Crítica" contudo era capaz de legitimar, mediante os juízos determinantes, apenas as ciências da natureza. Estes juízos não eram suficientes sequer para cobrir todos os fenômenos naturais. Daí a diferença kantiana entre os conceitos do entendimento, servidos pelos juízos determinantes, e os conceitos da razão, que servem para "compreender", e não para "entender" o funcionamento de um fenômeno.
Ora, à medida que nas duas "Críticas" seguintes, e sobretudo na "Terceira", Kant pensa sobre o que escapa da faculdade do entendimento, torna-se-lhe fundamental elaborar os conceitos da razão. Entre essas elaborações, destaca-se o conceito de fim. Um fim é atribuído a algo da natureza como maneira de lhe dar o sentido com que não se atinaria mediante o entendimento de sua constituição interna (como explicar mecanicamente a relação entre o tipo de caule, a disposição dos galhos e a forma das folhas de uma árvore? O conceito de fim procura o sentido que escapa na indagação mecânica). Por esse seu diferente perfil, o conceito de fim, bem como os conceitos da razão em geral são apenas reguladores -e não determinantes- e dão lugar a Idéias. Assim a Idéia do todo, dirá ainda Kant citado por Suzuki, é a "causa da possibilidade da causalidade das partes".
Ao nos referirmos a "conceito da razão", "Idéia", "fim", já estamos pois dentro da "Terceira Crítica". Não estranha que, não sendo seu objeto determinado, passível de ser simplesmente entendido, o juízo aí adequado também tenha outra designação: será o juízo de reflexão. As consequências de sua formulação serão imensas. Com ele, não só não se descreve algo pronto a ser verificado pelo entendimento, como tampouco nos entregamos à sondagem dos "desígnios do autor", mas apenas nos referimos a "uma unidade passível de sentido". Daí decorre que o juízo de reflexão alcance sua máxima aplicação no campo da experiência teleológica, que compreende o exercício da finalidade propriamente dita e o da finalidade estética (a área da "finalidade sem fim", do interesse desinteressado).
Em suma, pela distinção entre as funções do juízo, a filosofia crítica não se quer apenas uma filosofia da ciência, mas a base de uma metafísica futura, que se distinguiria da passada pelo abandono do dogmatismo prescritivo. Correlatamente, seus problemas são mais complexos do que sucederia caso aspirasse ser tão-só uma epistemologia. Suzuki -que não tem a pretensão (!) de "resumir" Kant, mas assinalá-lo como ponto de partida para Schlegel- é feliz ao notar como assim se punha o problema da relação da filosofia com a linguagem e, mais especificamente, do sensível com o supra-sensível.
Se o supra-sensível estivera eliminado da "Primeira Crítica", na "Terceira", ao invés, será reposto. Por intermédio da experiência estética, Kant julga possível, maximamente na experiência do sublime, refletir sobre o caminho -ainda que o saiba problemático e indemonstrável- que levaria ao encontro do sensível com o supra-sensível. Constitui-se então o que John Zammito, desenvolvendo linha aberta por autor que Suzuki cita, G. Tonelli, chamaria a utopia kantiana: "Como determinante, em vez de determinado, o "supra-sensível" nunca poderia ser um verdadeiro objeto de cognição, mas Kant agora enfatizava que ele poderia ser pensado e que também poderia ser tratado através da reflexão" ("The Genesis of Kant's Critique of Judgement").

A OBRA
O Gênio Romântico Márcio Suzuki Iluminuras (Tel. 011/3068-9433) 250 págs., R$ 20,00



Cito a passagem porque ela é decisiva para a leitura de Suzuki tanto da "Terceira Crítica", como de Schlegel. Assim, depois de reiterar com Kant -"se o entendimento deixa "o substrato supra-sensível totalmente indeterminado", o Juízo dá um passo além, pois pode lhe proporcionar "determinabilidade'"-, acrescenta, com acerto, a homologia que, "no sistema da crítica", o filósofo e o gênio ocupam, respectivamente, na "Primeira" e na "Terceira Crítica". Em consequência, torna-se possível que o sistema kantiano, ainda que de modo problemático, trate de Deus. E, como isso se faz a partir da figura do gênio, ainda se torna viável que o sistema crítico contribua para a Idéia que se tornará clássica (e hoje desgastada) da centralidade do sujeito humano. Assim, glosando Schelling, dirá Suzuki: "Sem ter apresentado diretamente o princípio de toda a filosofia (Eu absoluto), Kant no entanto a antecipou". O supra-sensível legitima não só o sujeito humano -em bases diversas e mais amplas que o cartesianismo-, como, pelo gênio, permite a centralidade do conhecimento no sujeito.
Este passo, acelerado pela "egoidade" ("Ichheit") de Fichte, receberá dos românticos ainda outro elemento capital: a organicidade. Ela é explícita, seja em citações de Schlegel, feitas por Suzuki, quanto nesta outra, datada de 1803. Na "Introdução à História da Literatura Européia", dizia Schlegel: "Antes de começarmos nossa exposição histórica, será necessário oferecer um conceito provisório da literatura (...). Mas esse conceito só pode ser provisório, pois o conceito mais pleno é a própria história da literatura".
Como poderia ter a história esse papel primordial, se não fosse ela concebida como um "tecido" que contivesse potencialmente os "órgãos" (os gêneros, as formas) com que a literatura se desdobraria? A tese que Suzuki assume está de acordo com o desdobramento organicista que a hipótese de "recuperação" do supra-sensível alcançou com os primeiros românticos. Daí podemos pensar que a formulação central de "O Gênio Romântico" está na passagem: "A história da multiplicação dos gêneros poéticos e dos sistemas filosóficos poderia ser pensada (...) como uma narrativa que se desenvolve desde a diáspora da unidade mítica até o caminho da reunificação".
Permitimo-nos aqui assinalar nossa reserva, sem que haja espaço para desenvolvê-la. Assim como tem sido possível ler-se a "Terceira Crítica" pondo-se entre parênteses sua "solução arquitetônica", é possível ler-se Schlegel sem a tentação religiosa de unificação e organicidade. Não se duvida que, do ponto de vista de história das idéias, a leitura de Kant e Schlegel por Márcio Suzuki é correta. Mas, assim como a "solução arquitetônica" estorva a fecundidade da reflexão kantiana para a questão específica da arte, o propósito schlegeliano de trabalhar em favor de um horizonte mítico que, perdido desde os gregos, poderia ser recuperado pelo homem moderno, embaraça a fecundidade deste que podemos chamar o primeiro teórico da literatura e seu primeiro crítico, na exata acepção kantiana do termo.
Nessa leitura alternativa, a figura central seria o fragmento. O fragmento, não como promessa de uma nova unidade, mas como "ouriço", autonomia agressiva contra os que buscam anexá-lo. Desse modo se mantém a reaproximação da poesia com a filosofia, tão bem tematizada por Suzuki e tão desprezada em nossa própria tradição, sem a necessidade de subordiná-la seja à questão religiosa, seja ao princípio de um sujeito humano pleno e central, em diálogo consigo mesmo.


Luiz Costa Lima é professor de literatura comparada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e de história social da cultura na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É autor, entre outros, de "Limites da Voz - Montaigne, Schlegel, Kafka" (Rocco).


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