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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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A prosa degenerada

Um livro obsceno e inclassificável de HildaHilst


Contos D'Escárnio.
Textos Grotescos
Hilda Hilst
Globo (Tel. 0/xx/11/3767-7889)
136 págs., R$ 18,00


ELIANE ROBERT MORAES

"É metafísica ou putaria das grossas?" -a questão do personagem de "Contos d'Escárnio" excede o contexto em que é formulada para oferecer uma chave de leitura desse livro inclassificável, que soma à desordem narrativa uma total anarquia de referências. Não se trata, em princípio, de responder à pergunta, mas antes de atentar para a ostensiva aproximação que ela realiza ao confrontar um termo filosófico com uma expressão das mais chulas. Aproximação essa que perpassa todo o texto, já que Hilda Hilst insiste em tal expediente ao longo da narrativa, colocando inúmeras citações da alta cultura à prova da mais deslavada pornografia.
Com efeito, este livro escandaloso -que faz parte da trilogia obscena publicada pela autora no início dos anos 90- propõe um contato inesperado entre pólos opostos, associando o exercício do conhecimento à atividade sexual. Yates, Kierkegaard, Pound, Lucrécio, Byron ou Catulo são citados ao lado de outros nomes célebres -incluindo figuras brasileiras como Guimarães Rosa e Euclides da Cunha-, enquanto os personagens se entregam a práticas eróticas perversas, às quais não faltam o incesto ou o sexo com animais.
Da mesma forma, obras como "Hamlet", "Ana Karenina" ou "Morte em Veneza" são convocadas pelo narrador para figurar em um contexto que, sem dúvida, guardaria maiores afinidades com os escritos de Rabelais, de Sade ou de Jarry.
Com tantas alusões literárias, não é de estranhar que os principais protagonistas da história sejam todos relacionados à atividade artística. Crasso, o narrador, é um sexagenário que resolve escrever seu primeiro livro, motivado pela baixa qualidade dos textos que lê: "Ao longo de minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu". Ao narrar suas memórias sexuais, ele concentra a atenção em Clódia, parceira de extravagantes jogos eróticos, que é uma artista plástica obcecada pela imagem dos órgãos sexuais. Por fim, a esses dois personagens debochados vem se acrescentar a figura melancólica de Hans Haeckel, um "escritor sério" para quem a literatura era "paixão, verdade e conhecimento", que se mata com um tiro na cabeça.
Se é que se pode falar em enredo, o livro conta as peripécias de Crasso à procura de inéditos de H.H., o que rapidamente se transforma em pretexto para sua descoberta do erotismo, evocando as convenções do romance de formação. Assim, ao longo de sua peregrinação, conforme vai encontrando os estranhos manuscritos do escritor morto, o personagem também fica conhecendo toda a sorte de aventuras lúbricas -ou de "bandalheiras", como prefere Hilda Hilst. Para além da experiência carnal, tais descobertas lhe exigem, como estreante na literatura, a conquista de uma via expressiva.
Como representar o ato sexual? Como fixar sobre o papel, ou sobre a tela, o momento fugidio do erotismo? -as questões que pulsam nas memórias obscenas de Crasso ou nos quadros licenciosos de Clódia estão no centro do texto, revelando as inquietações que marcam a ficção erótica da própria autora. O problema que se coloca para Hilda Hilst -ela também estreando na pornografia ao escrever a trilogia- é o mesmo que move seus personagens, girando em torno dos dilemas da representação do sexo. "Esse negócio de escrever é penoso", confirma o narrador ao procurar exprimir uma volúpia física que ele mesmo considera "indefinível".

Resposta singular
"Os Contos D'Escárnio" propõem uma resposta singular para essas questões de fundo da literatura erótica. Valendo-se do espírito satírico que caracteriza as "cantigas de escárnio" da tradição medieval portuguesa, o livro lança mão de uma fabulosa quantidade de gêneros literários sem se fixar em qualquer um deles, dando livre curso a uma paródia vertiginosa. À proliferação de referências ao cânone acrescentam-se as mais diversas formas discursivas como diálogos, poemas, textos dramáticos, fluxos de consciência, receitas, comentários, fábulas, piadas e fragmentos de toda ordem -tudo isso somado a uma mistura babélica de línguas que só faz desnortear o leitor.
Como observa Alcir Pécora na apresentação ao volume, essa opção pela desordem narrativa "pode ser interpretada como uma resposta irônica à literatura de mercado". Ao realizar um inventário da mercadoria literária mais estereotipada, o narrador coloca em questão o lixo cultural produzido no país, criticando a supremacia do best-seller. Mas sua visada, conclui o crítico, não se reduz a isso: o personagem vai além e faz da hegemonia da indústria cultural a condição de sua própria literatura, criando uma pornografia descontrolada, que excede as normas do mercado.
Ora, levada assim ao extremo, tal estratégia vem perturbar o estatuto dos textos obscenos em relação ao movimento maior da literatura, o que, no limite, coloca em questão a própria economia literária em geral. Vejamos por quê.
Na hierarquia dos discursos, a ficção erótica costuma ocupar um lugar pouco nobre, sendo quase sempre considerada um gênero menor. Isso se deve ao fato de que esse tipo de literatura só adquire o status de gênero a partir dos temas que mobiliza, nunca por conta dessa ou daquela opção formal. Trata-se, geralmente, de escritos sem pretensões literárias, nos quais os efeitos estilísticos são relegados a um segundo plano em razão de uma lei maior: a repetição. De fato, a maior parte dos livros pornográficos se limita a repetir um certo mote, combinando cenas de um repertório sexual limitado com o intuito de excitar o leitor, o que, do ponto de vista estrito da leitura, tende não raro a induzir ao tédio.
Na qualidade de produção literária inferior, a pornografia é normalmente aceita ou, pelo menos, tolerada. Seu poder de transgressão é, nesse sentido, quase nulo. Na verdade, o texto erótico só consegue realmente escandalizar quando deixa de obedecer às leis do gênero menor, perturbando a zona de tolerância que cada cultura reserva às fabulações sobre o sexo. O escândalo de Sade não foi o de escrever obras obscenas, o que aliás era corrente na literatura libertina setecentista, mas sim o de deslocar o pensamento iluminista para a alcova lúbrica, aproximando a filosofia do erotismo. Assim também, se Flaubert escandalizou a moral francesa do século 19, não foi apenas por ter criado uma heroína adúltera, como faziam os autores pornográficos de sua época, mas por tê-lo feito em uma obra-prima, impondo o tema do adultério ao cânone.
O potencial de subversão dos livros eróticos está diretamente ligado à sua capacidade de colocar em xeque os códigos do sistema literário vigente em cada sociedade, transtornando a ordem dos discursos a partir da qual se organizam as culturas. O escândalo acontece, pois, quando os temas obscenos abandonam o gueto em que se confinam os gêneros inferiores e se associam às expressões legitimadas como superiores. Ou, dizendo com Hilda Hilst, quando a "putaria das grossas" se aproxima da metafísica.
"Os Contos d'Escárnio" trabalham com a aproximação entre o alto e o baixo de uma forma quase didática. A começar pelo fato de ser uma obra assinada por uma escritora da chamada "grande literatura", o que, por si só, desautoriza sua filiação ao tipo de pornografia que lota as prateleiras do mercado de sexo. Além disso, a insistente associação entre obscenidades e referências eruditas opera no sentido de nivelar os discursos em questão, embaralhando-os por completo. Por fim, essa subversão torna-se ainda mais intensa com a intrigante fusão de gêneros que o volume põe em cena.
O notável poder de desvio da ficção erótica de Hilda Hilst decorre precisamente de sua recusa em reproduzir qualquer convenção corrente, seja do gênero menor, seja de qualquer outro. É nesse ponto que se afirma a efetiva capacidade de transgressão do texto, manifesta numa perfeita sintonia entre forma e fundo: para responder aos dilemas da representação do sexo, mas sem acatar as restrições impostas à pornografia, a autora perverte as leis literárias, criando uma prosa em que os gêneros se degeneram. Uma prosa degenerada.
Tal é o sentido maior da desordem que caracteriza este livro: uma vez degenerado, o texto fica livre para promover as associações mais bizarras e imprevistas, revelando certas relações entre corpo e espírito que nossa cultura, por tradição, tenta esconder. São justamente essas relações que o deboche escrachado de Crasso explora de forma obstinada e ostensiva, até provocar o retorno de todo o conhecimento à sua primeira e inequívoca fonte -a saber, o sexo.

Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, dentre outros, de "O Corpo Impossível" (Iluminuras).


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