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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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Literatura pelo avesso


Criação em Processo. Ensaios de Crítica Genética
Roberto Zular (org.)
Iluminuras
(Tel. 0/xx/11/3068-9433)
256 págs., R$ 22,00


A disseminação dos meios eletrônicos de escrita praticamente eliminou o manuscrito do horizonte contemporâneo. No entanto, a prática artesanal, substituída pela técnica, vem se tornando objeto de resgate, coleção e pesquisa. No campo dos estudos de literatura, a onda de valorização do manuscrito moderno inaugurou, nos anos 60, uma vertente crítica que reviu o conceito de texto, desqualificando seu estatuto de produto (unitário, completo, fechado) para dar destaque ao processo de sua construção. Aliás, os diferentes planos -apreensíveis simultaneamente- do hipertexto eletrônico ajudaram a definir o dossiê de anotações, planos, rascunho e variantes de uma obra literária, como conjunto não linear, de múltiplas dimensões.
Enfocadas de várias perspectivas, são reflexões desse teor que formam a coletânea de ensaios de pesquisadores franceses, ligados ao Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS), e brasileiros, coordenadores de equipes do Instituto de Estudos Brasileiros/USP e da Pontifícia Universidade Católica (SP). O objetivo da publicação é apresentar a crítica genética como uma poética do processo escritural (literário, artístico ou científico). Tal encaminhamento teórico-prático deixa de fora as considerações tanto sobre a proveniência e natureza dos materiais apropriados pelo operador do trabalho composicional ("scriptor"), quanto sobre o resultado do mesmo, em termos de interferência política no cânone ou no panorama cultural em que se insere. Por isso, o teor instigante de sua proposta renovadora da crítica mostra-se melhor em estudos particulares como o que Telê Ancona Lopez dedica à poesia de Mário de Andrade e que é colhida, com a riqueza das tensões intertextuais e interculturais, na marginália inscrita na biblioteca do escritor.


Arquivos Literários
Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (orgs.)
Ateliê Editorial
(Tel. 0/xx/11/4612-9666)
220 págs., R$ 32,00


Além do registro das muitas etapas de produção da obra, os acervos de escritores contêm correspondência, diários, material iconográfico e bibliográfico, mais uma variedade de documentos capazes de configurar fatias significativas de memória intelectual privada e pública. A conjuntura presente dos saberes ampliou seu valor de fonte primária, o que deve ter motivado o colóquio "A Invenção do Arquivo Literário", promovido pela Coleção Archivos e o Centro de Estudos Literários da UFMG. As conferências de especialistas brasileiros e estrangeiros divulgam-se, agora, oportunamente, cuidando dos nexos técnicos e políticos entre a produção da arte e a complexidade do espaço multicultural.
Vale lembrar que o projeto da Coleção Archivos visa a preservação do patrimônio literário e cultural latino-americano, por meio da edição crítica e genética das obras de seu cânone moderno. Apoiado em convênios transnacionais e servindo-se de métodos editoriais transdisciplinares, o trabalho da Coleção Archivos incide no cerne das aberturas e conflitos do pensamento atual. O esforço de lucidez dos pesquisadores ajuda a encaminhar, no caso latino-americano, a negociação útil, tratada por Wander Miranda, entre a alteridade cultural a ser defendida e o reforço estratégico das semelhanças no confronto com os valores hegemônicos. Lembra, também, na palavra de Silviano Santiago, que a construção artística, realizada por qualquer meio ou descrita de acordo com qualquer parâmetro, só se justifica pelo tradicional critério da excelência. Por sua vez, propostas de edição, como as de Eneida Souza e de outros coordenadores, satisfazem às expectativas de um público variado, combinando o resgate do processo genético da obra com o esboço crítico de uma parcela da história da cultura brasileira.


Linha Reta e Linha Curva. Edição Crítica e Genética de um Conto de Machado de Assis
Ana Cláudia Suriani da Silva
Ed. Unicamp
(Tel. 0/xx/19/3788-7728)
396 págs., R$ 42,00


Quando um trabalho acadêmico ultrapassa as exigências burocráticas e contribui efetivamente para a pesquisa e a salvaguarda do patrimônio cultural, cabe dar destaque à sua publicação. É o caso desta dissertação de mestrado, que retoma as tarefas de erudição e rigor paciente, desempenhadas no passado por Galante de Sousa, Magalhães Júnior e Brito Broca, e acrescenta à nossa machadiana, ainda carente de textos confiáveis, uma cuidadosa edição crítico-genética. Os exercícios de transcrição, ordenamento e confronto, feitos conforme a técnica mais atualizada, ganham plena rentabilidade, pois apresentam-se em moldura apropriada a inserir seus resultados na trajetória literária do jovem Machado. O desvendamento competente dos começos da carreira de um escritor canônico é a forma mais honesta de enfrentar-lhe o mito.

MARÍLIA ROTHIER CARDOSO

é professora de literatura brasileira na Pontifícia Universidade Católica (RJ).


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