UOL


São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Motins coloniais

O rei português e seus súditos nos séculos 17 e 18


O Rei no Espelho. A Monarquia Portuguesa e a Colonização da América
Rodrigo Bentes Monteiro
Hucitec (Tel. 0/xx/11/5543-5810)
346 págs., R$ 40,00


JÚNIA FERREIRA FURTADO

Os historiadores têm se insurgido contra a dicotomia "colônia versus metrópole" como o modelo ideal para explicar as relações entre Portugal e seu império ultramarino na época moderna. Estudos têm salientado que a fidelidade ao trono português e a percepção de serem súditos de um império transoceânico foram fundamentais para a manutenção e a expansão do poder real na América portuguesa. Na esteira dessa tendência, o livro de Rodrigo Bentes Monteiro -"O Rei no Espelho"- vem contribuir significativamente para a análise das relações entre o monarca português e seus súditos dos dois lados do Atlântico.
O estudo abarca um amplo espectro temporal e geográfico, iniciando-se com o movimento da restauração portuguesa, no século 17, e terminando com a Revolta de Vila Rica, em 1720. À medida que no império ultramarino português a figura real personificava o Estado, o primeiro objetivo do livro é compreender de que maneira o poder régio era apresentado, desde a formulação no pensamento político até suas formas de representação. Mas, num jogo de espelhos, pretende-se também observar o seu reverso, isto é, de que maneira os motins coloniais eram, ou não, um ataque à figura do rei e ameaçavam a eficácia da efetivação de seu poder.
Esse longo século 17 se caracterizou pela lenta afirmação e consolidação do poder real em Portugal e na América, marcado pela fragilidade da monarquia e por constantes ameaças à sua dominação, seja por meio dos perigos internos -os motins, os atentados e as conspirações- ou externos -as guerras e as invasões estrangeiras. Momento este que se inicia com a Restauração portuguesa e termina com o reinado de dom João 5º, quando então o poder real enfim se consolidou e atingiu o esplendor.
Os mecanismos de legitimação dessa monarquia são elementos-chave para a análise do período. O discurso jurídico formulado para justificar a restauração, garantindo a autonomia nacional e a coroa como pertencente de direito a dom João 4º, se baseou no axioma de que o poder político pertence ao povo, que o concede ao rei na forma de um contrato que, apesar de perpétuo, pode ser retomado em situações de tirania. Essa concepção de que o poder real se legitimava por meio de um pacto constituiu-se no mecanismo central que garantia a fidelidade dos governados no império. Era o amor, e não o temor, o principal valor intercambiado entre o rei e seus vassalos, não importando em que espaço geográfico do vasto império se encontrassem. Mas era esse mesmo poder que, emanando diretamente do povo para seu soberano, impunha limites à atuação dos monarcas, que buscavam o constante beneplácito dos governados ao se apresentar como reis magnânimos e misericordiosos, o que acabou por conferir à coroa portuguesa a sensação de fragilidade.
O autor analisa a prática do agro e do doce como a política preferencial da administração portuguesa, que, mesmo em situações de rebelião e frontal desafio à autoridade real, tendia sempre, salvaguardadas algumas situações, a optar por políticas de perdão dos amotinados. É exatamente para a compreensão dos limites da atuação do poder metropolitano na América que o estudo se lança à análise dos motins e sedições coloniais, iniciando com a aclamação de Amador Bueno, em São Paulo (1641); passando pelos Emboabas, em Minas Gerais (1707-1709); os Mascates, em Pernambuco (1709-11); as invasões francesas no Rio de Janeiro (1710-11); a revolta do Maneta, em Salvador (1711) e a revolta de Vila Rica, em Minas Gerais (1720). Para o autor, essas rebeliões não encontram explicações apenas em si próprias ou nos acontecimentos regionais que lhe são peculiares, mas demandam sempre análises das articulações com o poder metropolitano e com as formas de pensamento político vigentes.
São várias as questões que "O Rei no Espelho" coloca aos leitores: de que maneira as revoltas se colocavam ou não como desafios à autoridade real? Como reproduziam ou se confrontavam com as concepções políticas que legitimavam este mesmo poder? Quais as formas que as autoridades portuguesas encontraram para enfrentar esses desafios à ordem? Em geral, as rebeliões não questionaram a fidelidade ao rei, mas imputavam aos administradores locais uma ação tirânica, que poderia ser revogada por meio da violência direta, à medida que visavam o retorno a uma situação anteriormente pactuada com o soberano. As justificativas para a rebeldia se colocavam no universo das próprias práticas políticas que legitimavam o poder real, especialmente após a restauração, e se baseavam em um pacto moral, não escrito, entre o soberano e seus súditos.

Cooptação dos rebeldes
A repressão também se pautava e encontrava seus limites nessas mesmas práticas e, a menos que se conjugassem a ameaça externa e a interna, privilegiava-se uma política de cooptação dos rebeldes. Num jogo de ir e vir, ao longo dos diversos capítulos, o leitor é levado a percorrer simultaneamente a mesma conjuntura no reino e na América, apontando para um trânsito de idéias, as quais constituíam pano de fundo comum capaz de unificar o mundo transoceânico português, semelhanças que se revelam não só no compartilhar das formas de submissão, mas no próprio espectro político das rebeliões. A fidelidade ao rei se constituiu no pilar de sustentação de toda a estrutura e concepção de poder no império, ainda que para os americanos ele se encontrasse longínquo.
O primeiro capítulo, "A Rochela do Brasil", no qual o autor analisa a aclamação de Amador Bueno, é o mais instigante e inovador do livro. Enquanto os estudos que o precedem foram marcados pela defesa patriótica ou recusa da existência do próprio fato histórico, aqui a questão é outra. O que importa é menos se o acontecimento se deu de fato, mas sim se ele pode ser representativo da conjuntura da região do planalto paulistano e de sua inserção nas questões mais amplas que sacudiam o mundo português.
A conclusão é que o fato foi historicamente possível e refletia as particularidades econômicas e sociais do local, que, fora do eixo mercantilista exportador da rota do Atlântico, tinha uma economia voltada para si mesma, baseada no apresamento e escravização dos gentios, que os jesuítas vinham tentando erradicar.
Mas, não só, os argumentos que levaram os paulistas a optarem nesse momento pela soberania portuguesa, rejeitando a opção separatista representada pela fidelidade a Castela, remetem às mesmas questões políticas que os portugueses tinham utilizado para justificar a restauração e a independência em relação à coroa espanhola: acusações de tirania contra representantes da administração, desconfiança em relação às forças que representavam um poder transnacional -os jesuítas, lealdade a um rei preocupado com o bem-estar dos vassalos e mantenedor de privilégios e direitos há muito estabelecidos. Eis as justificativas do evento, que se explica não mais pela lealdade do aclamado, mas pela rebeldia dos paulistas, revelando a perigosa fragilidade da coroa portuguesa em terras da América.
O vasto espectro temático e temporal constitui o grande atrativo do livro, à medida que os estudos monográficos, mais comuns nos meios acadêmicos, têm mostrado seus limites interpretativos. Permite que se perceba a influência de determinados acontecimentos que ultrapassam o alcance regional, rompendo o isolamento que ainda marca a história brasileira.
No entanto essa amplitude traz riscos evidentes. Embora tenha utilizado farto material, constituído basicamente de fontes impressas, e procedido a um instigante debate com a historiografia, particularmente a portuguesa, há que lamentar uma análise pouco exaustiva das rebeliões, assentada basicamente em fontes secundárias e, em muitos casos, como na Guerra dos Mascates, quase exclusivamente em um único autor. O estudo também deixa de lado uma emergente historiografia brasileira, bem recente é verdade, constituída ainda em grande maioria de trabalhos finais de tese e dissertação, que em muito enriqueceria o debate, particularmente no que se refere aos motins, às relações de poder e às redes clientelares, que, equivocadamente, o autor lamenta inexistir.
Apesar dessas lacunas, "O Rei no Espelho" é um estudo que veio para ficar, pois contribui significativamente para a análise das relações de poder no império ultramarino português e nos ajuda a compreender inclusive as opções políticas posteriores, que levaram o Brasil a se constituir, após a independência, em uma monarquia.

Júnia Ferreira Furtado é professora de história da Universidade Federal de Minas Gerais.


Texto Anterior: Diderot filósofo
Próximo Texto: Rastros do regime militar
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.