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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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Rastros do regime militar

Da deposição de João Goulart à aniquilação da guerrilha do Araguaia


A Ditadura Envergonhada
Elio Gaspari
Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/ 3167-0801) 424 págs., R$ 40,00

A Ditadura Escancarada
Elio Gaspari
Companhia das Letras 512 págs., R$ 44,00


HELOISA STARLING

Em uma canção de 1985, "Hino da Repressão (2º Turno)", composta durante os curtos anos de desagregação do regime militar, Chico Buarque se encarregou de narrar, uma vez mais, as práticas de violência do regime militar brasileiro para, entre irônico e profético, anunciar: tudo deixa rastro, nada é tão bem apagado que alguma coisa da memória de sua existência não possa subsistir, nenhum homem desaparece tão por inteiro que ninguém se lembre de seu nome. Algo ou alguém sempre sobra para, com suas palavras, retomar a história do outro: "A lei tem caprichos/ O que hoje é banal/ Um dia vai dar no jornal".
Um dia, deu no jornal. "As Ilusões Armadas" [rubrica que engloba os recém-lançados "A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada", um terceiro volume, que deve sair em agosto deste ano, e outros dois, ainda sem previsão da data de publicação", de Elio Gaspari, são provavelmente o mais ambicioso e abrangente esforço de construção de uma narrativa histórica sobre a trama interna das condições, tensões e conflitos que ofereceram sustentação política e ideológica ao regime militar no país, e foi escrita precisamente a partir das pegadas deixadas por um punhado de personagens centrais no processo de montagem e de desmantelamento do último regime militar brasileiro: as 25 caixas cheias de papéis que formam o arquivo particular do general Golbery do Couto e Silva, o diário do capitão Heitor Aquino Ferreira, homem de confiança de Golbery e secretário do então presidente Ernesto Geisel (1974-79), o acervo de 4.000 documentos textuais do presidente Geisel, doados pela família ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC).

Bilhetes e rabiscos
Boa parte desse material, em particular, boa parte dos cerca de 5.000 documentos provenientes do arquivo Golbery [do Couto e Silva (1911-87), criador do SNI" e Heitor Ferreira era sucata: bilhetes, rabiscos de conversas telefônicas, folhas de bloco com rascunhos de reuniões, várias listas de nomes, papéis que costumam ser deixados de lado como algo que não consegue conservar nenhum tipo de significação e apenas sobra porque aparentemente não parece guardar importância ou sentido. Gaspari começou a revolver esse material com um olhar miúdo em 1985, o mesmo ano em que Chico Buarque gravou sua canção e a cúpula governamental do regime foi derrotada na sucessão do presidente da República.
Nos quase 18 anos seguintes, a pesquisa para o projeto "As Ilusões Armadas" incorporou cerca de 300 horas de entrevistas que incluem os depoimentos de Geisel, Golbery e Heitor Ferreira, além de produzir -e disponibilizar para um público muito amplo- um levantamento minucioso da produção bibliográfica geral sobre o regime militar brasileiro.
O resultado impressiona. "As Ilusões Armadas" conta a história da construção -e posterior desmontagem- dos mecanismos internos de sustentação, institucionalização e funcionamento do regime militar brasileiro a partir das ações que marcaram a vida política de dois de seus mais importantes protagonistas: os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.
Os cinco volumes previstos para publicação pretendem organizar os rastros deixados por esses personagens em três grandes blocos históricos: o primeiro deles segue os rumos do processo de construção do regime militar desde o momento do golpe de Estado e do controle militar da Presidência da República, eixo do poder político anterior a 1964, até a imposição de limites muito restritos aos poderes Legislativo e Judiciário e instauração do quadro de expansão coercitiva sustentado pelo regime a partir da edição do Ato Institucional nº 5.
Os dois títulos já publicados cobrem precisamente os primeiros dez anos do regime, num leque que vai dos procedimentos conspiratórios que culminam com a deposição de João Goulart, em 1964, à posse de Garrastazu Médici na Presidência da República, no início de 1970, e a aniquilação da guerrilha do Araguaia, entre dezembro de 1973 e julho de 1974.

O dispositivo estratégico
O segundo bloco tem por objetivo narrar a história da criação do dispositivo estratégico projetado pela dupla Geisel e Golbery, com a intenção de alterar radicalmente uma situação muito instável de controle de poder pela corporação militar -instável porque divergente no âmbito de suas facções internas, não consensual entre a elite política civil e essencialmente baseada na força. Os próximos dois volumes, a serem publicados, incluem os procedimentos de construção ou reconstrução desse dispositivo estratégico que, interno ao núcleo principal de poder, impôs ao conjunto das Forças Armadas a candidatura do general Ernesto Geisel para a Presidência da República, orientou os quatro anos de seu governo e apareceu condensado, em seus elementos centrais, durante o confronto político e militar que culminou com a exoneração do general Sílvio Frota do posto de ministro do Exército, em outubro de 1977.
Já o terceiro bloco pretende, de certa forma, proceder a uma avaliação dos resultados obtidos pela dupla Geisel e Golbery a partir do quadro de controle político e fortalecimento do governo em relação às Forças Armadas conseguidos depois da operação militar que derrubou Frota. Falta ainda a Gaspari terminar de escrever o último volume da série para contar o final da história da dupla Geisel e Golbery e projetar, para o interior da correlação de forças do núcleo militar de poder, as consequências das derrotas sofridas por essa dupla no começo do governo do general Figueiredo -derrota que culminou no fracassado atentado a bomba no Riocentro na noite de 30 de abril de 1981.
Dessa forma, o projeto "As Ilusões Armadas" não tem o propósito de montar um abrangente painel de informações e acontecimentos sobre o período militar para contar a história do regime militar brasileiro. Ao contrário, nos dois volumes já publicados, a força do principal argumento de Gaspari vem de sua tentativa de apresentar as características peculiares do sistema de poder instaurado a partir do golpe de 1964 por uma coalizão de forças militares que assume o controle do Estado -um Estado, na aparência, muito forte, principalmente em razão de sua capacidade de proceder continuamente ao alargamento dos instrumentos de arbítrio e de violência.
Nos termos sugeridos por Gaspari, porém, esse era também um Estado atravessado por uma situação estrutural de constante instabilidade interna -instabilidade que provém de dentro do núcleo de poder, reduz sistematicamente a capacidade de comando do governo já desde o início da Presidência do general Castello Branco [presidente de 64 a 67" e se prolonga durante os terríveis anos em que o Brasil foi comandado pelo general Médici (1969-1974).
Ao tentar reconstituir, com abundância de detalhes, as disputas, as vacilações, as pequenas ambições, a incompetência, o cinismo, a indiferença e, especialmente, a absoluta mediocridade de alguns dos personagens que comandavam os círculos militares próximos e/ou formadores do núcleo de poder, Gaspari colocou o acento de seus dois primeiros livros na identificação das tensões e dos conflitos extremos que fragilizaram internamente o regime autoritário no país, para apontar, em seguida, os dramáticos resultados dessa fragilidade transbordando sobre a sociedade brasileira na forma de terrorismo, corrupção e barbárie.
Entretanto a ênfase de Gaspari na abordagem do quadro de tensões e disputas que orientaram o comportamento militar nos procedimentos de montagem e institucionalização do regime autoritário traz dois tipos de consequências para o desenvolvimento de seu argumento. Em primeiro lugar, fortalece os principais pontos desse argumento, ao apontar para o que seria uma característica importante do regime: sua profunda dependência de um sistema sempre muito instável de alianças entre facções militares, que teve seu início na escolha de Castello Branco para a Presidência e terminou, provavelmente, na peculiar composição de forças que levou ao poder o general Figueiredo [em 1979]. Essa contínua dependência de um sistema de alianças parece indicar a ausência de rupturas internas significativas entre o governo Castello Branco e seus sucessores Costa e Silva e Médici.
Da mesma forma, também parece sugerir que os ciclos mais intensos de expansão da violência do autoritarismo não projetaram a força do Estado sobre a sociedade; ao contrário, projetaram sua debilidade ou, mais exatamente, projetaram a decomposição de suas funções corroídas pela condição de instabilidade interna constante.

Decomposição do Estado
Talvez seja esse o argumento que permitiu a Gaspari construir, para o leitor, o momento de reflexão mais grave e doloroso de sua narrativa: o momento em que apresenta a prática da tortura política como parte dos processos de decomposição das funções do Estado a partir de 1964. Dessa vez, a existência da tortura não surgiu na história do regime militar nem como incidente, como algo que escapou ao controle, nem como resíduo, efeito não controlado de uma guerra que se desenrolou apenas e de forma incipiente nos porões do regime militar, em determinados momentos muito restritos.
Ao contrário, o ponto sugerido por Gaspari é outro: a prática da tortura se instalou ainda no início do governo Castello Branco, teve consequências muito pesadas na composição das alianças militares que sustentaram a atuação política da dupla Geisel e Golbery, propagou-se como um fungo que era do conhecimento de todos, sobretudo graças ao silêncio conivente dos participantes do núcleo militar do poder, para, finalmente, em sua dinâmica de alastramento, produzir muita corrupção. No caso, corrupção significou degradação de valores do mundo ético e do mundo moral, gerou um quadro de carência interna de moralidade e mergulhou a tortura no coração do arbítrio desencadeado pelo regime militar -no Brasil, a prática da tortura política não foi fruto das ações incidentais de personalidades desequilibradas e, nessa constatação, reside o escândalo e a dor.
A segunda consequência, porém, aponta para os limites da investigação de Gaspari ao menos no ponto em que foi apresentada nos dois primeiros livros de seu projeto. Faltam, nesses livros, os elementos que permitem ao leitor visualizar as práticas, os mecanismos e as normas políticas capazes de oferecer ao núcleo militar de poder as condições para materializar suas redes de articulações dentro da sociedade civil -em especial nos meios empresariais e financeiros e na constituição de uma base política parlamentar de sustentação governista.
Assim, nos dois livros já publicados, empresários e banqueiros, por exemplo, surgem a todo momento, participam de reuniões importantes, escutam conversas carregadas de sigilo, circulam por palácios do governo, financiam o sistema de repressão montado pelo regime autoritário, mas não lhes cabe nenhum papel político ativo nas decisões desse mesmo regime. Aliás, também não lhes cabe nenhuma participação política relevante no interior das articulações militares e durante a conspiração que precedeu a derrubada do presidente João Goulart.
Em boa medida, ao dar pouca importância aos empresários, aos banqueiros e aos movimentos de aproximação política e ideológica que empreenderam, por meio de seus canais de articulação, com o núcleo militar do poder, Gaspari terminou por deixar na sombra uma parte importante da história da dupla Geisel e Golbery, e nessa zona de sombra incide, talvez, um dos principais traços de fragilidade do seu argumento.
Seja como for, seguir rastros para contar algumas histórias deixadas para trás demanda fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo quando não sabemos seus nomes ou não concordamos com suas ações. Gaspari sabe disso e, talvez por essa razão, os dois primeiros volumes do seu projeto não pretendem nem dominar o passado com palavras nem tentar aliviá-lo de qualquer sofrimento. Ao contrário, seus livros parecem estar constantemente preparando o caminho para que o relato do ocorrido apenas se detenha, por um momento, na imaginação do presente e que a narrativa de sua história obtenha permanência e estabilidade entre nós. Isso demanda tempo. Talvez o tempo necessário para conseguirmos lamentar, pesar, avaliar e julgar as ações que formaram nosso próprio passado recente. E, no fim, contribuir, quem sabe, para retificar nossas recordações e, de posse delas, dar um sentido mais humano ao país que temos pela frente.

Heloisa Maria Murgel Starling é professora de história das idéias na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de "Os Senhores das Gerais -Os Novos Inconfidentes e o Golpe Militar de 1964" (ed. Vozes).


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