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Pierre Verger documenta práticas religiosas comuns à Bahia e à África ocidental
O protegido dos orixás
PETER FRY
A antropóloga inglesa Mary
Douglas contou certa vez sobre o
seu "exame de admissão" para o
curso de pós-graduação em antropologia na Universidade de Oxford, logo após a 2ª Guerra Mundial. Mandaram-na para o Museu
de Arqueologia Pitt-Rivers a fim de
falar com o curador, que lhe deu
um pequeno artigo de um certo
Balfour para que lesse antes da entrevista no dia seguinte.
"O artigo", segundo Douglas,
"descrevia a antropologia como
uma espécie de tecido que fiamos e
tecemos. Um grupo de pessoas, os
fiandeiros, coletam o material bruto e produzem o fio -os fatos. Eles
têm um papel humilde, mas verdadeiramente glorioso. Um outro
grupo, o dos tecelões, tece a matéria-prima maravilhosa em teorias
bastante dúbias. Evidentemente,
estes escolhem um caminho mais
fácil e melodramático, e o autor do
artigo lhes reservava seu desdém.
Soube então que ele ia me perguntar: "O que você quer ser, uma fiandeira ou uma tecelã?" Sabia que a
resposta correta seria "fiandeira".
Apesar de tudo, disse que queria
ser tecelã. Mas Evans-Pritchard,
chefe do departamento, interveio e
pude entrar. Eu sempre pensei que
é dúbia esta distinção entre teoria e
fato. (...) Esse pequeno e maravilhoso exemplo me fez pensar que
seria ridículo obrigar alguém a escolher entre estes dois caminhos".
No prefácio de "Notas Sobre o
Culto aos Orixás e Voduns", Theodore Monod, patrono acadêmico
de Verger, afirma que este "não tinha a ambição de escrever um livro
sistemático e encadeado, nos moldes dos que se exigem de candidatos ao doutoramento, por exemplo. Sua proposta era mais modesta, pois pretendia unicamente uma
acumulação eficaz de materiais
originais e autênticos. Cada um no
seu ofício. Pierre Verger é o minerador paciente, o trabalhador na
pedreira, que arrancou das entranhas da terra essa enorme quantidade de pedras. Chegará o dia em
que um arquiteto, com essas pedras, construirá um edifício. Este,
porém, implica aquelas, se for verdade que é imprudente começar a
casa pelo teto". Monod dá menos
importância aos mineradores que
aos arquitetos, assim como Balfour
preferia as fiandeiras às tecelãs.
Monod o francês, Balfour o inglês!
Verger era de família belga e, hostil ao mundo burguês onde nasceu,
distanciou-se simbólica e praticamente da pompa e pretensão desse
mundo, preferindo uma vida de
viajante asceta. Segundo o antropólogo e escritor inglês John Ryle,
ele rejeitou o rótulo de "intelectual", habitualmente se referindo
aos acadêmicos como "impostores" e "periquitos sem cores". Ryle
comenta: "Seu trabalho histórico
sobre o tráfico de escravos e a sua
documentação, por meio da escrita e da fotografia, da prática religiosa na África ocidental e no Nordeste do Brasil o coloca no mundo do
saber. Mas, para Verger, todas estas atividades foram no fundo formas de chegar mais perto dos brasileiros negros, os objetos da sua
admiração e afeto".
Não tenho dúvida sobre isso. Mas
o afeto e a admiração que Verger
tinha para com os africanos e os
seus descendentes na Bahia se traduz, nas fotografias e nos textos,
não apenas num projeto de fiandeiro, no sentido mais positivo do
termo, mas também de tecelão. O
fiandeiro das filigranas das crenças
e práticas religiosas dos negros nos
dois lados do Atlântico e o tecelão
das continuidades culturais entre a
África e o Brasil. Os textos e as fotografias de Verger concorrem para
um mesmo fim, maravilhando-nos pela beleza dos corpos, dos
gestos e dos ritos e pela pujança da
cultura ioruba, recriada no Brasil.
As "Notas" -originalmente publicadas em francês, em 1957, com
o título mais comprido de "Notes
Sur le Culte des Orisa et Vodun à
Bahia de Tous les Saints au Brésil et
à l'Ancienne Côte des Esclaves en
Afrique"- versam sobre as "manifestações dos cultos prestados
nas Américas a certos deuses da
África, trazidos pelos negros durante o tráfico dos escravos, e sobre
alguns aspectos dessas mesmas
manifestações em seu país de origem". Iniciando a sua pesquisa na
Bahia, onde adquiriu muita familiaridade com os candomblés, o
autor fez uma série de viagens para
o antigo Daomé (agora Benin) e
para a Nigéria, levando seus conhecimentos e fotos da Bahia. Essas serviram como uma espécie de
cartão de visitas, impressionando
muito os africanos, que não ignoravam que membros de suas famílias haviam sido levados como escravos para o Brasil, mas que nada
mais sabiam sobre eles.
"Eram as primeiras notícias que
recebiam de seus "primos'", diz
Verger, "e a fidelidade que estes
mantinham às crenças de seus antepassados os tocava enormemente". Tamanha era a semelhança entre a África e as cenas fotografadas
no Brasil que Verger era obrigado a
mostrar fotografias de "alguns
semblantes de mestiços bastante
claros, para que ficasse bem definido que essas fotos não haviam sido
feitas em alguma outra aldeia da
África, mas no Brasil. Do contrário, diante das fisionomias dos descendentes de escravos africanos no
Brasil, que não se misturaram,
nunca faltava alguém para afirmar
que, naquelas fotos, reconhecia
moradores de uma aldeia vizinha".
Aos poucos ganhava a confiança
dos africanos, que o deixaram estudar o sistema de adivinhação por
Ifa e iniciaram-no nas "sociedades
impropriamente denominadas secretas". Nos períodos que permaneceu no Brasil, Verger entregava
uma série de objetos carregados de
axé aos fiéis dos orixás na Bahia, o
que dava "um pouco de crédito a
quem, do ponto de vista da seita,
ainda era um "clandestino", e foi
admitido a se incluir entre aqueles
que os orixás protegem".
As "Notas" estão divididas em
13 capítulos. Os três primeiros
servem como pano de fundo,
contendo uma história bem resumida do tráfico de escravos e do
surgimento do candomblé, uma
pequena teologia dos orixás e ainda uma discussão sobre transe e
iniciação. Nesses capítulos, Verger sai um pouco do seu papel de
fiandeiro, fazendo algumas observações analíticas que têm a finalidade de ressaltar a beleza da
religião e demonstrar a importância psicológica e social do culto
aos orixás para os negros da Bahia.
Algumas dessas observações já
se tornaram lugares-comuns na
literatura, como, por exemplo, a
sua análise da própria gênese do
candomblé. Verger nota uma interessante contradição na política
administrativa em relação aos escravos no Brasil, ora misturando
escravos de diversas origens para
evitar solidariedades "tribais",
ora encorajando os batuques em
dias de descanso para fortalecer
animosidades entre as "nações"
transportadas para o Brasil.
Acontece que os batuques tiveram "como resultado mais claro
manter o culto às divindades africanas. (...) Suas cantigas e danças,
que aos olhos dos senhores pareciam simples distrações de negros
nostálgicos, eram, na realidade,
reuniões nas quais evocavam os
deuses da África".
O transe fundamental
Além disso, como os orixás foram "assimilados" aos santos católicos, "ao abrigo de um aparente sincretismo, as antigas tradições mantiveram-se através do
tempo". "Todo mundo ficava
contente: o governo, ao dividir
para melhor reinar e garantir a
paz do Estado; os escravos, por
cantar e dançar; as divindades
africanas, por receber as louvações; e os senhores por ver sentimentos tão católicos em seus cativos".
Na sua pesquisa de campo, Verger trai o romantismo que perpassa toda essa obra, ao ver a
"brandura que assumem as relações entre brancos e negros no
Brasil e na Bahia" e, ao mesmo
tempo, o orgulho que o candomblé inspira em seus fiéis. "Eles (os
negros) extraem esse sentimento
de orgulho da fé real que conservaram em relação ao poder de
seus orixás e voduns, que, para
eles, nos momentos penosos, são
o amparo mais seguro contra a
angústia e as humilhações e que,
nos momentos de alegria, lhes
proporcionam o sentimento exaltado do gênio de sua própria raça."
O transe seria fundamental para
esse processo, pois "o fenômeno
de mudança momentânea da personalidade permite a um indivíduo encontrar compensações às
frustrações da vida cotidiana, ao
encarnar um deus, e liberar seu eu
reprimido por meio da exteriorização inconsciente de suas tendências ocultas".
Cada um dos restantes dez capítulos se dedica a um orixá, na ordem em que são invocados nos
terreiros de candomblé, contendo
"orikis" (saudações que enunciam os nomes gloriosos e as louvações especiais ao orixá cujo poder é exaltado), cantigas, lendas e
rituais colhidos e observados na
Bahia e em diversos lugares da
África ocidental. Os capítulos são
também recheados de textos de
viajantes e outros observadores.
As belas fotografias, mais talvez
que os textos, evocam a continuidade de gestos, risos e posturas
entre a África e o Brasil. Abstendo-se de procurar o que talvez
não exista, ou seja "um fundo cosmogônico muito antigo e coerente", Verger apresenta fragmentos
de informações, muito detalhados é verdade, dispersos no tempo e no espaço, pois acredita que
"uma visão do conjunto, no atual
estado das coisas, não faz ressaltar
uma mitologia com um panteão
harmonioso e hierarquicamente
organizado".
Milagre africano
Este livro de Verger, denso em
descrição e com interpretações
um tanto românticas e relativamente simples, trai não apenas as
atitudes do autor, mas também de
uma geração de antropólogos que
se esforçaram no sentido de resgatar a dignidade das culturas
africanas na África e no Novo
Mundo, como contraponto às
maledicências dos racistas de
plantão. Herscovits, Leiris, Cabrera, Métraux, Bastide e outros tiveram a clara missão de mostrar
que as culturas e religiões africanas tinham não só beleza, lógica e
dignidade, como também desempenharam papel fundamental na
promoção de identidade e dignidade dos negros nas sociedades
antes escravocratas.
Eles se concentraram nas continuidades de crenças, línguas e
práticas rituais entre a África e o
Novo Mundo. Parece, do ponto
de vista da nossa pós-modernidade, tão preocupada em mostrar
"invenções", "híbridos", "construções" e "imaginações", uma
época de relativa inocência, em
que o aspecto heróico da "cultura
africana" dominava.
Quando Carlos Vogt e eu escrevemos sobre uma outra continuidade entre a África e o Brasil, a
"língua africana" do Cafundó,
não podíamos nos satisfazer em
apenas mostrar a relação entre as
palavras no Brasil e as palavras na
África. Embora um pouco fiandeiros ao ligar as palavras da língua às suas origens africanas, fomos atraídos muito mais pela
vontade de sermos tecelões, perguntando-nos sobretudo sobre o
significado e os sentidos desta língua no contexto brasileiro contemporâneo. Assim sendo, vislumbramos uma África criada no
Estado de São Paulo. Mas, ao assim fazer, acredito que talvez tenhamos diminuído um pouco o
tamanho do milagre da persistência das palavras de quimbundu
no Brasil.
O livro de Verger é um antídoto
à frieza da análise dos antropólogos. É um atestado à importância
da África no Brasil e essa tradução
representa uma bela homenagem
a um homem branco que pôde fazer a sua casa onde se sentiu em
casa: na África e no Brasil.
Além disso, e junto com "Ewé",
o seu livro sobre folhas na religião
ioruba, é um verdadeiro "vade
mecum" para todos aqueles que
têm paixão pelo candomblé e pela
cultura africana no Brasil, mas sobretudo para os pais e mães-de-santo que querem partilhar um
pouco do axé do belga que foi adivinho do Ifa, mas sempre um forasteiro intelectual. Como Verger
revelou no filme documentário
realizado por Lula Buarque de
Hollanda logo antes da sua morte,
em 1996, a única herança do mundo burguês da qual ele nunca conseguiu se desvencilhar, e que o
impediu de mergulhar definitivamente no mundo africano, foi a
razão cartesiana. Este livro deve
esgotar-se rapidamente como
mais um elemento fundamental
no constante fluxo e refluxo de
idéias entre a Europa, o Brasil e a
África.
Notas Sobre o Culto
aos Orixás e Voduns
Pierre Verger
Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149)
624 págs., R$ 75,00
Peter Fry é antropólogo, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor, juntamente com Carlos Vogt, de "Cafundó -
África no Brasil" (Companhia das Letras).
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