São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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Pierre Verger documenta práticas religiosas comuns à Bahia e à África ocidental
O protegido dos orixás

PETER FRY

A antropóloga inglesa Mary Douglas contou certa vez sobre o seu "exame de admissão" para o curso de pós-graduação em antropologia na Universidade de Oxford, logo após a 2ª Guerra Mundial. Mandaram-na para o Museu de Arqueologia Pitt-Rivers a fim de falar com o curador, que lhe deu um pequeno artigo de um certo Balfour para que lesse antes da entrevista no dia seguinte.
"O artigo", segundo Douglas, "descrevia a antropologia como uma espécie de tecido que fiamos e tecemos. Um grupo de pessoas, os fiandeiros, coletam o material bruto e produzem o fio -os fatos. Eles têm um papel humilde, mas verdadeiramente glorioso. Um outro grupo, o dos tecelões, tece a matéria-prima maravilhosa em teorias bastante dúbias. Evidentemente, estes escolhem um caminho mais fácil e melodramático, e o autor do artigo lhes reservava seu desdém. Soube então que ele ia me perguntar: "O que você quer ser, uma fiandeira ou uma tecelã?" Sabia que a resposta correta seria "fiandeira". Apesar de tudo, disse que queria ser tecelã. Mas Evans-Pritchard, chefe do departamento, interveio e pude entrar. Eu sempre pensei que é dúbia esta distinção entre teoria e fato. (...) Esse pequeno e maravilhoso exemplo me fez pensar que seria ridículo obrigar alguém a escolher entre estes dois caminhos".
No prefácio de "Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns", Theodore Monod, patrono acadêmico de Verger, afirma que este "não tinha a ambição de escrever um livro sistemático e encadeado, nos moldes dos que se exigem de candidatos ao doutoramento, por exemplo. Sua proposta era mais modesta, pois pretendia unicamente uma acumulação eficaz de materiais originais e autênticos. Cada um no seu ofício. Pierre Verger é o minerador paciente, o trabalhador na pedreira, que arrancou das entranhas da terra essa enorme quantidade de pedras. Chegará o dia em que um arquiteto, com essas pedras, construirá um edifício. Este, porém, implica aquelas, se for verdade que é imprudente começar a casa pelo teto". Monod dá menos importância aos mineradores que aos arquitetos, assim como Balfour preferia as fiandeiras às tecelãs. Monod o francês, Balfour o inglês!
Verger era de família belga e, hostil ao mundo burguês onde nasceu, distanciou-se simbólica e praticamente da pompa e pretensão desse mundo, preferindo uma vida de viajante asceta. Segundo o antropólogo e escritor inglês John Ryle, ele rejeitou o rótulo de "intelectual", habitualmente se referindo aos acadêmicos como "impostores" e "periquitos sem cores". Ryle comenta: "Seu trabalho histórico sobre o tráfico de escravos e a sua documentação, por meio da escrita e da fotografia, da prática religiosa na África ocidental e no Nordeste do Brasil o coloca no mundo do saber. Mas, para Verger, todas estas atividades foram no fundo formas de chegar mais perto dos brasileiros negros, os objetos da sua admiração e afeto".
Não tenho dúvida sobre isso. Mas o afeto e a admiração que Verger tinha para com os africanos e os seus descendentes na Bahia se traduz, nas fotografias e nos textos, não apenas num projeto de fiandeiro, no sentido mais positivo do termo, mas também de tecelão. O fiandeiro das filigranas das crenças e práticas religiosas dos negros nos dois lados do Atlântico e o tecelão das continuidades culturais entre a África e o Brasil. Os textos e as fotografias de Verger concorrem para um mesmo fim, maravilhando-nos pela beleza dos corpos, dos gestos e dos ritos e pela pujança da cultura ioruba, recriada no Brasil.
As "Notas" -originalmente publicadas em francês, em 1957, com o título mais comprido de "Notes Sur le Culte des Orisa et Vodun à Bahia de Tous les Saints au Brésil et à l'Ancienne Côte des Esclaves en Afrique"- versam sobre as "manifestações dos cultos prestados nas Américas a certos deuses da África, trazidos pelos negros durante o tráfico dos escravos, e sobre alguns aspectos dessas mesmas manifestações em seu país de origem". Iniciando a sua pesquisa na Bahia, onde adquiriu muita familiaridade com os candomblés, o autor fez uma série de viagens para o antigo Daomé (agora Benin) e para a Nigéria, levando seus conhecimentos e fotos da Bahia. Essas serviram como uma espécie de cartão de visitas, impressionando muito os africanos, que não ignoravam que membros de suas famílias haviam sido levados como escravos para o Brasil, mas que nada mais sabiam sobre eles.
"Eram as primeiras notícias que recebiam de seus "primos'", diz Verger, "e a fidelidade que estes mantinham às crenças de seus antepassados os tocava enormemente". Tamanha era a semelhança entre a África e as cenas fotografadas no Brasil que Verger era obrigado a mostrar fotografias de "alguns semblantes de mestiços bastante claros, para que ficasse bem definido que essas fotos não haviam sido feitas em alguma outra aldeia da África, mas no Brasil. Do contrário, diante das fisionomias dos descendentes de escravos africanos no Brasil, que não se misturaram, nunca faltava alguém para afirmar que, naquelas fotos, reconhecia moradores de uma aldeia vizinha".
Aos poucos ganhava a confiança dos africanos, que o deixaram estudar o sistema de adivinhação por Ifa e iniciaram-no nas "sociedades impropriamente denominadas secretas". Nos períodos que permaneceu no Brasil, Verger entregava uma série de objetos carregados de axé aos fiéis dos orixás na Bahia, o que dava "um pouco de crédito a quem, do ponto de vista da seita, ainda era um "clandestino", e foi admitido a se incluir entre aqueles que os orixás protegem".
As "Notas" estão divididas em 13 capítulos. Os três primeiros servem como pano de fundo, contendo uma história bem resumida do tráfico de escravos e do surgimento do candomblé, uma pequena teologia dos orixás e ainda uma discussão sobre transe e iniciação. Nesses capítulos, Verger sai um pouco do seu papel de fiandeiro, fazendo algumas observações analíticas que têm a finalidade de ressaltar a beleza da religião e demonstrar a importância psicológica e social do culto aos orixás para os negros da Bahia.
Algumas dessas observações já se tornaram lugares-comuns na literatura, como, por exemplo, a sua análise da própria gênese do candomblé. Verger nota uma interessante contradição na política administrativa em relação aos escravos no Brasil, ora misturando escravos de diversas origens para evitar solidariedades "tribais", ora encorajando os batuques em dias de descanso para fortalecer animosidades entre as "nações" transportadas para o Brasil. Acontece que os batuques tiveram "como resultado mais claro manter o culto às divindades africanas. (...) Suas cantigas e danças, que aos olhos dos senhores pareciam simples distrações de negros nostálgicos, eram, na realidade, reuniões nas quais evocavam os deuses da África".

O transe fundamental
Além disso, como os orixás foram "assimilados" aos santos católicos, "ao abrigo de um aparente sincretismo, as antigas tradições mantiveram-se através do tempo". "Todo mundo ficava contente: o governo, ao dividir para melhor reinar e garantir a paz do Estado; os escravos, por cantar e dançar; as divindades africanas, por receber as louvações; e os senhores por ver sentimentos tão católicos em seus cativos".
Na sua pesquisa de campo, Verger trai o romantismo que perpassa toda essa obra, ao ver a "brandura que assumem as relações entre brancos e negros no Brasil e na Bahia" e, ao mesmo tempo, o orgulho que o candomblé inspira em seus fiéis. "Eles (os negros) extraem esse sentimento de orgulho da fé real que conservaram em relação ao poder de seus orixás e voduns, que, para eles, nos momentos penosos, são o amparo mais seguro contra a angústia e as humilhações e que, nos momentos de alegria, lhes proporcionam o sentimento exaltado do gênio de sua própria raça."
O transe seria fundamental para esse processo, pois "o fenômeno de mudança momentânea da personalidade permite a um indivíduo encontrar compensações às frustrações da vida cotidiana, ao encarnar um deus, e liberar seu eu reprimido por meio da exteriorização inconsciente de suas tendências ocultas".
Cada um dos restantes dez capítulos se dedica a um orixá, na ordem em que são invocados nos terreiros de candomblé, contendo "orikis" (saudações que enunciam os nomes gloriosos e as louvações especiais ao orixá cujo poder é exaltado), cantigas, lendas e rituais colhidos e observados na Bahia e em diversos lugares da África ocidental. Os capítulos são também recheados de textos de viajantes e outros observadores. As belas fotografias, mais talvez que os textos, evocam a continuidade de gestos, risos e posturas entre a África e o Brasil. Abstendo-se de procurar o que talvez não exista, ou seja "um fundo cosmogônico muito antigo e coerente", Verger apresenta fragmentos de informações, muito detalhados é verdade, dispersos no tempo e no espaço, pois acredita que "uma visão do conjunto, no atual estado das coisas, não faz ressaltar uma mitologia com um panteão harmonioso e hierarquicamente organizado".

Milagre africano
Este livro de Verger, denso em descrição e com interpretações um tanto românticas e relativamente simples, trai não apenas as atitudes do autor, mas também de uma geração de antropólogos que se esforçaram no sentido de resgatar a dignidade das culturas africanas na África e no Novo Mundo, como contraponto às maledicências dos racistas de plantão. Herscovits, Leiris, Cabrera, Métraux, Bastide e outros tiveram a clara missão de mostrar que as culturas e religiões africanas tinham não só beleza, lógica e dignidade, como também desempenharam papel fundamental na promoção de identidade e dignidade dos negros nas sociedades antes escravocratas.
Eles se concentraram nas continuidades de crenças, línguas e práticas rituais entre a África e o Novo Mundo. Parece, do ponto de vista da nossa pós-modernidade, tão preocupada em mostrar "invenções", "híbridos", "construções" e "imaginações", uma época de relativa inocência, em que o aspecto heróico da "cultura africana" dominava.
Quando Carlos Vogt e eu escrevemos sobre uma outra continuidade entre a África e o Brasil, a "língua africana" do Cafundó, não podíamos nos satisfazer em apenas mostrar a relação entre as palavras no Brasil e as palavras na África. Embora um pouco fiandeiros ao ligar as palavras da língua às suas origens africanas, fomos atraídos muito mais pela vontade de sermos tecelões, perguntando-nos sobretudo sobre o significado e os sentidos desta língua no contexto brasileiro contemporâneo. Assim sendo, vislumbramos uma África criada no Estado de São Paulo. Mas, ao assim fazer, acredito que talvez tenhamos diminuído um pouco o tamanho do milagre da persistência das palavras de quimbundu no Brasil.
O livro de Verger é um antídoto à frieza da análise dos antropólogos. É um atestado à importância da África no Brasil e essa tradução representa uma bela homenagem a um homem branco que pôde fazer a sua casa onde se sentiu em casa: na África e no Brasil.
Além disso, e junto com "Ewé", o seu livro sobre folhas na religião ioruba, é um verdadeiro "vade mecum" para todos aqueles que têm paixão pelo candomblé e pela cultura africana no Brasil, mas sobretudo para os pais e mães-de-santo que querem partilhar um pouco do axé do belga que foi adivinho do Ifa, mas sempre um forasteiro intelectual. Como Verger revelou no filme documentário realizado por Lula Buarque de Hollanda logo antes da sua morte, em 1996, a única herança do mundo burguês da qual ele nunca conseguiu se desvencilhar, e que o impediu de mergulhar definitivamente no mundo africano, foi a razão cartesiana. Este livro deve esgotar-se rapidamente como mais um elemento fundamental no constante fluxo e refluxo de idéias entre a Europa, o Brasil e a África.



Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns
Pierre Verger Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149) 624 págs., R$ 75,00



Peter Fry é antropólogo, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor, juntamente com Carlos Vogt, de "Cafundó - África no Brasil" (Companhia das Letras).

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