São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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Zulmira Tavares lança novos contos
Figurações do tempo

ANA PAULA PACHECO

Zulmira Ribeiro Tavares voltou à cena no final do ano passado com um livro ainda pouco comentado e que traz a marca conhecida da autora: prosa fina, ensaística, dissolução de gêneros; linguagem próxima ao coloquial, pesquisa realística ciosa, às vezes alinhavada em acontecimentos históricos. Tudo a serviço de um projeto em que a representação se quer apreensão e também compreensão do real.
Em "Cortejo em Abril", como no romance "Café Pequeno" (1995), torna-se explícita a tendência de narrar os reflexos de fatos históricos na maneira como reverberam e se remontam no miúdo, em pequenos grupos ou na vida de um indivíduo. O que era alusão, estranhamente mais corrosiva, em livros anteriores -o relance da memória que traz de volta as arbitrariedades da ditadura militar no fervor pós-AI-5 ou o discurso falacioso de um simpatizante do governo autoritário, que transforma um tipo alemão de olhos claros em japonês-, toma o centro da cena nos dois últimos livros.
O percurso faz pensar num novo tipo de realismo entre nós, que coloca a ficção no limiar dos acontecimentos reais. A tendência também se mostra no novo livro de Modesto Carone, "Resumo de Ana", com todo o peso das determinações político-econômicas do país na vida dos que não têm grande poder aquisitivo. Diferenças resguardadas, o que em Carone parece uma virada no modo de lidar com o amplo espectro do realismo, talvez por isso mais incisiva e levada às últimas consequências, em Zulmira é uma vertente delineada logo de início, já presente em "O Nome do Bispo" (romance de 85) e antes em contos de "O Japonês dos Olhos Redondos" (1982). Em "Cortejo em Abril", essa proposta é colocada em causa por alguns textos que, ao menos à primeira vista, destoam fortemente dela.
O conto que dá título ao livro é o momento de maior atualidade em relação à prosa firmada pela autora, também o de maior afastamento do narrador. O olhar volta-se para o trabalhador eventual, o "Consertador de Tudo", que assiste à passagem do cortejo fúnebre de Tancredo Neves antes de fazer um conserto nos arredores.
O nome alegórico, recurso usado outras vezes no livro, parece ter aqui uma função que ultrapassa a mera evidência de um tipo brasileiro -o que uma boa configuração do personagem poderia fazer com menos artificialismo. O nome cria uma relação de mão dupla com quem tem nome "de gente" (e não do trabalho que faz), o presidente Tancredo Neves, fazendo atentar para a função deste, de "conciliador de tudo". Morto e vivo tornam então evidente a imobilidade do país ou a promessa de mudança desencarnada no "santo", como o chama o Consertador, e atrasada no sucessor imposto pelo PFL, que pouco tinha a ver com o projeto de democratização.
Na fala do protagonista e de outras personagens no parque do Ibirapuera ressoa a ideologia da salvação que o novo presidente representaria -e representa, sobretudo depois de morto. Diante dela, não há como o narrador se intrometer, ele apenas pontua, como se rubricasse as cenas, mas deixando que o leitor tire suas próprias conclusões. Tal sutileza atinge pontos altos, revelando obliquamente como os fatos envolvem de formas diferentes pessoas de classes sociais diversas.
Os personagens são vistos em ato e não há neles consciência para afastar-se do senso comum que ali desfila, nas margens do cortejo. O recorte narrativo mostra, contudo, a capacidade que o homem comum tem de intuir coisas: ao ver as pessoas nos automóveis que seguem o carro fúnebre, de olhos arregalados e com os vidros erguidos, o Consertador de Tudo lembra-se de uma vez em que visitou o Simba Safari, no jipe de um amigo feirante, com os vidros fechados, temeroso de que os leões preguiçosos se levantassem e viessem contra eles.
Depois de "Cortejo em Abril", seguem textos em que ainda se pode ver um pouco do realismo arraigado, fio central dessa prosa -"Gripe Espanhola", "Uma Senhora", "Certa Engenharia". Mas logo o leitor irá deparar-se com uma cisão evidente: em muitos dos textos curtíssimos da segunda parte, há um novo registro, que faz a narração ou a descrição que conta algo girar em torno de imagens poéticas centrais.
Um lirismo acentuado contrasta então com a concisão crítica que víamos antes, a linguagem é mais convencional, deixando à mostra um propósito poético de comoção, programaticamente ausente nos seus primeiros poemas, em "Termos de Comparação" (1974). Exemplares desse registro são os textos da série "A Praia - O Mar". Neles há um aparente desgarramento do universo mimético objetivo, por uma subjetivação do real que o faz fortemente metafórico, como se o mundo exterior fosse palco do que está dentro do narrador ou das personagens -"o amor é paisagem marinha que se recorda". Entretanto, o que poderia ser lido como sequência de quadros poéticos esconde um mimetismo liricizado de acontecimentos objetivos: nessa série, um afogamento. A chave de leitura explicitada por Zulmira fica como possibilidade para entender o conjunto.
Nesse conjunto, apesar das variações de tom e dos narradores, ora afastados, acompanhando os personagens, ora numa proximidade que é quase um misturar-se ao objeto narrado, há em comum a figuração do tempo, motivo condutor do livro. A passagem do tempo aparece implicada não só como fato histórico que se reflete no cotidiano das pessoas, mas também nos vincos da memória, da velhice, da morte. Em geral, ele parece lavar em muitas águas a acidez e o amargor das coisas; então a madureza é uma prenda aceitável, mesmo quando nos identifica à aparência de pedra-pomes do muro ao lado, cinzento, seco, porém mais leve.
Em "Uma Senhora", assim como nas séries "Encontros Reservados" e "Televisão - Televisores", o olhar sem complacência dá mostra do que há de melhor na autora. Como num encontro de um doutor em filosofia com uma manicura de doutores, em que universos heterogêneos se esbarram no ato sexual; ou no mordaz "104 Polegadas, em Cores", em que a rigidez de uma classe social endinheirada é sucessivamente enquadrada por televisores que projetam o mesmo que se vê do lado de fora, o mundo dos ricos dentro da representação do mundo dos ricos. Neles Zulmira volta com carga total, lembrando-nos de que é uma grande escritora, dona de estilo próprio até quando sai dele para experimentar a mão de outras maneiras.



Cortejo em Abril
Zulmira Ribeiro Tavares Companhia das Letras (Tel. 0/xx/ 11/866-0801) 84 págs., R$ 14,50



Ana Paula Pacheco é doutoranda em teoria literária na USP.

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