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Zulmira Tavares lança novos contos
Figurações do tempo
ANA PAULA PACHECO
Zulmira Ribeiro Tavares voltou
à cena no final do ano passado
com um livro ainda pouco comentado e que traz a marca conhecida da autora: prosa fina, ensaística, dissolução de gêneros;
linguagem próxima ao coloquial,
pesquisa realística ciosa, às vezes
alinhavada em acontecimentos
históricos. Tudo a serviço de um
projeto em que a representação se
quer apreensão e também compreensão do real.
Em "Cortejo em Abril", como
no romance "Café Pequeno"
(1995), torna-se explícita a tendência de narrar os reflexos de fatos históricos na maneira como
reverberam e se remontam no
miúdo, em pequenos grupos ou
na vida de um indivíduo. O que
era alusão, estranhamente mais
corrosiva, em livros anteriores
-o relance da memória que traz
de volta as arbitrariedades da ditadura militar no fervor pós-AI-5
ou o discurso falacioso de um
simpatizante do governo autoritário, que transforma um tipo alemão de olhos claros em japonês-, toma o centro da cena nos
dois últimos livros.
O percurso faz pensar num novo tipo de realismo entre nós, que
coloca a ficção no limiar dos
acontecimentos reais. A tendência também se mostra no novo livro de Modesto Carone, "Resumo
de Ana", com todo o peso das determinações político-econômicas
do país na vida dos que não têm
grande poder aquisitivo. Diferenças resguardadas, o que em Carone parece uma virada no modo de
lidar com o amplo espectro do
realismo, talvez por isso mais incisiva e levada às últimas consequências, em Zulmira é uma vertente delineada logo de início, já
presente em "O Nome do Bispo"
(romance de 85) e antes em contos de "O Japonês dos Olhos Redondos" (1982). Em "Cortejo em
Abril", essa proposta é colocada
em causa por alguns textos que,
ao menos à primeira vista, destoam fortemente dela.
O conto que dá título ao livro é o
momento de maior atualidade
em relação à prosa firmada pela
autora, também o de maior afastamento do narrador. O olhar volta-se para o trabalhador eventual,
o "Consertador de Tudo", que assiste à passagem do cortejo fúnebre de Tancredo Neves antes de
fazer um conserto nos arredores.
O nome alegórico, recurso usado outras vezes no livro, parece
ter aqui uma função que ultrapassa a mera evidência de um tipo
brasileiro -o que uma boa configuração do personagem poderia
fazer com menos artificialismo. O
nome cria uma relação de mão
dupla com quem tem nome "de
gente" (e não do trabalho que
faz), o presidente Tancredo Neves, fazendo atentar para a função
deste, de "conciliador de tudo".
Morto e vivo tornam então evidente a imobilidade do país ou a
promessa de mudança desencarnada no "santo", como o chama o
Consertador, e atrasada no sucessor imposto pelo PFL, que pouco
tinha a ver com o projeto de democratização.
Na fala do protagonista e de outras personagens no parque do
Ibirapuera ressoa a ideologia da
salvação que o novo presidente
representaria -e representa, sobretudo depois de morto. Diante
dela, não há como o narrador se
intrometer, ele apenas pontua,
como se rubricasse as cenas, mas
deixando que o leitor tire suas
próprias conclusões. Tal sutileza
atinge pontos altos, revelando
obliquamente como os fatos envolvem de formas diferentes pessoas de classes sociais diversas.
Os personagens são vistos em
ato e não há neles consciência para afastar-se do senso comum que
ali desfila, nas margens do cortejo. O recorte narrativo mostra,
contudo, a capacidade que o homem comum tem de intuir coisas: ao ver as pessoas nos automóveis que seguem o carro fúnebre,
de olhos arregalados e com os vidros erguidos, o Consertador de
Tudo lembra-se de uma vez em
que visitou o Simba Safari, no jipe
de um amigo feirante, com os vidros fechados, temeroso de que
os leões preguiçosos se levantassem e viessem contra eles.
Depois de "Cortejo em Abril",
seguem textos em que ainda se
pode ver um pouco do realismo
arraigado, fio central dessa prosa
-"Gripe Espanhola", "Uma Senhora", "Certa Engenharia". Mas
logo o leitor irá deparar-se com
uma cisão evidente: em muitos
dos textos curtíssimos da segunda
parte, há um novo registro, que
faz a narração ou a descrição que
conta algo girar em torno de imagens poéticas centrais.
Um lirismo acentuado contrasta então com a concisão crítica
que víamos antes, a linguagem é
mais convencional, deixando à
mostra um propósito poético de
comoção, programaticamente
ausente nos seus primeiros poemas, em "Termos de Comparação" (1974). Exemplares desse registro são os textos da série "A
Praia - O Mar". Neles há um aparente desgarramento do universo
mimético objetivo, por uma subjetivação do real que o faz fortemente metafórico, como se o
mundo exterior fosse palco do
que está dentro do narrador ou
das personagens -"o amor é paisagem marinha que se recorda".
Entretanto, o que poderia ser lido
como sequência de quadros poéticos esconde um mimetismo liricizado de acontecimentos objetivos: nessa série, um afogamento.
A chave de leitura explicitada por
Zulmira fica como possibilidade
para entender o conjunto.
Nesse conjunto, apesar das variações de tom e dos narradores,
ora afastados, acompanhando os
personagens, ora numa proximidade que é quase um misturar-se
ao objeto narrado, há em comum
a figuração do tempo, motivo
condutor do livro. A passagem do
tempo aparece implicada não só
como fato histórico que se reflete
no cotidiano das pessoas, mas
também nos vincos da memória,
da velhice, da morte. Em geral, ele
parece lavar em muitas águas a
acidez e o amargor das coisas; então a madureza é uma prenda
aceitável, mesmo quando nos
identifica à aparência de pedra-pomes do muro ao lado, cinzento,
seco, porém mais leve.
Em "Uma Senhora", assim como nas séries "Encontros Reservados" e "Televisão - Televisores", o olhar sem complacência dá
mostra do que há de melhor na
autora. Como num encontro de
um doutor em filosofia com uma
manicura de doutores, em que
universos heterogêneos se esbarram no ato sexual; ou no mordaz
"104 Polegadas, em Cores", em
que a rigidez de uma classe social
endinheirada é sucessivamente
enquadrada por televisores que
projetam o mesmo que se vê do
lado de fora, o mundo dos ricos
dentro da representação do mundo dos ricos. Neles Zulmira volta
com carga total, lembrando-nos
de que é uma grande escritora,
dona de estilo próprio até quando
sai dele para experimentar a mão
de outras maneiras.
Cortejo em Abril
Zulmira Ribeiro Tavares
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/ 11/866-0801)
84 págs., R$ 14,50
Ana Paula Pacheco é doutoranda em teoria
literária na USP.
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