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A Fortuna é um rio
VICTOR KNOLL
Teria havido uma colaboração entre Leonardo e Maquiavel? Eis o assunto deste livro, que não se propõe a explicações históricas, mas, antes, tem um caráter narrativo
e por isso mesmo a sua leitura é tão agradável quanto a de
um romance cujos personagens são instigantes. Em 1503,
os nossos "heróis" cooperaram no sentido de desviar o
curso do Arno em direção ao mar, de tal modo que Florença pudesse dispor de um porto marítimo, irrigar as terras
para a lavoura e assim expandir o seu poderio econômico,
bem como, ao privar Pisa de água, aniquilá-la de vez. O
projeto fracassou.
A Fortuna é uma deusa poderosa e guiada pelo capricho
que desvia ou destrói, favorece ou aplaca as aspirações dos
homens. Por força do interesse humanista na mitologia
clássica, essa personificação durante o Renascimento passou a ser citada como subterfúgio para evitar a invocação
da vontade divina na explicação de fatos que a razão não
conseguia dar conta: fora uma derrota no amor, na guerra,
nos negócios ou, ao contrário, algum sucesso inesperado.
Assim, "fortuna", conforme o caso, se referia ao fado, ao
acaso, à má-sorte, à adversidade, à casualidade ou ao imprevisto. Tal fora o peso do termo que Maquiavel, no penúltimo capítulo de "O Príncipe", lembra que metade das
ações dos homens está sob o arbítrio da Fortuna. Mas desenha o seu enfrentamento ao compará-la a um rio que
pode ser controlado por diques e canais e, depois, a uma
mulher que pode ser domada pelo ardor e violência. Providências e intervenções permitem subjugar a Fortuna.
Imbuídos de tais disposições, tendo em vista os interesses
de Florença, Leonardo e Maquiavel se associaram na arriscada empreitada de desviar o curso do Arno.
O trânsito do termo no Renascimento e a lembrada passagem de Maquiavel inspiraram Roger Masters ao conceber o sugestivo título de sua obra: "A Fortuna É Um Rio".
Pergunta-se se o escandaloso título que nossa edição ganhou se deve à "criatividade" da tradutora ou à decisão do
editor de que o título original é "inteligente" em demasia
para o público leitor brasileiro.
Na ocasião, Maquiavel ocupava o cargo de segundo
chanceler de Florença e assim entre as suas obrigações
constava o controle da cidade revoltosa de Pisa, que bloqueava o livre uso do Arno para o comércio Florentino.
Desde o período que passou em Milão junto aos Sforza,
Leonardo já desenvolvia estudos e experimentações de engenharia hidráulica. Como diz o subtítulo original da obra,
estavam dadas as condições para "o magnífico sonho de
Leonardo da Vinci e Niccolò Machiavelli para mudar o
curso da história florentina". Mais uma vez Roger Masters
nos oferece um rico jogo de sugestões semânticas: a Fortuna e o curso da história e do rio, o sonho e a mudança.
O comentário ao título de nossa edição -"de como o
curso de um rio mudaria o destino de Florença"-, estampado na capa, priva-nos daquele prazer retórico. Aliás, o
curso do Arno não mudou o destino de Florença porque,
simplesmente, o seu curso não foi alterado e, consequentemente, por esse motivo, também não o foi a história de
Florença. Lemos nas últimas linhas que "os amigos de Niccolò concluíram: "Não há outras novidades daqui, exceto
que o Arno corre monte abaixo como antes'". Cada um
dos parceiros desta empreitada malograda colheu uma lição: "Para Niccolò, o fracasso do projeto do Arno foi uma
combinação da "fortuna" com "a impotência de quem quer
que governasse'"; já "Leonardo extraiu uma lição diferente
do fracasso, concluindo que, para ter sucesso, deveria trabalhar para reis ou governantes dotados de poder e recursos para agir independentemente".
Cumpre esclarecer que os nossos atores, em nenhum
momento, deixaram alguma indicação do papel que desempenharam no projeto fracassado e, até mesmo, nunca
admitiram que teriam trabalhado juntos. Está claro que
não era do interesse de um -como engenheiro em busca
de encomendas-, nem do outro -como homem público ainda jovem- "atrair atenção para um oneroso desastre político pelo qual podem ser considerados responsáveis".
O relato das medidas prévias, da execução e do abandono do projeto de desviar o Arno de seu leito constitui o
miolo da narrativa; para tanto, de início, é-nos apresentado o itinerário que Leonardo e Maquiavel percorreram até
o verão de 1503 quando, segundo "o atestam provas documentais", "estavam trabalhando juntos em projetos militares de extrema importância na guerra contra Pisa".
Os dois capítulos finais são dedicados ao rumo que cada
um tomou após a suspensão das operações de construção
dos dois canais que deveriam corrigir o curso do Arno.
Apesar da vigência de um contrato que obrigava Leonardo
a terminar a pintura a "Batalha de Anghiari", "o artista foi
subitamente despachado para Piombino em uma missão
de assistência técnica no final de outubro de 1504"; quanto
a Maquiavel, "foi subitamente "concedido" a Niccolò "tempo livre" para escrever, em versos, a história dos últimos
dez anos da política exterior florentina". "A guerra iria
prosseguir por mais cinco anos. O sonho de Leonardo e
Niccolò ficou irrealizado."
O fracasso do projeto teve duas causas: o engenheiro encarregado pela obra -um certo senhor Colombino-
modificou os planos e subestimou os cálculos de remoção
de terra feitos por Leonardo e -a Fortuna!- "desencadeou-se uma violenta tempestade. As paredes dos regos
desmoronaram. Numa questão de dias , os pisanos começaram a destruir a barragem no Arno e a tapar os regos".
A Fortuna é um rio que segue seu curso sem se importar
com estas duas vontades: o domínio da natureza e a administração do poder.
Da Vinci e Maquiavel - Um Sonho Renascentista
Roger Masters
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Jorge Zahar Editor (Tel. 0/xx/21/240-0226)
262 págs., R$ 27,00
Victor Knoll é professor do departamento de filosofia da USP.
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