São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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O pronome perigoso

EMIR SADER

"A competição desperta o que há de melhor nos produtos e o que há de pior nas pessoas". A frase, de um empresário norte-americano da primeira metade do século, expressa a contradição entre o indivíduo enquanto consumidor -ávido de mais e melhores ofertas no mercado- e o trabalhador -buscando garantia do direito ao trabalho e maiores salários-, e compõem o mal-estar do final do século.
Depois do êxtase da "globalização", nenhum tema ocupa mais a atenção dos analistas do que o tema do trabalho. Desaparição, reconversão, precarização -as brumas parecem mais esconder do que revelar o que acontece com o trabalho neste longo ciclo recessivo em que o capitalismo busca novas formas de investimento rentável, mas fica preso às tentações do lucro especulativo, fácil, de prazo curto, praticamente não taxado, cujos efeitos colaterais se tornam cada vez mais centrais e agudos.
O crescimento econômico dos anos 90 -que tem nos EUA seu carro-chefe-, ao contrário do que se diz, não se assenta nas inovações tecnológicas, mas basicamente na elevação da superexploração do trabalho, fenômeno localizado por Ruy Mauro Marini na periferia do capitalismo e que, com o fim do pleno emprego nos países centrais, instalou-se ali, como novidade radical do novo período histórico.
Os anos de governos conservadores, com políticas neoliberais, nos EUA, liquidaram a rede social de proteção dos trabalhadores, fazendo com que sejam despedidos com grande facilidade e, a cada mudança de emprego, percam em média 14% do salário. Essas perdas são compensadas com novos empregos, elevando a jornada média do trabalhador norte-americano a 51,5 horas por semana, num contraste flagrante com a diminuição da jornada na Europa ocidental. O segredo recôndito do "milagre norte-americano" reside nesse mecanismo de superexploração. A própria criação de 12 milhões de empregos na década, de que se ufana Bill Clinton, inclui 10 milhões de empregos precários, possibilitando a piada da última campanha eleitoral: ao ouvir o presidente dos EUA mencionar aquela cifra mágica de empregos criados, um trabalhador concordou: "É verdade. Só eu tenho quatro!".
Não é estranho portanto que Richard Sennet, um dos maiores ensaístas norte-americanos contemporâneos, tenha transitado do declínio do homem público para o mal-estar do trabalho, depois de ter passado, em "A Carne e a Pedra", pela deterioração dos espaços públicos nas grandes metrópoles. Num livro incluído até pela conservadora revista britânica "The Economist" na lista das dez principais obras da década, Sennet enfoca as consequências da fragmentação do trabalho para o caráter dos homens, da precariedade e insegurança geradas por ela, da perda de continuidade nas profissões -em suma, dos vários mecanismos mediante os quais o grande capital busca maximizar a extração do excedente na era da internacionalização e da financeirização do capital.
"O que é singular na incerteza hoje é que ela existe sem qualquer desastre histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas práticas cotidianas de um vigoroso capitalista", afirma Sennet, correlativamente ao que diz Lester Thurow, para quem a concentração de renda nos EUA só é comparável a períodos de grandes catástrofes naturais ou bélicas. Oitenta por cento dos trabalhadores norte-americanos de menor renda perderam 18% de seus salários entre 1975 e 1995, enquanto o salário da elite empresarial aumentou em 19%.
Nessas situações de insegurança e risco, o caráter fica submetido a processos de corrosão. Todos tendem a se tornar "imigrantes", no sentido da perda de direitos, da exclusão social, favorecendo a exploração da força de trabalho nas condições que mais interessam ao capital, que circula pelos mercados internacionais, enquanto a força de trabalho não goza dessa mobilidade.
A expropriação das identidades profissionais num mercado cada vez mais informal e instável repõe no seu lugar identidades não democráticas -as étnicas, as religiosas, as esportivas-, propícias para os sectarismos, os fundamentalismos, as diabolizações. Fica uma necessidade não preenchida de pronunciar o "nós" -o "pronome perigoso", nas palavras de Sennet. O enfraquecimento das identidades sociais democráticas -profissionais, ideológicas, políticas, culturais- provoca uma apologia da não dependência, da resolução individual dos problemas, com lugar reservado para a "auto-ajuda". Trata-se de destruir todas as formas coletivas, associativas, de construção de sujeitos sociais por parte do neoliberalismo, tão bem expresso nas acusações de "corporativismo" assacadas pelos governantes filiados a essa corrente.
São patéticos e pessimistas até mesmo os balanços de origem conservadora sobre um século que termina com o capitalismo triunfante. Na base do mal-estar da virada do século está a elevação da extração do excedente do trabalho por parte do capital, provocando a corrosão do caráter analisada por Sennet. À personalidade autoritária, à personalidade narcisista se acrescenta, neste final de século, a personalidade corroída.



A Corrosão do Caráter - Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo
Richard Sennet Tradução: Marcos Santarrita Ed. Record (Tel. 0/xx/11/549-8333) 208 págs, R$ 25,00



Emir Sader é professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de "O Poder, Cadê o Poder?" (Boitempo), entre outros.

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