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A família paulista
IDA LEWKOWICS
Em 1753, em São Paulo, o português Manuel José da Silva apaixonou-se por Inácia, escrava de seu vizinho. O senhor a acorrentou, porém Manuel conseguiu retirá-la por cima do muro, escondendo-a até fazer um acerto com o proprietário da amada.
Não escapou, contudo, do tribunal eclesiástico que o processou
por adultério, devido a sua condição de casado (a esposa vivia na
metrópole). Nesse mesmo ano, Thomé Ferreira Teixeira declarava em testamento nada ter a ver com uma certa Francisca, que
alegava ser sua filha. Defendia-se alegando que seu interesse pela
moça devia-se exclusivamente à intenção de praticar "caredades
por esmolla e amor de Deos".
Esses casos foram recolhidos entre centenas de outros em arquivos eclesiásticos e fundos notariais por Eliana Goldschmidt e
Eliane Lopes, cujos livros coincidentemente receberam títulos
parecidos, embora constituam pesquisas independentes: "Convivendo com o Pecado na Sociedade Colonial Paulista -1719-1822" e "O Revelador do Pecado - Os Filhos Ilegítimos na São
Paulo do século 18" (Annablume Editora). Caracterizam-se por
sua ampla e profunda investigação em documentos dos séculos
18 e 19. Processos-crime, testamentos, inventários, legislação
coeva são os materiais utilizados por ambas, a fim de revelar os
pecados da sociedade paulista: adultérios, mancebias, ilegitimidades. Tais "delitos da carne" não foram, entretanto, os únicos
fatos que marcaram a vida familiar paulista do passado. Carlos
Bacellar serviu-se de algumas fontes semelhantes para expor as
estratégias de casamentos e alianças familiares usadas para preservação e incremento de linhagens e fortunas, mostrando como
se organizava a família paulista dentro das normas legais.
O livro de Bacellar consegue desenhar um retrato da elite paulista e indicar as coordenadas da formação da estrutura fundiária, centrada na grande propriedade. Analisa heranças e genealogias para demonstrar que famílias detentoras de fortuna desenvolveram estratégias que visavam à ampliação dos bens materiais, optando por matrimônios consanguíneos ou não, dependendo da disponibilidade de prováveis cônjuges.
O ponto central e mais saliente da argumentação é que, embora a legislação guiasse a divisão dos bens paternos para distribuição equitativa entre todos os filhos, nas regiões açucareiras paulistas a prática das famílias de elite ia em direção contrária. Dividir um engenho era praticamente impossível. Bacellar demonstra que os dotes, os adiantamentos de heranças e o uso da terça
-instrumento de disposição testamentária que permitia ao indivíduo o livre emprego da terça parte de seus bens e doá-los a
quem lhe aprouvesse- inviabilizaram a partilha igualitária.
Muitas vezes um dos filhos herdava um engenho produtivo, enquanto aos outros restavam terras virgens sem melhoramentos.
Seguindo gerações e práticas sucessórias, o autor prova, por
meio da análise de um número elevado de testamentos e inventários do século 19, que o direito de dispor livremente da terça
parte dos bens, pela legislação então em vigor, conduziu estas
práticas pouco igualitárias, principalmente quando o elevado
número de filhos forçava a fuga do fracionamento exagerado
das posses de escravos e terras.
Além do mérito das interpretações, o livro de Bacellar é exitoso
como modelo de trabalho em arquivos, utilizando um variado
corpo documental, percorrendo fontes distintas, como os já aludidos testamentos e inventários, listas nominativas e, especialmente, os "Cadastros de Terras" de 1817 e 1855, ainda insuficientemente aproveitados pelos estudiosos, que se dedicam à história de São Paulo no século 19.
Os outros dois livros citados voltam-se para o século 18, procurando entender a vida familiar da época. Goldschmidt focaliza a
sociedade colonial paulista no seu dia-a-dia mais íntimo: como
viver enfrentando um mundo que deixava grande parte da população à margem do que seria considerado uma existência condizente com a Igreja Tridentina? Para entender esse universo, a
autora apresenta um quadro das legislações eclesiástica e do Estado, que regiam a colônia e visavam padronizar moralmente a
sociedade, controlando a sexualidade por meio do matrimônio.
Ao devassar o Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo,
encontrou dezenas de processos que envolveram pecados como
sodomia, bestialidade, concubinato, sedução, adultério. Analisou-os e montou um enredo em que não esquece a condição social dos acusados, traçando um panorama dessa sociedade que
se pode conhecer por meio dos documentos que testemunharam o exercício da repressão. Tratava-se de um meio em que delatores e delatados formavam o alicerce para a disciplina de uma
população que se insubordinava contra as normas rígidas da
Igreja.
Na mesma trilha, Lopes explora a história da infância. Característica da sociedade colonial brasileira eram os altos índices de
ilegitimidade. Por ilegítimos entendiam-se os filhos nascidos de
casais que não tinham consagrado sua união perante a Igreja. Isso significa que tais crianças vinham alargar a população mestiça, quando essas uniões decorriam de pais de etnia e condição
social diferentes. Essa singularidade da sociedade paulista é tratada por Lopes que examina o modo de vida dos bastardos e o
mundo público e privado da ilegitimidade. A autora destaca a
"complacência" da Igreja e do Estado em relação aos delitos morais. Era necessário povoar e ocupar a colônia, o que limitaria a
disciplina que teoricamente deveria ser imposta à população.
Um dos maiores méritos dos três autores é a pesquisa em arquivos em busca da reconstituição de modos de vida que estão
incompreensivelmente distantes da nova geração de historiadores, que têm se dedicado ao estudo das últimas décadas de nosso
século, fazendo milhares de documentos permanecerem adormecidos. Os três livros proporcionam ao leitor o conhecimento
de pequenas tragédias vividas por coadjuvantes que, alinhavadas e conduzidas por uma idéia, permitem compreender os
grandes dramas dos séculos passados.
Os Senhores da Terra - Família e Sistema
Sucessório entre os Senhores de Engenho
do Oeste Paulista, 1765-1855
Carlos de A. Prado Bacellar
Centro de Memória/Unicamp (Tel. 0/xx/19/788-8216)
219 págs., R$ 17,00
Ida Lewkowicz é professora de história na Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca).
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