São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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Historiadora analisa os movimentose migratórios no Brasil do século 18
As entranhas do Brasil colonial

ILANA BLAJ

Homens livres e pobres percorrendo a colônia à procura de melhor sorte; forasteiros portugueses, geralmente comerciantes, buscando um matrimônio que lhes trouxesse distinção social; filhos de famílias prestigiadas migrando para outras paragens na esperança de um bom casamento que os aquinhoasse com terras e escravos; forros negros e mestiços perambulando pelos sertões, tentando fugir do estigma da cor, mas empenhados em constituir família e adquirir raízes. Andanças, migrações, enfim, um movimento constante, mas também a busca da estabilidade, representada pela família. Seria esse um dos paradoxos coloniais?
É essa a questão fundamental debatida em "A Colônia em Movimento", livro no qual se analisam os múltiplos movimentos, tanto geográficos quanto sociais, dos vários grupos que têm em comum, além do movimento e do desejo de ascensão, a constituição e o fortalecimento da família, entendida como núcleo econômico, social e político, talvez a célula básica da sociedade colonial.

Complexidade da colônia
Valendo-se de uma documentação extremamente variada -inventários e testamentos, registros paroquiais, mapeamentos agrários e populacionais-, a autora centra seu estudo nos chamados Campos de Goitacazes, na região norte fluminense, antiga capitania da Paraíba do Sul, privilegiando principalmente o século 18. É nesse período que essa área transita da pecuária e da cultura de alimentos, atividades voltadas ao mercado interno, para a exportação da cana de açúcar. Assim, torna-se um pólo atrativo para pessoas de diferentes origens e variados níveis de fortuna, que buscam focos de expansão agrícola para enriquecer e constituir família.
Essa população será o alvo da análise de Sheila Faria. Para chegar aos grupos sociais que revelam a dinâmica interna e a complexidade social da colônia, Sheila critica historiadores como Caio Prado Jr. e Fernando Novais, que teriam privilegiado nossa vocação exportadora e a exploração mercantil metropolitana.
Julgo necessário ressaltar as preocupações desses autores e situá-los nas épocas em que escreveram a respeito do tema.
A ênfase de Caio Prado Jr. na questão do sentido mercantil e exploratório de nossa colonização rompe com toda uma produção tributária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que acentuava, justamente, a missão civilizatória da colonização portuguesa. Da mesma forma, "A Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)", de Fernando Novais, espelha as suas preocupações, em finais da década de 60 e inícios da seguinte, com os mecanismos que criaram a dependência externa e foram gerados desde nosso passado colonial.
Cabe ressaltar, ainda enquanto apreciação geral, a excelente discussão das fontes consultadas, não em item à parte, mas no interior dos capítulos em que aquela documentação é mais utilizada. Assim, inventários post-mortem e testamentos são discutidos no capítulo dedicado àqueles que têm bens ou propriedades a ser legados aos seus herdeiros; da mesma forma, os registros paroquiais são destacados, quando se trata dos escravos, documentação privilegiada para o conhecimento possível dos cativos, geralmente tratados de maneira anônima e como que destituídos de história.
Às vezes, graças à documentação consultada, emergem histórias individuais, reveladoras de todo esse microcosmo composto por senhores proprietários, escravos, pequenos e grandes comerciantes, foreiros, arrendatários, criadores de gado, lavradores de cana, forros livres etc. Porém a autora não permanece apenas nessa dimensão: ao contrário, insere os indivíduos em grupos e classes sociais, as quais se tornam o alvo central da análise e direcionam o próprio plano do livro, revelando as articulações mais gerais e profundas de nossa sociedade passada.
Já no primeiro capítulo, a partir da crítica à demografia histórica que, aqui no Brasil, raramente iria além da "fria análise estatístico-demográfica", Sheila considera o patriarcalismo enquanto esfera do poder e da dominação, a noção de família extensa, a importância da parentela e dos casamentos. Destacando sempre as especificidades das áreas urbanas como São Paulo e, caso limite, Minas Gerais, o que ressalta são as semelhanças encontradas nas áreas rurais: a onipresença da família extensa, de fundamental importância enquanto estratégia econômica e de poder; o grande número de filhos legítimos provenientes de casamentos lícitos e a avultada cifra de pedidos de dispensa de impedimentos matrimoniais.
Assim, o casamento é visto como fundamental para a constituição da família e essa, por sua vez, além de propiciar a sobrevivência nas zonas agrícolas, garantia, igualmente, a respeitabilidade de seus membros. Dessa forma, as migrações para as áreas em expansão visavam à ascensão econômico-social, tendo como fundamento primeiro a família. É o movimento em busca da estabilidade.

A utopia da ascensão
O segundo capítulo é dedicado aos "andarilhos da sobrevivência", forros pobres que volteiam pelos sertões fugindo do estigma da escravidão recente e buscando melhores condições de sobrevivência. Dirigem-se às cidades, mas, sobretudo, às áreas agrícolas em expansão, onde se estabelecem em terras ainda não apropriadas legalmente. O elevado número de casamentos e recasamentos atesta a importância da família, pois os filhos seriam a mão-de-obra básica para aquela unidade doméstica.
Quando setores da elite ambicionavam aquelas terras, os forros pobres permaneciam nelas como agregados do senhor ou eram expulsos, voltando a andar pelos sertões. Seriam o que Caio Prado Jr. chamou de camada flutuante e Laura de Mello e Souza de "desclassificados sociais". Sheila de Castro Faria rejeita essas denominações, alegando que "esses andarilhos eram vistos como mão-de-obra em potencial ou adequados e subjugados ao poder de mando dos "homens bons'; por outro lado, quando livres e autônomos, significavam ameaça à ordem que se queria impor".
Ora, resistir à ordem não deixa de ser uma forma de tentar nela ingressar, perseguindo, mediante as andanças, a utopia da ascensão social no interior do modelo senhorial; subjugar essa camada significa, igualmente, tentar classificá-la, enquanto subalterna, no interior das múltiplas hierarquias de uma sociedade escravista. Assim, não só os senhores os enxergavam, mas também os próprios forros pobres se viam como desclassificados...
O capítulo seguinte é dedicado aos comerciantes que almejam, em última instância, tornar-se grandes senhores rurais. Sheila enfatiza a vinda de mercadores forasteiros para a vila de São Salvador e as estratégias que desenvolvem para casar-se com as filhas dos "homens bons", aliando, assim, à fortuna, o status e prestígio social.
Por outro lado, os filhos das famílias principais também migram tentando reaver, igualmente pelo casamento, parte da fortuna depauperada por sucessivas partilhas. Sendo branco, membro de família prestigiada, tendo tido fortuna anterior e exercido postos administrativos, o matrimônio não era tão difícil para eles que, ao fim e ao cabo, buscavam a requalificação por meio de novo enlace. Assim, tanto para os comerciantes como para os filhos dos grandes proprietários, o movimento é o mesmo: migrações em busca da estabilidade mediante bons matrimônios. Não deixa de ser a tentativa de preservar e ampliar o modelo de dominação senhorial.
Já aqueles que não têm capital significativo dedicam-se à cultura de alimentos ou à criação de gado, setores constituintes do mercado interno colonial. No entanto, tanto para eles quanto para os lavradores de cana, como também para os próprios senhores de engenho, a desclassificação é sempre possível. E assim voltamos ao ponto de partida: as andanças, as migrações na procura constante da fortuna e da estabilidade.
No tocante aos escravos, a autora acentua a construção de relações sociais no interior do próprio grupo e a prática de concessões e de adequações no relacionamento com outros. Para os cativos a família também é fundamental e o que se observa nesse grupo, por meio dos variados registros paroquiais, é a construção de uma ampla rede familiar e de relações de compadrio. Mesmo os nascimentos ilegítimos devem ser pensados conforme a realidade concreta. São maiores nas áreas urbanas e portuárias e nas fazendas canavieiras, locais onde o trabalho masculino preponderava. Já nas atividades madeireiras, pecuaristas e na cultura de alimentos, a presença da família era mais importante -daí o número maior de casamentos e de nascimentos legítimos.
Se os escravos valiam-se do casamento cristão para se ver reconhecidos socialmente, a internalização desse modelo por eles interessava também aos senhores, pois diminuía o número de fugas e também os custos com a alimentação. Afinal, "dificultar-lhes as fugas, adequá-los ao cativeiro e ao trabalho, estabilizá-los na região e torná-los dóceis foram objetivos ferreamente perseguidos por senhores".
Enfim, por intermédio dos grupos e classes sociais, Sheila de Castro Faria privilegiará o movimento e a busca pela estabilidade por meio da família. Não é um paradoxo, mas é a revelação das entranhas da própria sociedade colonial: a internalização do modelo senhorial pelos mais diversos segmentos sociais, modelo baseado na família extensa, na parentela, no patriarcalismo, no status, prestígio social e na hierarquia. É esse modelo que informa o percurso dos grupos mais desfavorecidos que almejam alcançá-lo, ou pela aceitação ou pela resistência; é ele, enquanto núcleo do poder, que os estamentos privilegiados tentam preservar, ampliar e monopolizar.
Daí o aparente paradoxo, movimento/estabilidade, ser na verdade a própria dinâmica colonial.



A Colônia em Movimento - Fortuna e Família no Cotidiano Colonial
Sheila de Castro Faria Nova Fronteira (Tel. 0/xx/21/537-8770) 440 págs., R$ 19,00



Ilana Blaj é autora de "A Trama das Tensões" (Hucitec, no prelo). Foi professora de história na USP entre 1986 e 1999, tendo falecido no último dia 1º de maio.

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