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Historiadora analisa os movimentose migratórios no Brasil do século 18
As entranhas do Brasil colonial
ILANA BLAJ
Homens livres e pobres percorrendo a colônia à procura de melhor sorte; forasteiros portugueses, geralmente comerciantes,
buscando um matrimônio que
lhes trouxesse distinção social; filhos de famílias prestigiadas migrando para outras paragens na
esperança de um bom casamento
que os aquinhoasse com terras e
escravos; forros negros e mestiços
perambulando pelos sertões, tentando fugir do estigma da cor,
mas empenhados em constituir
família e adquirir raízes. Andanças, migrações, enfim, um movimento constante, mas também a
busca da estabilidade, representada pela família. Seria esse um dos
paradoxos coloniais?
É essa a questão fundamental
debatida em "A Colônia em Movimento", livro no qual se analisam os múltiplos movimentos,
tanto geográficos quanto sociais,
dos vários grupos que têm em comum, além do movimento e do
desejo de ascensão, a constituição
e o fortalecimento da família, entendida como núcleo econômico,
social e político, talvez a célula básica da sociedade colonial.
Complexidade da colônia
Valendo-se de uma documentação extremamente variada
-inventários e testamentos, registros paroquiais, mapeamentos
agrários e populacionais-, a autora centra seu estudo nos chamados Campos de Goitacazes, na
região norte fluminense, antiga
capitania da Paraíba do Sul, privilegiando principalmente o século
18. É nesse período que essa área
transita da pecuária e da cultura
de alimentos, atividades voltadas
ao mercado interno, para a exportação da cana de açúcar. Assim,
torna-se um pólo atrativo para
pessoas de diferentes origens e variados níveis de fortuna, que buscam focos de expansão agrícola
para enriquecer e constituir família.
Essa população será o alvo da
análise de Sheila Faria. Para chegar aos grupos sociais que revelam a dinâmica interna e a complexidade social da colônia, Sheila
critica historiadores como Caio
Prado Jr. e Fernando Novais, que
teriam privilegiado nossa vocação
exportadora e a exploração mercantil metropolitana.
Julgo necessário ressaltar as
preocupações desses autores e situá-los nas épocas em que escreveram a respeito do tema.
A ênfase de Caio Prado Jr. na
questão do sentido mercantil e
exploratório de nossa colonização rompe com toda uma produção tributária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que
acentuava, justamente, a missão
civilizatória da colonização portuguesa. Da mesma forma, "A
Crise do Antigo Sistema Colonial
(1777-1808)", de Fernando Novais, espelha as suas preocupações, em finais da década de 60 e
inícios da seguinte, com os mecanismos que criaram a dependência externa e foram gerados desde
nosso passado colonial.
Cabe ressaltar, ainda enquanto
apreciação geral, a excelente discussão das fontes consultadas,
não em item à parte, mas no interior dos capítulos em que aquela
documentação é mais utilizada.
Assim, inventários post-mortem
e testamentos são discutidos no
capítulo dedicado àqueles que
têm bens ou propriedades a ser legados aos seus herdeiros; da mesma forma, os registros paroquiais
são destacados, quando se trata
dos escravos, documentação privilegiada para o conhecimento
possível dos cativos, geralmente
tratados de maneira anônima e
como que destituídos de história.
Às vezes, graças à documentação consultada, emergem histórias individuais, reveladoras de
todo esse microcosmo composto
por senhores proprietários, escravos, pequenos e grandes comerciantes, foreiros, arrendatários,
criadores de gado, lavradores de
cana, forros livres etc. Porém a
autora não permanece apenas
nessa dimensão: ao contrário, insere os indivíduos em grupos e
classes sociais, as quais se tornam
o alvo central da análise e direcionam o próprio plano do livro, revelando as articulações mais gerais e profundas de nossa sociedade passada.
Já no primeiro capítulo, a partir
da crítica à demografia histórica
que, aqui no Brasil, raramente iria
além da "fria análise estatístico-demográfica", Sheila considera o
patriarcalismo enquanto esfera
do poder e da dominação, a noção de família extensa, a importância da parentela e dos casamentos. Destacando sempre as
especificidades das áreas urbanas
como São Paulo e, caso limite, Minas Gerais, o que ressalta são as
semelhanças encontradas nas
áreas rurais: a onipresença da família extensa, de fundamental
importância enquanto estratégia
econômica e de poder; o grande
número de filhos legítimos provenientes de casamentos lícitos e a
avultada cifra de pedidos de dispensa de impedimentos matrimoniais.
Assim, o casamento é visto como fundamental para a constituição da família e essa, por sua vez,
além de propiciar a sobrevivência
nas zonas agrícolas, garantia,
igualmente, a respeitabilidade de
seus membros. Dessa forma, as
migrações para as áreas em expansão visavam à ascensão econômico-social, tendo como fundamento primeiro a família. É o
movimento em busca da estabilidade.
A utopia da ascensão
O segundo capítulo é dedicado
aos "andarilhos da sobrevivência", forros pobres que volteiam
pelos sertões fugindo do estigma
da escravidão recente e buscando
melhores condições de sobrevivência. Dirigem-se às cidades,
mas, sobretudo, às áreas agrícolas
em expansão, onde se estabelecem em terras ainda não apropriadas legalmente. O elevado número de casamentos e recasamentos atesta a importância da
família, pois os filhos seriam a
mão-de-obra básica para aquela
unidade doméstica.
Quando setores da elite ambicionavam aquelas terras, os forros
pobres permaneciam nelas como
agregados do senhor ou eram expulsos, voltando a andar pelos
sertões. Seriam o que Caio Prado
Jr. chamou de camada flutuante e
Laura de Mello e Souza de "desclassificados sociais". Sheila de
Castro Faria rejeita essas denominações, alegando que "esses andarilhos eram vistos como mão-de-obra em potencial ou adequados e subjugados ao poder de
mando dos "homens bons'; por
outro lado, quando livres e autônomos, significavam ameaça à
ordem que se queria impor".
Ora, resistir à ordem não deixa
de ser uma forma de tentar nela
ingressar, perseguindo, mediante
as andanças, a utopia da ascensão
social no interior do modelo senhorial; subjugar essa camada
significa, igualmente, tentar classificá-la, enquanto subalterna, no
interior das múltiplas hierarquias
de uma sociedade escravista. Assim, não só os senhores os enxergavam, mas também os próprios
forros pobres se viam como desclassificados...
O capítulo seguinte é dedicado
aos comerciantes que almejam,
em última instância, tornar-se
grandes senhores rurais. Sheila
enfatiza a vinda de mercadores
forasteiros para a vila de São Salvador e as estratégias que desenvolvem para casar-se com as filhas dos "homens bons", aliando,
assim, à fortuna, o status e prestígio social.
Por outro lado, os filhos das famílias principais também migram tentando reaver, igualmente pelo casamento, parte da fortuna depauperada por sucessivas
partilhas. Sendo branco, membro
de família prestigiada, tendo tido
fortuna anterior e exercido postos
administrativos, o matrimônio
não era tão difícil para eles que, ao
fim e ao cabo, buscavam a requalificação por meio de novo enlace.
Assim, tanto para os comerciantes como para os filhos dos grandes proprietários, o movimento é
o mesmo: migrações em busca da
estabilidade mediante bons matrimônios. Não deixa de ser a tentativa de preservar e ampliar o
modelo de dominação senhorial.
Já aqueles que não têm capital
significativo dedicam-se à cultura
de alimentos ou à criação de gado,
setores constituintes do mercado
interno colonial. No entanto, tanto para eles quanto para os lavradores de cana, como também para os próprios senhores de engenho, a desclassificação é sempre
possível. E assim voltamos ao
ponto de partida: as andanças, as
migrações na procura constante
da fortuna e da estabilidade.
No tocante aos escravos, a autora acentua a construção de relações sociais no interior do próprio grupo e a prática de concessões e de adequações no relacionamento com outros. Para os cativos a família também é fundamental e o que se observa nesse
grupo, por meio dos variados registros paroquiais, é a construção
de uma ampla rede familiar e de
relações de compadrio. Mesmo os
nascimentos ilegítimos devem ser
pensados conforme a realidade
concreta. São maiores nas áreas
urbanas e portuárias e nas fazendas canavieiras, locais onde o trabalho masculino preponderava.
Já nas atividades madeireiras, pecuaristas e na cultura de alimentos, a presença da família era mais
importante -daí o número
maior de casamentos e de nascimentos legítimos.
Se os escravos valiam-se do casamento cristão para se ver reconhecidos socialmente, a internalização desse modelo por eles interessava também aos senhores,
pois diminuía o número de fugas
e também os custos com a alimentação. Afinal, "dificultar-lhes
as fugas, adequá-los ao cativeiro e
ao trabalho, estabilizá-los na região e torná-los dóceis foram objetivos ferreamente perseguidos
por senhores".
Enfim, por intermédio dos grupos e classes sociais, Sheila de
Castro Faria privilegiará o movimento e a busca pela estabilidade
por meio da família. Não é um paradoxo, mas é a revelação das entranhas da própria sociedade colonial: a internalização do modelo
senhorial pelos mais diversos segmentos sociais, modelo baseado
na família extensa, na parentela,
no patriarcalismo, no status, prestígio social e na hierarquia. É esse
modelo que informa o percurso
dos grupos mais desfavorecidos
que almejam alcançá-lo, ou pela
aceitação ou pela resistência; é ele,
enquanto núcleo do poder, que os
estamentos privilegiados tentam
preservar, ampliar e monopolizar.
Daí o aparente paradoxo, movimento/estabilidade, ser na verdade a própria dinâmica colonial.
A Colônia em Movimento -
Fortuna e Família
no Cotidiano Colonial
Sheila de Castro Faria
Nova Fronteira
(Tel. 0/xx/21/537-8770)
440 págs., R$ 19,00
Ilana Blaj é autora de "A Trama das Tensões" (Hucitec, no prelo). Foi professora de
história na USP entre 1986 e 1999, tendo falecido no último dia 1º de maio.
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