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Alfredo Bosi se debruça sobre o enigma da obra de Machado de Assis
A invenção machadiana
BENEDITO NUNES
O olhar do ficcionista sente pensando e
pensa sentindo. Nesses sentir e pensar,
mutuamente entrelaçados, ele se distancia dos objetos de que a visão o aproxima. A proximidade do olhar garante o
conhecimento de um dado contorno humano: a sociedade, as ações individuais e
os motivos a que obedecem. Mas só recolhido no âmbito da imaginação, que o
distancia desse contorno em que se acha
incluído, ganha o olhar do ficcionista a
percuciente lucidez de um foco reflexivo
aceso sobre uma "persona" -a pessoa
feita personagem ou a personagem tradutível em pessoa.
Essa dupla transposição é o que conseguem os autênticos ficcionistas, como
Balzac, Stendhal, Dostoiévski, Tolstói,
Proust, Kafka, Thomas Mann e Machado de Assis, porém segundo um jogo
próprio entre sentir pensando e pensar
sentindo, e portanto de acordo com uma
especificidade do olhar a ser interrogada
em cada qual, e em cada qual a ser decifrada como o enigma da criação literária.
A obra toda de Machado de Assis nos
propõe esse enigma em que agora Alfredo Bosi se debruça. Insatisfeito com o
considerável estoque das interpretações
correntes dessa obra, é a ela mesma, e só
a ela, que recorre para poder resolvê-lo.
O raio visual
Está claro que, como todo olhar, o de
Machado de Assis não excede o âmbito
traçado pelo seu raio visual: a sociedade
do Rio de Janeiro à época imperial e nos
primórdios da República, de que o mesmo escritor participou. Mas o que o
olhar machadiano dela apreendeu e
compreendeu ultrapassa os limites da
matéria social que lhe foi disponível, como documento humano a observar e registrar.
Seja marxista seja weberiana, a abordagem sociológica exigir-lhe-ia, no mínimo, a confecção de tipos, enquanto individualidades representativas da sociedade neles projetada de maneira exemplar.
"A ficção passa a ser um inventário de situações típicas, personagens típicas e
idéias típicas de personagens em situação" (pág. 160). Machado de Assis deu-nos muito mais; por trás do tipo, iluminou a individualidade desamparada, ora
inconsequente, ora consequente, agindo
quase sempre para compensar o déficit
de sua situação desajustada numa sociedade desigual, e raramente de maneira
nobre e desprendida.
Jacobina, do conto "O Espelho", identifica-se com a farda de alferes que está
vestindo; incorporando a tipicidade social que reflete, ele é, portanto, aquilo
que socialmente representa. Mas, como
observa Alfredo Bosi, Jacobina sabe com
o que se identifica: exerce um papel sob
medida e tem consciência disso. É, por
isso, tipo e pessoa ao mesmo tempo. Como também é tipo e pessoa aquele personagem do conto "Só", que se esvazia
de si mesmo ao isolar-se do gregarismo
social.
De qualquer forma, atravessando do
típico para o individual, o olhar retira do
indivíduo a "persona", a máscara; desnuda-o como ser enganado e enganoso,
que o interesse e o sentido das conveniências norteiam. Portanto, "há em Machado mais do que simples inventário:
há invenção" (pág.160). E, conto ou romance, essa invenção se faz numa prosa
ficcional equívoca, dubitativa, cética,
que não cessa de assinalar a sua paradoxal capacidade de encobrir o real ao desencobri-lo. A veracidade absoluta, proclamaria o narrador de "Dom Casmurro", "é incompatível com o estado social". E Brás Cubas ressaltou que a natureza é tão caprichosa quanto é volúvel a
história, mestra da vida e "uma eterna
loureira", tão volúvel quanto a narrativa
de um contador de histórias.
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Suspensão do juízo
A volubilidade da narrativa ficcional
do autor de "Pai Contra Mãe" -aquele
conto do empobrecido caçador de escravos, que entregaria o filho à roda se atendesse à súplica de misericórdia de uma
preta escrava, deixando de entregá-la,
sob remuneração, ao seu senhor legal-
rejeita o "sim" da aprovação e o "não" da
reprovação porque passou pela escola
do ceticismo, por intermédio da sátira
menipéia, engendrada no aguerrido grupo dos cínicos, esses socráticos menores
que desafiaram, por meio do escárnio e
da detração irônica, as convenções sociais em nome da virtude.
O ceticismo tem como ato principal a
suspensão do juízo, a "epoché", diante
da impossibilidade de afirmar uma verdade e o seu oposto. No citado conto, a
"epoché" deixa ver na prosa do mesmo
escritor o embate da ideologia da época,
a qual parece justificar-se diante da aparente aprovação do ofício de caça aos escravos -"Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo"- e da contra-ideologia, que ressalta a ignomínia de
uma conduta, na qual o mesmo mecanismo do poder público se apura na força sobre o não-livre que concedia ao indivíduo-livre: "Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria
nobre, mas por ser instrumento da força
com que se mantém a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza explícita das
ações reinvidicadoras" (págs. 122-24).
Em vez de se unirem ou se desunirem, o
"sim" num caso e o "não" no outro se
entrechocam e geram a chispa do sarcasmo, que escarnece do personagem.
Errata pensante
O olhar do narrador está aqui no resvalo, no contraste brusco, no choque dos
contrários agredindo o senso comum e
as verdades sociais e morais correntes.
Isso pode conduzir à caricatura e à galhofa pela vivissecção das atitudes, mostrando-nos que o ficcionista, nem conformista nem utópico, dirige o seu olhar
segundo o jogo de contrastes que o constitui. "Esse jogo tem um nome bem conhecido: chama-se humor" (pág.126).
Ora, nessa anatomia das atitudes
-que foi como Northorp Frye denominou o humor, quando expandido numa
prosa híbrida, tal a de Machado, meio
romance, meio discussão de idéias, cheia
de reflexões e de achegas eruditas, muitas vezes parodísticas (tal a "errata pensante" replicando ao "roseau pensant"
de Pascal)-, não haverá lugar para o
otimismo e muito menos para o radical
pessimismo, lastreado pelo sentimento
de "ódio à vida", que muitos imputaram
ao nosso desconfortável escritor. "Rabugens de pessimismo", sim, disseminou
ele em contos e romances, enquanto
quota de desconfiança à regência ostensiva ou subterrânea dos interesses e do
instinto de domínio que, enganadores,
regem os atos humanos e autorizam-nos
a defender-nos do logro. O narrador cético, enganando-nos para não ser enganado, praticou, no dizer de John Gledson, um realismo deceptivo, que o distingue do realismo burguês, triunfalista,
praticado à época, em abono da dominante crença no progresso da humanidade, como evolução gradual e contínua
da espécie, esposada pelo positivismo e o
evolucionismo da geração de 70.
Já o "humanitismo" de Quincas Borba
é uma paródia, que as satiriza, dessas filosofias adotadas pela nossa intelectualidade de então, paródia que, humoristicamente, identificou o pessimismo de
Schopenhauer com o otimismo panglossiano. Tudo é "humanitas", um só princípio imortal, explica Quicas Borba a Rubião. Se nada morre, tudo é bom, mesmo
se há vencidos e vencedores, os que perdem as batatas e os que as ganham. Os
indivíduos são como as bolhas transitórias da água que ferve, permanecendo
sempre a mesma. As bolhas-indivíduos
não contam para "humanitas", porque
bolhas não têm opinião. Vivemos no
melhor dos mundos possíveis. Confirmam-no o positivismo e o evolucionismo, aquele por meio da ação redentora
da ciência, a verdadeira religião da humanidade, e o último pelo infalível benefício da evolução, a largo prazo igualizadora.
"Em última instância os mais fortes e
os mais aptos já tinham vencido e continuariam a vencer, merecendo o prêmio
final da própria sobrevivência: batatas,
pelo menos de modo similar, mas apelando antes para a solidariedade do que
para a competição darwiniana entre indivíduos e raças, o positivismo previa o
melhoramento coletivo, que o estágio
científico da humanidade teria inaugurado depois de superadas as fases teológica e metafísica da história: bem o sabia
Quincas Borba, o pensador machadiano
do humanitismo" (págs.155-156). Assim,
a natureza mesma era depositária de um
sentido que continuaria na história. Mas
a natureza é um ogre devorador, como
nos mostra a cena de "O Delírio" em
"Memórias Póstumas de Brás Cubas",
que nos adverte ser a história "eterna
loureira".
Não concede a ficção do nosso autor
privilégio terapêutico ao tempo. O tempo não cura; em vez de libertar os homens da opressão e da mentira, ele é
"cúmplice de atentados"; fazendo "esquecer os bons propósitos", destrói as
promessas, o altruísmo e consagra os
vencedores.
O olhar machadiano enfrenta o tempo;
neutralizando-lhe a ação recuperadora,
parece pairar acima dele, com a sobriedade calculada de seu estilo, em oposição ao sobressalto dramático, que sacode "a expressão torturada dos melhores
escritores brasileiros seus contemporâneos" (pág.157) -um Raul Pompéia,
um Euclides da Cunha, um Cruz e Souza
e, depois, um Augusto dos Anjos e um
Lima Barreto, confiantes no poder de tiro crítico das "idéias novas" contra a injusta "assimetria" da sociedade brasileira. Desse modo, a pugna das "idéias novas", que foi "a batalha ideológica dos
anos 70, não passa pelo centro vivo da
ficção machadiana, não é o seu espaço de
significações nem a sua referência polêmica. Outra é a direção de seu olhar"
(pág. 154).
Realismo deceptivo
Diante das filosofias triunfalistas da
época, o realismo de Machado seria também deceptivo, no sentido de que se colocou do lado de fora dos padrões de
pensamento vigentes naquele momento.
Se, pois, de sua época diverge, se rebate
criticamente esses padrões, expondo-os
à galhofa, seu olhar realista, que pensa
sentindo e sente pensando, tanto mais
acurada e penetrantemente devassa o
contorno humano de que se aproxima
quanto mais pela imaginação dele se
afasta, já intelectualmente distanciado
das concepções coetâneas, ilusórias como abstrações filosóficas e deformantes
da realidade como ideologias. Assim, na
dissidência com o pensamento de seu
meio e de sua época, o olhar machadiano
é um olhar extemporâneo, que se forja
uma reflexividade anacrônica, aderindo
a matrizes inatuais de sensibilidade e de
pensamento, revificadas numa criação
ficcional de "horizonte ao mesmo tempo
individual e universal". Que matrizes são
essas?
A resposta de Bosi, como hipótese
plausível, para entender o enigma do
olhar machadiano, é que tais matrizes
derivariam "das análises psicológicas
desenganadas do moralismo seis-setecentista" (pág. 155), incorporado pela
vertente cética do Iluminismo, e que
pensadores do Oitocentos, como Leopardi, Stendhal e Schopenhauer assimilaram, mas circundadas ainda de mais
antigas fontes a que as primeiras remetem, como o "Eclesiastes" e o "Livro de
Jó".
Certamente, Pascal como Leopardi,
Schopenhauer como Stendhal contribuem para a gênese desse olhar, mas
aliados a La Rochefoucauld, La Bruyère,
Manuel Bernardes, Matias Aires, Vauvenargues, Helvetius e Adam Smith. O
exemplário desses modos de pensamento, em apêndice no final do livro, nos
oferece, numa escala nuançada, os tons,
entretons e timbres de um pensamento
cético ajustado às artimanhas do humor,
que teriam convergido no foco do olhar
machadiano -não espelho de luz difusa, mas lente analítica do real.
O Enigma do Olhar
Alfredo Bosi
Ática (Tel. 0/xx/11/278-9322)
232 págs., R$ 23,90
Benedito Nunes é professor na Universidade Federal
do Pará e autor de " Crivo de Papel" (Ática), entre outros.
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