São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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Alfredo Bosi se debruça sobre o enigma da obra de Machado de Assis
A invenção machadiana

BENEDITO NUNES

O olhar do ficcionista sente pensando e pensa sentindo. Nesses sentir e pensar, mutuamente entrelaçados, ele se distancia dos objetos de que a visão o aproxima. A proximidade do olhar garante o conhecimento de um dado contorno humano: a sociedade, as ações individuais e os motivos a que obedecem. Mas só recolhido no âmbito da imaginação, que o distancia desse contorno em que se acha incluído, ganha o olhar do ficcionista a percuciente lucidez de um foco reflexivo aceso sobre uma "persona" -a pessoa feita personagem ou a personagem tradutível em pessoa.
Essa dupla transposição é o que conseguem os autênticos ficcionistas, como Balzac, Stendhal, Dostoiévski, Tolstói, Proust, Kafka, Thomas Mann e Machado de Assis, porém segundo um jogo próprio entre sentir pensando e pensar sentindo, e portanto de acordo com uma especificidade do olhar a ser interrogada em cada qual, e em cada qual a ser decifrada como o enigma da criação literária. A obra toda de Machado de Assis nos propõe esse enigma em que agora Alfredo Bosi se debruça. Insatisfeito com o considerável estoque das interpretações correntes dessa obra, é a ela mesma, e só a ela, que recorre para poder resolvê-lo.

O raio visual
Está claro que, como todo olhar, o de Machado de Assis não excede o âmbito traçado pelo seu raio visual: a sociedade do Rio de Janeiro à época imperial e nos primórdios da República, de que o mesmo escritor participou. Mas o que o olhar machadiano dela apreendeu e compreendeu ultrapassa os limites da matéria social que lhe foi disponível, como documento humano a observar e registrar.
Seja marxista seja weberiana, a abordagem sociológica exigir-lhe-ia, no mínimo, a confecção de tipos, enquanto individualidades representativas da sociedade neles projetada de maneira exemplar. "A ficção passa a ser um inventário de situações típicas, personagens típicas e idéias típicas de personagens em situação" (pág. 160). Machado de Assis deu-nos muito mais; por trás do tipo, iluminou a individualidade desamparada, ora inconsequente, ora consequente, agindo quase sempre para compensar o déficit de sua situação desajustada numa sociedade desigual, e raramente de maneira nobre e desprendida.
Jacobina, do conto "O Espelho", identifica-se com a farda de alferes que está vestindo; incorporando a tipicidade social que reflete, ele é, portanto, aquilo que socialmente representa. Mas, como observa Alfredo Bosi, Jacobina sabe com o que se identifica: exerce um papel sob medida e tem consciência disso. É, por isso, tipo e pessoa ao mesmo tempo. Como também é tipo e pessoa aquele personagem do conto "Só", que se esvazia de si mesmo ao isolar-se do gregarismo social.
De qualquer forma, atravessando do típico para o individual, o olhar retira do indivíduo a "persona", a máscara; desnuda-o como ser enganado e enganoso, que o interesse e o sentido das conveniências norteiam. Portanto, "há em Machado mais do que simples inventário: há invenção" (pág.160). E, conto ou romance, essa invenção se faz numa prosa ficcional equívoca, dubitativa, cética, que não cessa de assinalar a sua paradoxal capacidade de encobrir o real ao desencobri-lo. A veracidade absoluta, proclamaria o narrador de "Dom Casmurro", "é incompatível com o estado social". E Brás Cubas ressaltou que a natureza é tão caprichosa quanto é volúvel a história, mestra da vida e "uma eterna loureira", tão volúvel quanto a narrativa de um contador de histórias.
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Suspensão do juízo
A volubilidade da narrativa ficcional do autor de "Pai Contra Mãe" -aquele conto do empobrecido caçador de escravos, que entregaria o filho à roda se atendesse à súplica de misericórdia de uma preta escrava, deixando de entregá-la, sob remuneração, ao seu senhor legal- rejeita o "sim" da aprovação e o "não" da reprovação porque passou pela escola do ceticismo, por intermédio da sátira menipéia, engendrada no aguerrido grupo dos cínicos, esses socráticos menores que desafiaram, por meio do escárnio e da detração irônica, as convenções sociais em nome da virtude.
O ceticismo tem como ato principal a suspensão do juízo, a "epoché", diante da impossibilidade de afirmar uma verdade e o seu oposto. No citado conto, a "epoché" deixa ver na prosa do mesmo escritor o embate da ideologia da época, a qual parece justificar-se diante da aparente aprovação do ofício de caça aos escravos -"Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo"- e da contra-ideologia, que ressalta a ignomínia de uma conduta, na qual o mesmo mecanismo do poder público se apura na força sobre o não-livre que concedia ao indivíduo-livre: "Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantém a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza explícita das ações reinvidicadoras" (págs. 122-24). Em vez de se unirem ou se desunirem, o "sim" num caso e o "não" no outro se entrechocam e geram a chispa do sarcasmo, que escarnece do personagem.

Errata pensante
O olhar do narrador está aqui no resvalo, no contraste brusco, no choque dos contrários agredindo o senso comum e as verdades sociais e morais correntes. Isso pode conduzir à caricatura e à galhofa pela vivissecção das atitudes, mostrando-nos que o ficcionista, nem conformista nem utópico, dirige o seu olhar segundo o jogo de contrastes que o constitui. "Esse jogo tem um nome bem conhecido: chama-se humor" (pág.126).
Ora, nessa anatomia das atitudes -que foi como Northorp Frye denominou o humor, quando expandido numa prosa híbrida, tal a de Machado, meio romance, meio discussão de idéias, cheia de reflexões e de achegas eruditas, muitas vezes parodísticas (tal a "errata pensante" replicando ao "roseau pensant" de Pascal)-, não haverá lugar para o otimismo e muito menos para o radical pessimismo, lastreado pelo sentimento de "ódio à vida", que muitos imputaram ao nosso desconfortável escritor. "Rabugens de pessimismo", sim, disseminou ele em contos e romances, enquanto quota de desconfiança à regência ostensiva ou subterrânea dos interesses e do instinto de domínio que, enganadores, regem os atos humanos e autorizam-nos a defender-nos do logro. O narrador cético, enganando-nos para não ser enganado, praticou, no dizer de John Gledson, um realismo deceptivo, que o distingue do realismo burguês, triunfalista, praticado à época, em abono da dominante crença no progresso da humanidade, como evolução gradual e contínua da espécie, esposada pelo positivismo e o evolucionismo da geração de 70.
Já o "humanitismo" de Quincas Borba é uma paródia, que as satiriza, dessas filosofias adotadas pela nossa intelectualidade de então, paródia que, humoristicamente, identificou o pessimismo de Schopenhauer com o otimismo panglossiano. Tudo é "humanitas", um só princípio imortal, explica Quicas Borba a Rubião. Se nada morre, tudo é bom, mesmo se há vencidos e vencedores, os que perdem as batatas e os que as ganham. Os indivíduos são como as bolhas transitórias da água que ferve, permanecendo sempre a mesma. As bolhas-indivíduos não contam para "humanitas", porque bolhas não têm opinião. Vivemos no melhor dos mundos possíveis. Confirmam-no o positivismo e o evolucionismo, aquele por meio da ação redentora da ciência, a verdadeira religião da humanidade, e o último pelo infalível benefício da evolução, a largo prazo igualizadora.
"Em última instância os mais fortes e os mais aptos já tinham vencido e continuariam a vencer, merecendo o prêmio final da própria sobrevivência: batatas, pelo menos de modo similar, mas apelando antes para a solidariedade do que para a competição darwiniana entre indivíduos e raças, o positivismo previa o melhoramento coletivo, que o estágio científico da humanidade teria inaugurado depois de superadas as fases teológica e metafísica da história: bem o sabia Quincas Borba, o pensador machadiano do humanitismo" (págs.155-156). Assim, a natureza mesma era depositária de um sentido que continuaria na história. Mas a natureza é um ogre devorador, como nos mostra a cena de "O Delírio" em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", que nos adverte ser a história "eterna loureira".
Não concede a ficção do nosso autor privilégio terapêutico ao tempo. O tempo não cura; em vez de libertar os homens da opressão e da mentira, ele é "cúmplice de atentados"; fazendo "esquecer os bons propósitos", destrói as promessas, o altruísmo e consagra os vencedores.
O olhar machadiano enfrenta o tempo; neutralizando-lhe a ação recuperadora, parece pairar acima dele, com a sobriedade calculada de seu estilo, em oposição ao sobressalto dramático, que sacode "a expressão torturada dos melhores escritores brasileiros seus contemporâneos" (pág.157) -um Raul Pompéia, um Euclides da Cunha, um Cruz e Souza e, depois, um Augusto dos Anjos e um Lima Barreto, confiantes no poder de tiro crítico das "idéias novas" contra a injusta "assimetria" da sociedade brasileira. Desse modo, a pugna das "idéias novas", que foi "a batalha ideológica dos anos 70, não passa pelo centro vivo da ficção machadiana, não é o seu espaço de significações nem a sua referência polêmica. Outra é a direção de seu olhar" (pág. 154).

Realismo deceptivo
Diante das filosofias triunfalistas da época, o realismo de Machado seria também deceptivo, no sentido de que se colocou do lado de fora dos padrões de pensamento vigentes naquele momento. Se, pois, de sua época diverge, se rebate criticamente esses padrões, expondo-os à galhofa, seu olhar realista, que pensa sentindo e sente pensando, tanto mais acurada e penetrantemente devassa o contorno humano de que se aproxima quanto mais pela imaginação dele se afasta, já intelectualmente distanciado das concepções coetâneas, ilusórias como abstrações filosóficas e deformantes da realidade como ideologias. Assim, na dissidência com o pensamento de seu meio e de sua época, o olhar machadiano é um olhar extemporâneo, que se forja uma reflexividade anacrônica, aderindo a matrizes inatuais de sensibilidade e de pensamento, revificadas numa criação ficcional de "horizonte ao mesmo tempo individual e universal". Que matrizes são essas?
A resposta de Bosi, como hipótese plausível, para entender o enigma do olhar machadiano, é que tais matrizes derivariam "das análises psicológicas desenganadas do moralismo seis-setecentista" (pág. 155), incorporado pela vertente cética do Iluminismo, e que pensadores do Oitocentos, como Leopardi, Stendhal e Schopenhauer assimilaram, mas circundadas ainda de mais antigas fontes a que as primeiras remetem, como o "Eclesiastes" e o "Livro de Jó".
Certamente, Pascal como Leopardi, Schopenhauer como Stendhal contribuem para a gênese desse olhar, mas aliados a La Rochefoucauld, La Bruyère, Manuel Bernardes, Matias Aires, Vauvenargues, Helvetius e Adam Smith. O exemplário desses modos de pensamento, em apêndice no final do livro, nos oferece, numa escala nuançada, os tons, entretons e timbres de um pensamento cético ajustado às artimanhas do humor, que teriam convergido no foco do olhar machadiano -não espelho de luz difusa, mas lente analítica do real.



O Enigma do Olhar
Alfredo Bosi Ática (Tel. 0/xx/11/278-9322) 232 págs., R$ 23,90



Benedito Nunes é professor na Universidade Federal do Pará e autor de " Crivo de Papel" (Ática), entre outros.

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