|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Depois do caos
O historiador norte-americano Immanuel Wallerstein afirma que a crise do moderno sistema mundial deverá prolongar-se até 2050
|
JOSÉ LUÍS FIORI
Após o Liberalismo - Em Busca da Reconstrução do Mundo
Immanuel Wallerstein
Tradução: Ricardo Anibal Rosenbusch
Vozes (Tel. 0/xx/24/2233-9000).
272 págs., R$ 29,00
"O Sistema Mundial Moderno está chegando ao fim. Mas serão precisos no mínimo mais 50 anos de crise terminal, ou seja, de "caos", antes que possamos ver surgir uma nova ordem social. Nossa missão atual e nos próximos 50 anos é a missão dos utopistas. Trata-se da tarefa de imaginar e empenhar-se em criar essa nova ordem social".
Wallerstein, "Após o Liberalismo"
Para o historiador e cientista político norte-americano Immanuel Wallerstein,
a queda do Muro de Berlim, em 1989, significou o colapso do liberalismo e o início da fase terminal da hegemonia norte-americana. De seu ponto de vista, a
União Soviética foi, depois da Segunda Guerra Mundial, um agente subimperialista dos EUA, e o leninismo, uma versão radical do liberalismo e de sua crença no
"reformismo racional" do Estado, visto
como instrumento eficaz e indispensável
para realizar a transformação social.
Essas surpreendentes afirmações aparecem nos 16 ensaios escritos por Wallerstein na primeira metade da década
de 90, reunidos no livro "Após o Liberalismo" (1995), recém-traduzido no Brasil.
Mas o que poderia parecer à primeira vista um mero exercício iconoclástico consiste, na verdade, em uma obra que sacode a mesmice e desafia para uma reflexão,
absolutamente indispensável, sobre as
transformações das últimas décadas do
século 20 e os caminhos do futuro.
Aos 71 anos, Wallerstein já publicou
uma extensa obra, em três movimentos.
O primeiro focaliza o problema do desenvolvimento, sobretudo nos novos Estados africanos que nascem na década de
1960. O segundo examina a formação européia -no "longo século 16"- do
"moderno sistema mundial", uma espécie de galáxia em expansão contínua,
composta por uma "economia-mundo
capitalista" e por um "sistema interestatal", sob a batuta sucessiva -nos últimos
500 anos- de três grandes potências hegemônicas: as Províncias Unidas, no século 17; a Grã-Bretanha, no 19, e os EUA,
no 20. Por fim, os ensaios e os livros mais
recentes, da década de 1990, diagnosticam a "crise terminal da hegemonia norte-americana" e discutem a estratégia dos
movimentos sociais anti-sistêmicos.
Crise terminal
"Após o Liberalismo" situa-se exatamente no ponto de passagem do segundo
para o terceiro movimentos. A partir de
sua teoria geral, Wallerstein analisa a
conjuntura internacional e deduz algumas diretrizes estratégicas para a esquerda mundial. Mas, na passagem da teoria
geral para a análise conjuntural, esse novo livro propõe uma hipótese que, se verdadeira, significa o fim do próprio objeto
da teoria. A atual decadência americana,
que teria começado na década de 1970,
não seria apenas um caso clássico de crise
e transição hegemônica, procedimento
normal dentro do "sistema mundial"
nascido no século 16.
Tratar-se-ia de uma crise terminal do
próprio "modern world system", que deverá se prolongar até 2050. Daí a previsão
de que depois do "caos", após 2050, não
nascerá um novo "hegemon", mas sim
um novo "sistema mundial".
O que estaria em curso no momento seria, portanto, uma espécie de mudança
de galáxia ou de universo. Segundo Wallerstein, a hegemonia americana seguiu
o curso normal e reproduziu o mesmo ciclo vital de suas antecessoras. Mas, nessa
última fase, seu declínio se somou aos
efeitos da Revolução de 1968, que espalhou pelo mundo a descrença na capacidade reformadora do Estado, idéia central da ideologia "wilsoniano-leninista"
(espécie de pensamento único do século
20), partidária do "welfare state" e do desenvolvimentismo. Assim, a derrota comunista de 1989 significou também a
derrota desta crença "wilsoniana-leninista", o que teria deixado atrás de si um
grande vazio utópico, ocupado, depois de
1968, pelo "neoconservadorismo" e pela
"nova esquerda" dos movimentos sociais
e das lutas anti-sistêmicas; ambos avessos
a tudo que tenha a ver com Estado, políticas públicas e desenvolvimentismo.
Declínio dos EUA?
O argumento de Wallerstein combina
idéias provocadoras e uma boa causa
com vários conceitos imprecisos e muito
poucas evidências concretas. Comecemos pelo velho debate sobre "a crise da
hegemonia americana", no qual Wallerstein se destaca pela insistência na tese do
declínio do poder global dos EUA, sobretudo depois do término da Guerra Fria.
Ele resiste em aceitar -hoje quase um
consenso- que, a partir da década de
1980, os EUA teriam recuperado a vanguarda tecnológica em quase todos os setores decisivos da economia, e não apenas no campo estratégico-militar, impondo, ao mesmo tempo, o dólar como a
moeda de um novo sistema monetário
internacional, sem base no ouro ou em
outro padrão de referência que o próprio
poder americano. Na direção contrária,
as evidências que apresenta, favoráveis à
tese do declínio, são dispersas, heterogêneas e extremamente impressionistas,
abordando aspectos da demografia, da
ecologia, da cultura etc.
Muito mais difícil ainda de aceitar é a
sua previsão de que o próprio sistema
econômico capitalista será destruído por
uma crise de "profit squeeze", de escala
planetária, num momento em que se reduz "urbe et orbi" o "trabalho necessário", aumenta a exclusão dos trabalhadores e cai a participação dos salários na
renda nacional em quase todos os países
do mundo.
Por outro lado, a idéia de uma geocultura responsável pela legitimação do "sistema moderno" é extremamente interessante. Mas fica difícil aceitar que a luta
entre socialistas, conservadores e liberais
tenha sido apenas "uma pseudobatalha
da modernidade", simplesmente porque
todas essas três grandes ideologias teriam
defendido, em algum momento, a necessidade de fortalecimento do Estado ou
acreditaram na capacidade reformadora
ou desenvolvimentista das políticas públicas. Afinal, o verdadeiro debate nunca
foi a favor ou contra o desenvolvimento,
e, sim, sobre o "como" e "para quem" desenvolver a riqueza das nações. Além disso, o livro não esclarece suficientemente
como se originam, se identificam e se distinguem as crises de hegemonia dos demais momentos de tensão e retrocesso
dentro do sistema mundial. Ou mesmo, o
ponto principal, como seria possível distinguir uma "crise de hegemonia" de
uma "crise terminal" do próprio sistema,
como a que estaríamos vivendo.
Essas questões foram obscurecidas
principalmente pela imprecisão dos conceitos de "hegemonia internacional" e
"transição hegemônica". Trata-se de dois
conceitos que ajudam a compreender a
estabilização relativa e o funcionamento
do sistema, mas que não conseguem dar
conta de suas contradições e do desenvolvimento tendencial de seus conflitos,
que existem e se mantêm ativos, mesmo
nos momentos de maior legitimidade e
paz hegemônica. Talvez por isso a visão
de Wallerstein pareça sempre dividida
em grandes panoramas históricos, nos
quais quase não há lugar para mudanças
e análises de conjunturas e em que tudo
está sempre em crise terminal. Noutros
tempos, dir-se-ia que Wallerstein carece
de uma visão mais dialética do desenvolvimento histórico do capitalismo...
A nova esquerda
Os problemas enfrentados no livro, entretanto, transcendem o debate puramente teórico, sobretudo por causa da
dimensão "militante" de "Após o Liberalismo". Cada ponto discutido afeta diretamente as conclusões normativas e as
diretrizes políticas, propostas por Wallerstein, para o que chama de "nova esquerda" mundial. Em síntese: sugere o
rompimento definitivo com a estratégia
dos partidos políticos da "velha esquerda", de luta pela transformação social,
por meio da conquista do poder estatal;
propõe, no limite, que se abdique da própria formação de partidos e da definição
de prioridades estratégicas; estimula a
descentralização sob a forma de uma
multiplicidade de movimentos e grupos
sociais de todo tipo, avançando em todas
as frentes simultaneamente e lutando pela democratização radical das relações
sociais e pela igualdade de direitos entre
todos os indivíduos e grupos; e sobretudo
propõe uma recusa intransigente às tentativas de administrar o sistema em qualquer dos seus níveis.
Segundo ele, essa "nova esquerda" não
deve temer o colapso político e econômico do sistema; atribuindo toda a responsabilidade de gestão a seus beneficiários,
deve se concentrar na criação de uma nova ligação social entre os níveis de luta local e mundial, desconsiderando o nível
intermediário dos Estados nacionais.
Não fica claro, na estratégia defendida
por Wallerstein, o que fazer, durante os
próximos 50 anos de transição, com as
necessidades materiais dos "condenados
da terra" que forem incapazes de se globalizar, permanecendo "reclusos" dentro
dos atuais Estados nacionais. Sobretudo
quando se tem em conta que, apesar da
tendência polarizante do desenvolvimento mundial do capitalismo, houve
casos de desenvolvimento nacional bem-sucedidos depois da Segunda Guerra
Mundial.
Esse é um ponto delicado da discussão.
Mas parece fundamental distinguir entre
a tese da natureza seletiva dos desenvolvimentos nacionais e a tese da inexistência ou impossibilidade do próprio desenvolvimento capitalista fora do núcleo
central do sistema. Da mesma forma,
convém separar o que foi a insatisfação
dos revolucionários de 1968 de uma avaliação realista do papel do "welfare state",
na construção dos sistemas de proteção
social universal dos países desenvolvidos.
Até prova em contrário, a globalização
atual não alterou algumas das condições
e contradições básicas do capitalismo.
Em particular, não alterou o fato de que a
luta dos trabalhadores, dos pobres e dos
excluídos ocorre dentro das fronteiras
dos Estados nacionais, em que se geram e
se acumulam os recursos capazes de alterar a distribuição da renda e da riqueza e em que se organizam o poder e o direito,
que podem e devem ser democratizados.
Por último, fica difícil imaginar como
se pode constituir um novo sistema mundial pós-moderno e pós-capitalista, partindo apenas de infinitas ações locais e
protestos globais, sem nenhum tipo de
intermediação estatal, mesmo quando se
sabe que se trata de uma luta dentro de
um sistema controlado pelas "grandes
potências". Talvez por isso Wallerstein
volte sempre ao tema da longa caminhada, uma espécie de peregrinação dos "novos utopistas". Mas, se for por esse caminho, é bom que os peregrinos se preparem e se abasteçam bem, porque dificilmente chegarão à sua Compostelas em
menos de dois ou três séculos.
José Luís Fiori é professor de economia política internacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de, entre outros, de "60 Lições dos 90" (ed. Record).
Texto Anterior: O jovem Florestan Próximo Texto: Histórias Índice
|