São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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O jovem Florestan

ELIDE RUGAI BASTOS

Destino Ímpar - Sobre a Formação de Florestan Fernandes
Sylvia Gemignani Garcia
Ed. 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
192 págs., R$ 22,00

O tema da formação, recorrente no pensamento social, foi desenvolvido no século 18 por autores hoje clássicos: Voltaire, Diderot, Swift, Goethe. Ligado às noções de experiência e vivência, nessa tradição definitivas para a autoconstrução do indivíduo, está referido, particularmente, a situações novas. Não é por acaso que a idéia de viagem articula, naqueles textos, a narrativa. Neles, a necessidade de preparo para os desafios da modernidade justifica e confere o fio condutor que liga as várias situações. Nessa construção, o contraponto entre as idéias anteriores que explicavam o mundo e os dados da realidade aciona o pensamento e serve de base para a formulação de novas interpretações.
"Destino Ímpar" retoma essa temática, mostrando sua atualidade. Dedicado ao período de formação de Florestan Fernandes, segue uma tradição de análise sociológica que busca não separar biografia e vida intelectual, referido-as ainda ao quadro histórico do período. Aponta a particularidade da formação desse intelectual, a qual não se define apenas pela "formação acadêmica", mas é fundamentalmente devedora da "formação humana". Reconstitui seu percurso desde os anos 20 -menino pobre vivendo os desafios de uma São Paulo marcada pelas mudanças resultantes de um forte crescimento- até o início da década de 50, quando defende sua tese de livre-docência.
Nesse processo, o livro coloca em foco não apenas o itinerário do biografado, mas o ambiente cultural paulista, o clima da Faculdade de Filosofia e da Escola Livre de Sociologia e Política, as relações sociais, as tensões que atravessam a sociedade, as possibilidades efetivas de mobilidade social, a proximidade com outros intelectuais, os desafios da sobrevivência em um cenário altamente competitivo.
É interessante lembrar que no ambiente novo, marcado pela transição à industrialização, a mobilidade social é um fator determinante. Tampouco a cultura pôde reproduzir-se segundo os padrões até então conhecidos. Nesse quadro deve ser entendido o movimento cultural de São Paulo em suas várias faces e em especial o papel exercido pela universidade, bem como a visão de Florestan sobre o trabalho sociológico.
O então recente curso de ciências sociais, fundado em 1934, traz professores estrangeiros que apontam o caráter impressionista do pensamento social brasileiro, ressaltando a necessidade de um diagnóstico sobre o país elaborado segundo "competências específicas". O sociólogo, embora sofrendo as desvantagens de uma formação descontínua, ao ingressar na faculdade atinge o objetivo mediante árdua tarefa. Incorpora, seguindo aquele modelo, uma concepção rigorosa de trabalho intelectual.
Ancorada principalmente nos depoimentos do autor, Sylvia Garcia aponta duas interpretações que aparentemente entram em conflito: uma leitura "realista" e outra "idealista" dos cursos dos quais participava. Uma, crítica, salienta sua inadequação a uma realidade diferente da européia; outra, reconhece a importância tanto do suporte teórico-metodológico fornecido quanto dos temas desenvolvidos. Mostra, com muito acerto, a complementaridade das duas versões, que podem ser vistas como "dimensões do mesmo fenômeno". Pode-se acrescentar que é exatamente a combinação e a contraposição entre "formação acadêmica" e "formação humana" que levam a essa possibilidade.
Diferentemente dos modelos europeus clássicos, no Brasil o alvo prioritário da formação não é apenas o indivíduo, mas também a nação, e o motivo dessa duplicidade reside na "incompletude da revolução burguesa", para usar expressão de Florestan. Assim, a ampliação da temática desenvolvida demandaria pensar não somente as transformações de São Paulo, mas ter como referência a questão nacional. Essa aproximação permitiria refletir mais amplamente a respeito do papel do intelectual formulado pelo próprio Florestan. O encaminhamento da questão nacional é definidor dos temas que o preocupam e que se tornam centrais em suas formulações.
Se é válida essa ótica, cabe observar mais uma faceta na afirmação feita por Florestan, em palestra no Ibesp em 1954, sobre a crise da democracia no país, na qual contesta o próprio tema do encontro, questionando a possibilidade de falar em crise da democracia numa sociedade que não se constitui como democrática. Sylvia aponta aqui a raiz do debate entre o sociólogo paulista e Guerreiro Ramos. Creio ainda que aí se pode encontrar o eixo de suas preocupações: mostrar como tarefa da sociologia brasileira a reflexão sobre os limites colocados pela estruturação da sociedade à realização do projeto democrático. Essa sociedade em que elementos arcaicos e modernos aparecem combinados, marcada pela pobreza e pela disparidade social, reitera -pelo seu próprio funcionamento- a exclusão social. Todos os temas que permitem a Florestan conhecer a realidade brasileira em suas múltiplas perspectivas -estrutura econômica, construção e transformação do Estado, estrutura social, produção cultural- encontram-se diretamente vinculados à questão democrática.
Nessa direção pode-se entender a crítica de Florestan ao curso organizado pelos mestres franceses na USP e a proposta de refundá-lo em outras bases. O ponto central é o questionamento do modo como se processa a formação, pois, diferentemente dos países centrais, no Brasil a educação não pode estar voltada somente para o conhecimento da modernidade. A realização desta supõe não só o conhecimento dos elementos tradicionais presentes na sociedade brasileira, mas a compreensão do imbricamento dos dois pólos na constituição das relações sociais, na configuração da própria realidade. É nesse sentido que o sociólogo paulista se propõe a trabalhar em conjunto as diferentes teorias para chegar a uma síntese e a enfocar um método capaz de formar pesquisadores.
Ao retraçar o caminho trilhado por Florestan Fernandes para formar-se como sociólogo no quadro das transformações que ocorriam em São Paulo, "Destino Ímpar" traz elementos para conhecermos a trajetória de um dos importantes intérpretes do país e para compreendermos a constituição de um espaço de reflexão sobre os destinos nacionais.
Como nos modelos clássicos citados, trata-se de uma viagem. Mas, enquanto naqueles o resultado é uma reconciliação com a realidade, nesta instaura-se um desconforto diante da sociedade que nos obriga a pensar. Não sei se deliberadamente ou por um feliz acaso, a imagem da capa mostra Florestan viajando, não para a Europa ou para os EUA, mas para um país da América Latina, metáfora que pode significar a necessidade da sociologia brasileira assumir como tarefa pensar sobre a situação singular dos países que compõem o continente.


Elide Rugai Bastos é professora de sociologia da Universidade Estadual de Campinas.


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