São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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À maneira dos reis

A descrição de um funeral em Salvador

RODRIGO BENTES MONTEIRO

As Excelências do Governador - O Panegírico Fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676)
Stuart B. Schwartz e Alcir Pécora (orgs.)
Cia das Letras (Tel.0/xx/11/3167-0801)
560 págs., R$ 43,50

A publicação em português de "O Panegírico Fúnebre a D. Afonso Furtado", com estudos de Stuart Schwartz e Alcir Pécora, transcrição paleográfica do manuscrito, vários apêndices e ilustrações, atende de modo bastante completo aos interessados no assunto: situa historicamente o texto, esclarece seu gênero literário, alerta para o cuidado no trato com outra retórica, além de anexar informações procedentes. Tudo para que o universo mental, político e literário da Bahia, da América portuguesa, de Portugal e do mundo ibérico na segunda metade do século 17 não escape ao estudioso.
A raridade do documento justifica o empenho. Em 1968, o original em espanhol foi adquirido por recomendação de Schwartz, historiador norte-americano pela Universidade de Minnesota, sendo vertido para o inglês e publicado em 1979. A única cópia manuscrita conhecida está na Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda, em Belém, Portugal. Mas esta fonte primária também é rica por suas qualidades. De acordo com Schwartz, o interesse de historiadores pelo estudo da cultura política no Antigo Regime luso-brasileiro fez com que as informações contidas no panegírico fossem valorizadas recentemente.
Trata-se de um discurso laudatório da vida e da morte do governador-geral do Brasil entre 1671 e 1675, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, elaborado por ocasião de seu funeral em Salvador, em 1676. O autor, Juan Lopes Sierra, era provavelmente um espanhol radicado na América portuguesa. Percebe-se, no relato, o envolvimento da principal personagem em ações da colonização lusa na América ao final do Seiscentos: a guerra com os índios bravos no interior da Bahia (com a participação dos sertanistas de São Paulo) e a busca de metais preciosos, em meio ao declínio dos lucros advindos da produção açucareira. Tais fatos são situados por Schwartz no contexto amplo do império português. A narrativa do século 17 também fornece detalhes acerca da vida religiosa na capital, além da descrição das cerimônias de enterro do governador, tema relacionado à historiografia pertinente.
Mas não somente. O estudo de Alcir Pécora enriquece várias informações já mencionadas por Schwartz. O panegírico, como discurso de origem grega voltado para todos, mormente (desde o tempo de Roma) sobre os feitos dos grandes, assumia no mundo ibérico moderno a forma de literatura que exaltava as virtudes ao recuperar um tempo passado. Desse modo, as figuras do autor Juan Lopes Sierra, do protagonista Afonso Furtado e de seu sobrinho Antônio de Sousa e Menezes (o mecenas) adquirem mais sentido, no âmbito da sociedade de corte portuguesa, com seus desdobramentos no ultramar americano.

Lutas intestinas
A simples suspeita -mesmo que infundada- de que Juan Lopes Sierra teria escrito também a "Anti-Catástrofe" remete o autor, protagonista e mecenas ao seu universo mental e político. A obra em questão era partidária de d. Afonso 6º (1656-1683), narrando as intrigas palacianas com a facção do infante d. Pedro, lutas intestinas que resultaram na deposição do rei em 1666 (tendo o trono usurpado pelo irmão), na anulação de seu casamento com a rainha (que casou em seguida com d. Pedro) e em sua prisão até a morte, quando o príncipe regente tornava-se enfim d. Pedro 2º (1683-1706).
Um mundo político tumultuado, que revelava a fragilidade da dinastia régia brigantina em seus primeiros tempos, em meio à guerra e ao reconhecimento da independência portuguesa pela Espanha em 1668. Essa instabilidade no núcleo de poder expressava-se também em suas "cadeias de fidelidade" -lembrando Roland Mousnier- ou "redes clientelares"- no dizer de António Hespanha, no reino e no ultramar americano. Sierra, no panegírico, menciona seus contatos com personalidades ilustres, até mesmo com d. João 6º. Era alguém em busca de prestígio, embora se autodenominasse o "Rústico", por sinceridade ou estratégia retórica, aspectos não-excludentes entre si.
Prestígio que podia ser fortalecido mediante sua obra. A idéia do panegírico fúnebre surgiu em uma audiência com Antônio de Sousa e Menezes, o sobrinho do governador que vivia na corte lusa. D. Afonso Furtado descendia da nova nobreza portuguesa criada no tempo de d. Sebastião e desempenhou papéis significativos na guerra da Restauração. Em 1671, tornou-se governador-geral do Brasil. Sierra defende no manuscrito a administração desse governador, destacando sua liderança na campanha militar contra os índios e na busca das minas. Também evidencia conflitos com o governo mais autônomo de Pernambuco e com a cobrança do "donativo para o casamento da Rainha da Grã-Bretanha e para a paz com a Holanda", que coincidia com a desvalorização da moeda portuguesa, com problemas para as câmaras municipais. Mas, sobretudo, o manuscrito enfatiza a lealdade do governador ao soberano -"Sua Alteza"-, o príncipe d. Pedro.
Alcir Pécora observa as virtudes (justiça, prudência, temperança, fortaleza, fé, esperança e caridade) atribuídas ao governador, à maneira dos espelhos de príncipes, gênero literário comum aos tempos modernos, como obras oferecidas aos monarcas para que divisassem seus "reflexos". Ao exaltar as qualidades do governador-geral falecido, autor e patrono da obra também se promoviam, gravitando em torno do príncipe regente.
Mas tudo culmina na morte do herói e em seu funeral, temas que ocupam metade do manuscrito. A descrição do aparato fúnebre é minuciosa, expressando um ritual que visava a sua apreensão por todos. A ênfase no enterro solene do governador permite outra inflexão, além da que associa o evento à estética barroca apegada aos ritos fúnebres. O panegírico exalta as virtudes do governador à maneira dos reis; também seu funeral é descrito como régio, lembrando os estudos sobre "os dois corpos do rei", de Ernst Kantorowicz e Ralph Giesey.
No entanto vale lembrar que o evento e seu relato não correspondem diretamente à idéia de um consenso estabelecido na sociedade, como bem mostrou Alain Boureau. Os rituais elaborados também se relacionavam a momentos críticos, podendo ajudar a atenuar conflitos, reabilitar e promover personagens. Dessa forma, pela atuação de seus parceiros interessados, o governador-geral tinha sua memória construída além da morte. Como os soberanos de Portugal.


Rodrigo Bentes Monteiro é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense e autor de "O Rei no Espelho - A Monarquia Portuguesa e a Colonização da América 1640-1720"(Hucitec).


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