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À maneira dos reis
A descrição de um funeral em Salvador
RODRIGO BENTES MONTEIRO
As Excelências do Governador -
O Panegírico Fúnebre a D. Afonso
Furtado, de Juan Lopes Sierra
(Bahia, 1676)
Stuart B. Schwartz e Alcir Pécora (orgs.)
Cia das Letras (Tel.0/xx/11/3167-0801)
560 págs., R$ 43,50
A publicação em português de "O Panegírico Fúnebre a D. Afonso Furtado", com estudos de Stuart Schwartz e Alcir Pécora, transcrição paleográfica do
manuscrito, vários apêndices e ilustrações, atende de
modo bastante completo aos interessados no assunto: situa historicamente o texto, esclarece seu gênero
literário, alerta para o cuidado no trato com outra retórica, além de anexar informações procedentes. Tudo para que o universo mental, político e literário da
Bahia, da América portuguesa, de Portugal e do
mundo ibérico na segunda metade do século 17 não
escape ao estudioso.
A raridade do documento justifica o empenho. Em
1968, o original em espanhol foi adquirido por recomendação de Schwartz, historiador norte-americano pela Universidade de Minnesota, sendo vertido
para o inglês e publicado em 1979. A única cópia manuscrita conhecida está na Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda, em Belém, Portugal. Mas esta fonte
primária também é rica por suas qualidades. De
acordo com Schwartz, o interesse de historiadores
pelo estudo da cultura política no Antigo Regime luso-brasileiro fez com que as informações contidas
no panegírico fossem valorizadas recentemente.
Trata-se de um discurso laudatório da vida e da
morte do governador-geral do Brasil entre 1671 e
1675, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, elaborado por ocasião de seu funeral em Salvador, em 1676. O autor, Juan Lopes Sierra, era provavelmente um espanhol radicado na América portuguesa. Percebe-se, no relato, o envolvimento da
principal personagem em ações da colonização lusa
na América ao final do Seiscentos: a guerra com os
índios bravos no interior da Bahia (com a participação dos sertanistas de São Paulo) e a busca de metais
preciosos, em meio ao declínio dos lucros advindos
da produção açucareira. Tais fatos são situados por
Schwartz no contexto amplo do império português.
A narrativa do século 17 também fornece detalhes
acerca da vida religiosa na capital, além da descrição
das cerimônias de enterro do governador, tema relacionado à historiografia pertinente.
Mas não somente. O estudo de Alcir Pécora enriquece várias informações já mencionadas por
Schwartz. O panegírico, como discurso de origem
grega voltado para todos, mormente (desde o tempo
de Roma) sobre os feitos dos grandes, assumia no
mundo ibérico moderno a forma de literatura que
exaltava as virtudes ao recuperar um tempo passado. Desse modo, as figuras do autor Juan Lopes Sierra, do protagonista Afonso Furtado e de seu sobrinho Antônio de Sousa e Menezes (o mecenas) adquirem mais sentido, no âmbito da sociedade de corte portuguesa, com seus desdobramentos no ultramar americano.
Lutas intestinas
A simples suspeita -mesmo que infundada- de
que Juan Lopes Sierra teria escrito também a "Anti-Catástrofe" remete o autor, protagonista e mecenas
ao seu universo mental e político. A obra em questão
era partidária de d. Afonso 6º (1656-1683), narrando
as intrigas palacianas com a facção do infante d. Pedro, lutas intestinas que resultaram na deposição do
rei em 1666 (tendo o trono usurpado pelo irmão), na
anulação de seu casamento com a rainha (que casou
em seguida com d. Pedro) e em sua prisão até a morte, quando o príncipe regente tornava-se enfim d.
Pedro 2º (1683-1706).
Um mundo político tumultuado, que revelava a
fragilidade da dinastia régia brigantina em seus primeiros tempos, em meio à guerra e ao reconhecimento da independência portuguesa pela Espanha
em 1668. Essa instabilidade no núcleo de poder expressava-se também em suas "cadeias de fidelidade"
-lembrando Roland Mousnier- ou "redes clientelares"- no dizer de António Hespanha, no reino e
no ultramar americano. Sierra, no panegírico, menciona seus contatos com personalidades ilustres, até
mesmo com d. João 6º. Era alguém em busca de
prestígio, embora se autodenominasse o "Rústico",
por sinceridade ou estratégia retórica, aspectos não-excludentes entre si.
Prestígio que podia ser fortalecido mediante sua
obra. A idéia do panegírico fúnebre surgiu em uma
audiência com Antônio de Sousa e Menezes, o sobrinho do governador que vivia na corte lusa. D. Afonso Furtado descendia da nova nobreza portuguesa
criada no tempo de d. Sebastião e desempenhou papéis significativos na guerra da Restauração. Em
1671, tornou-se governador-geral do Brasil. Sierra
defende no manuscrito a administração desse governador, destacando sua liderança na campanha militar contra os índios e na busca das minas. Também
evidencia conflitos com o governo mais autônomo
de Pernambuco e com a cobrança do "donativo para
o casamento da Rainha da Grã-Bretanha e para a paz
com a Holanda", que coincidia com a desvalorização
da moeda portuguesa, com problemas para as câmaras municipais. Mas, sobretudo, o manuscrito enfatiza a lealdade do governador ao soberano -"Sua
Alteza"-, o príncipe d. Pedro.
Alcir Pécora observa as virtudes (justiça, prudência, temperança, fortaleza, fé, esperança e caridade)
atribuídas ao governador, à maneira dos espelhos de
príncipes, gênero literário comum aos tempos modernos, como obras oferecidas aos monarcas para
que divisassem seus "reflexos". Ao exaltar as qualidades do governador-geral falecido, autor e patrono
da obra também se promoviam, gravitando em torno do príncipe regente.
Mas tudo culmina na morte do herói e em seu funeral, temas que ocupam metade do manuscrito. A
descrição do aparato fúnebre é minuciosa, expressando um ritual que visava a sua apreensão por todos. A ênfase no enterro solene do governador permite outra inflexão, além da que associa o evento à
estética barroca apegada aos ritos fúnebres. O panegírico exalta as virtudes do governador à maneira
dos reis; também seu funeral é descrito como régio,
lembrando os estudos sobre "os dois corpos do rei",
de Ernst Kantorowicz e Ralph Giesey.
No entanto vale lembrar que o evento e seu relato
não correspondem diretamente à idéia de um consenso estabelecido na sociedade, como bem mostrou Alain Boureau. Os rituais elaborados também
se relacionavam a momentos críticos, podendo ajudar a atenuar conflitos, reabilitar e promover personagens. Dessa forma, pela atuação de seus parceiros
interessados, o governador-geral tinha sua memória construída além da morte. Como os soberanos de Portugal.
Rodrigo Bentes Monteiro é professor de história moderna na
Universidade Federal Fluminense e autor de "O Rei no Espelho - A
Monarquia Portuguesa e a Colonização da América 1640-1720"(Hucitec).
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