São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002 |
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Contos novos
Deixe o Quarto como Está ou Estudos
para a Composição do Cansaço
Contrariando a tradição realista que acompanha desde sempre nossa prosa ficcional, jovens autores têm enveredado pela
narrativa fantástica, com ótimos resultados. É o caso de Amilcar
Bettega Barbosa, que neste seu segundo livro se firma como um
dos melhores contistas brasileiros surgidos na década passada.
A maior parte dos contos de "Deixe o Quarto como Está" é pautada pelo insólito. A escrita elegante e o diálogo entre poesia e
prosa fazem lembrar Murilo Rubião, outro que fez da espera e
do cansaço matéria-prima da ficção. Amilcar, na verdade, reescreve o fantástico, criando uma escrita própria, mesclada de lirismo e certa melancolia, aliada a um humor cáustico que percorre cada página. São contos maduros, demonstrando um
controle do jogo ficcional que se revela já nas duas primeiras
histórias, "Auto-Retrato" e "Exílio". Os contos são compostos
na clave da ambiguidade, deixando o leitor sempre a meio caminho entre a realidade e o sonho, e apostam sobretudo nos detalhes, nas miudezas do dia-a-dia, sob as quais se escondem mundos inimagináveis.
No seu livro de estréia, Lúcia Leão apresenta contos curtos,
marcados sobretudo pelo acaso. Vivendo experiências sutis e,
no mais das vezes, solitárias, os personagens vão descobrindo a
inutilidade de qualquer planejamento diante do poder inexorável do inesperado. Com traço firme e delicado, a autora vai delineando perfis, cenários, situações que, sob uma aparente fragilidade, revelam dores e alegrias de criaturas comuns. Os personagens parecem estar sempre ensaiando, buscando uma atuação
plausível que os ajude a compreender melhor o papel que desempenham numa história ainda em processo. É justamente esse inacabamento que lhes confere uma inusitada beleza e os alça à condição de pequenos heróis de uma epopéia do cotidiano. O livro alude também a um outro ensaio, o da própria escrita ficcional, à medida que as narrativas se apresentam como se fossem quase rascunhos, ensaios de contos. Tal incompletude funciona como provocação -ou convite- ao leitor, chamado a contracenar com o texto. Também aqui o fantástico comparece, pelo menos em parte das histórias, embora o tom do livro seja
mesmo a temática amorosa, que a autora trabalha de modo seguro, sem esbarrar na pieguice.
Em meados dos anos 90, Ana Teresa Jardim lançou seu primeiro livro, "A Cidade em Fuga", reunindo quatro histórias
longas que anunciavam uma contista inteligente e bem-humorada, traços que permanecem na obra seguinte, a novela policial
"No Fio da Noite". Agora a autora retoma o conto, desta vez optando pela narrativa breve, e adiciona às suas histórias doses de
lirismo e dramaticidade que as tornam mais densas, se comparadas às anteriores. Embora alguns dos contos sejam narrados
por uma voz masculina, o livro como um todo pode ser entendido como um retrato multifacetado do universo feminino. São,
na maioria, histórias de mulheres, contadas quase em surdina,
revelando nuanças que talvez passassem despercebidas a um
olhar menos sensível. A mesa branca traz narrativas de aprendizagem -do amor, da amizade, do tempo. O leitor acostumado
a enredos tradicionais há de estranhar essas breves narrativas
que giram em torno de quase nada, transitando entre conto e
crônica, ou podendo ser definidas simplesmente como impressões. Impressões que escondem pequenos ritos de passagem, passeios pela memória, desencontros, súbitas descobertas.
Um dos aspectos interessantes da nova ficção brasileira tem
sido a opção não mais pelo cenário caótico das grandes cidades,
mas pela vida pacata, ou nem tanto, das cidadezinhas, povoados, fazendas. "Duas Tardes" reforça essa vertente. As exceções
são os contos "Manobras" e "No Morro". E mesmo "Preto-e-Branco", embora se passe em São Paulo, traz de volta uma época em que a cidade tinha ares e hábitos de província. Talvez essa
escolha contribua para o clima de quietude que paira sobre os
contos. Ou, pelo menos, de quietude aparente, já que o livro se
move em terras fronteiriças, encenando sobretudo o cotidiano
das relações familiares. Se a história que dá título à coletânea elabora um engenhoso diálogo entre passado e presente -uma
tarde retrata a infância dos dois irmãos, outra o reencontro entre eles, décadas depois-, é verdade que também se pode perceber, nesse e nos demais contos, outras duplicidades. Por exemplo, a que se constrói entre palavra e silêncio. Os personagens quase não falam, mas o silêncio serve de contraponto a toda uma linguagem do corpo, e o que não é dito em palavras se expressa por gestos, olhares, pequenos toques. O resultado é um sofisticado jogo entre "leitores", no encontro, ou confronto, de todo dia. é escritor, professor de literatura brasileira da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de "O Campeonato" (Objetiva). Texto Anterior: À maneira dos reis Próximo Texto: Crítica de sete faces Índice |
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