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Contradança filosófica
A tradução francesa de um livro de Bento Prado Jr.
PETER PÁL PELBART
Présence et Champ
Transcendental: Conscience
et Négativité dans la
Philosophie de Bergson
Bento Prado Jr.
Apresentação e tradução do português
de Renaud Barbaras
Ed. Georg Olms Verlag
181 págs., 44 euros
Quase 40 anos separam a recente edição em francês de "Presença e Campo
Transcendental - Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson", de Bento
Prado Jr., de sua elaboração original. Eis
um livro que chega aos poucos, discretamente, como se precisasse da prova do
tempo para justificar sua pertinência e
medir o seu alcance.
Escrito quando o autor tinha 26 anos de
idade, em menos de três meses, logo após
o golpe de 1964, dormitou na gaveta até
sua publicação pela Edusp, em 1989. Agora, e em boa hora, por fim esta pequena
preciosidade chega também ao público
europeu, com esmerada tradução de Renaud Barbaras, a quem devemos a louvável iniciativa.
É preciso que se diga, antes de tudo, que
este livro parece ter encontrado no texto
em francês sua versão original. A elegância e concisão já notáveis na língua portuguesa ganharam realce na tradução, com
a vantagem de que os poucos galicismos e
muitas citações "retornaram à fonte"...
Mérito do tradutor, sem dúvida, mas
também característica do original, que,
segundo confessa o autor, teria sido, por
assim dizer, "pensado" em francês.
Não é de admirar que um estudo sobre
Bergson, inspirado numa linhagem de
intérpretes que vai de Guéroult a
Goldschmidt, mas sobretudo confrontando o bergsonismo com Sartre, necessariamente seja um (re)corte na filosofia
francesa. Se obedece a todos os rigores da
historiografia dita "estrutural", que se
propõe a ler um autor de maneira imanente, evitando lançar sobre ele qualquer
juízo de valor extrínseco, Bento Prado
não faz mero trabalho de historiador da
filosofia, o que já não seria pouco. Fiel a
um princípio que postula uma porosidade entre a filosofia e sua história, o autor consegue abrir Bergson às filosofias concorrentes, à tradição da qual se afasta e sobretudo à posteridade que o ecoa, quer
ela o queira ou não.
Malícia filosófica
Com isso, as cartas do pensamento são
marotamente embaralhadas, e os problemas, reinventados. Encontramos coincidências inesperadas de Bergson com
Kant (sobre as ilusões da inteligência,
"constelação de miragens" que faz sistema), afinidades e divergências com Husserl ou Merleau-Ponty ali onde menos as
esperávamos, cruzamentos com Nietzsche, distâncias com Hegel etc. É a malícia
filosófica do autor: reencontrar um solo
comum onde outros viam continentes
distintos, detectar bifurcações onde uma
terminologia comum nos confundiria.
Não sem humor, ele apaga e redesenha
fronteiras, fiel às tensões e originalidades
de cada "démarche".
Nesse sentido, a conversa mais curiosa
que atravessa o livro é com Sartre. Já os
termos utilizados nesse estudo, quase ausentes em Bergson, deixam poucas dúvidas quanto às inclinações do autor: em-si
e para-si, autenticidade e inautenticidade, negatividade, práxis, campo transcendental... Contudo, se essa terminologia serve para facilitar o diálogo com o
existencialismo e, por tabela, com a fenomenologia como um todo, em momento
nenhum o pensamento bergsoniano parece subjugado à crítica proveniente desse campo. Exercício admirável de Bento
Prado, o de pensar "contra si mesmo", isto é, contra o fascínio que Sartre exercia
sobre sua geração. De maneira soberana,
e seguindo os meandros da crítica de
Bergson ao conjunto da tradição filosófica, a começar pela prevalência da idéia de
Nada e suas implicações, Bento Prado reconstitui a gênese da subjetividade e da
ontologia em sua obra.
Ao descobrir no bergsonismo um arco
tenso que vai do pré-humano ao sobre-humano, sua interpretação revela a lógica
desta curvatura, desde o "campo transcendental" até uma "ontologia da presença", deslocando inteiramente o lugar
da consciência finita, ou da subjetividade,
para situá-la "no meio": nem ponto de
partida nem de chegada. Para ir rápido,
diríamos que, ao desbancar um antropologismo filosófico, as condições mesmas
de um certo "humanismo" são juguladas,
com consequências de peso para a filosofia francesa subsequente -arrastando
consigo o próprio Sartre, diga-se de passagem.
Com sua obra, Bento Prado livra o
bergsonismo da imagem empoeirada
que o pensamento, em suas variantes diversas -fenomenológica, marxista ou
estrutural-, foi sedimentando a seu respeito. Já não podemos pensar nessa filosofia como um espiritualismo insípido,
um psicologismo ou mesmo um vitalismo, muito menos biologizante.
É provável que o ostracismo a que foi
relegada a filosofia de Bergson, na esteira
dessa imagem injusta, esteja chegando ao
fim, juntamente com o refluxo das correntes que ajudaram a fabricá-la -e a
publicação do livro do autor na França
talvez seja um indício suplementar disso,
entre muitos outros. Nesse contexto,
mais do que refazer um comentário do livro ou celebrar a ocasião, melhor seria indicar uma curiosidade no âmbito de sua
"recepção" francesa.
Refiro-me à relação ziguezagueante de
Bento Prado com Gilles Deleuze. Fosse-me permitido retribuir-lhes com um
pouco do humor que nunca lhes faltou,
eu daria a isso o nome de uma... contradança filosófica. Eu me explico.
Pouco depois da conclusão de "Presença e Campo Transcendental", saía na
França, em 1966, o pequeno livro de Deleuze intitulado "Le Bergsonisme". Muito
diferente no estilo, nos propósitos, na estrutura e no método, o estudo de Deleuze
articulava o tema da duração, da memória e do impulso vital recorrendo a um fio
condutor inesperado: o da diferença (e da
multiplicidade). Bento Prado teve acesso
ao miolo desse argumento num artigo
publicado por Deleuze anos antes. Talvez
essa leitura, somada à de "Nietzsche e a
Filosofia", tenha ajudado a reforçar, em
seu estudo, o caráter não-dialético da ontologia de Bergson e o caráter afirmativo
do impulso vital.
Chegamos assim ao que nos interessa.
Se é certo que Bento Prado leu Deleuze e
dele tirou proveito, a recíproca não é verdadeira, pelo menos ao que nos consta. E
no entanto... O fato é que o jovem filósofo
brasileiro, já em 1964, parecia antecipar
um tema caro à filosofia ulterior de Deleuze. Ao organizar seu estudo em torno
da idéia de "campo transcendental sem
sujeito", expressão de Sartre, ele ampliou-lhe o alcance, tendo em vista o caráter regressivo do método bergsoniano.
Trata-se, em suma, do esforço em remeter a consciência filosófica a um campo pré-filosófico, anterior à distinção sujeito/objeto. Em Bergson esse campo recebe o nome de vida ou imagem. É um
"há" anônimo e impessoal, a partir do
qual assiste-se ao nascimento da subjetividade. Para falar a linguagem da fenomenologia, a "redução" bergsoniana não
poderia deter-se na consciência constituinte -deve ir além dela, já que a própria consciência é constituída.
Ora, é exatamente essa a exigência de
Deleuze, exposta alguns anos depois em
"Lógica do Sentido": "Procuramos determinar um campo transcendental impessoal e pré-individual". Ao retomar a idéia
de Sartre e ao reivindicar um tal campo
transcendental purificado de toda estrutura egológica, mas também de seu último avatar, a consciência como totalidade
sintética e individual (que Sartre ainda
preservava), Deleuze cruza o gesto de
Bento Prado empreendido anos antes,
embora o relance em direções próprias,
com suas singularidades nômades e eus
larvares, diferenças livres tomando de assalto o sujeito identitário, ajudando a solapar as bases de uma filosofia da representação. Com isso, diga-se de passagem,
Deleuze prolonga uma matriz já anunciada em sua primeiríssima monografia sobre Hume, de 1952, que depois receberia
a paradoxal designação de "empirismo
transcendental".
Já podemos dar um salto para um dos
ultimíssimos escritos de Deleuze, intitulado "L" Immanence: Une Vie". Não é curioso que ele comece literalmente com a
pergunta: "O que é um campo transcendental"? Após passar por Bergson, Sartre,
Fichte, Husserl, reafirma, contra uma filosofia do sujeito, o campo transcendental sem sujeito, mas como imanência absoluta da vida, na singularidade não-individual de suas manifestações: uma vida... E menciona como exemplo o canalha agonizante em Dickens, e uma vida,
para aquém de bem e mal, que aí combate a morte e enternece até seus inimigos.
Também comparece o gracioso exemplo
das minúsculas criancinhas, todas parecidas, pois ainda não têm uma individualidade, mas no entanto já estão povoadas
de singularidades, "um sorriso, um gesto,
uma careta, acontecimentos que não são
características subjetivas", traços de uma
vida. Eis de volta o indefinido pré-pessoal
que Bento Prado tangenciou em seu estudo de juventude.
Se essa convergência pontual entre
Bento Prado e Deleuze pode ser atribuída, em parte, à marca que foi comum aos
dois autores, seja o ensinamento de
Goldschmidt, seja a filosofia de Sartre
("Ele foi Meu Mestre" é o título de uma
homenagem de Deleuze àquele que, segundo suas palavras, trouxe "ar puro"
para a filosofia), ela se deve, mais amplamente, aos desafios que se colocavam para o pensamento da época na contestação
de um certo humanismo, e que cada qual
captou e desdobrou a seu modo, guardadas as devidas proporções, para um lado
e para outro.
Jogos de linguagem
Evoquemos, em todo o caso, um dos últimos passos visíveis dessa contradança
filosófica. Num comentário recente, Bento Prado remete a idéia deleuziana de
"plano de imanência" à obsessão de levar
o pensamento para um campo pré-subjetivo e pré-objetivo (daí a passagem por
Hume, Bergson, Nietzsche), desembocando na vida pré-pessoal. Numa associação surpreendente, o autor aproxima
uma vida às formas de vida que os jogos
de linguagem em Wittgenstein expressam. Ora, ao atribuir a Deleuze e Wittgenstein o qualificativo de "anarcônticos", na recusa comum de uma "arké"
transcendente ou de qualquer fundacionalismo em filosofia, e ao levar em conta
as implicações subjetivas e vitais dessa
posição, Bento Prado prolonga sua própria "démarche", já presente em seu texto de juventude, a respeito do campo
transcendental e da gênese da subjetividade.
Deixemos o filósofo com suas criancinhas e contradanças e voltemos à recepção francesa do livro do autor. Um dos
principais estudiosos da obra de Bergson
hoje na França, Frédéric Worms, disse
que, se o livro de Bento Prado tivesse sido
publicado na época em que foi concluído,
talvez tivesse contribuído para modificar
não só a paisagem dos estudos bergsonianos, mas também o da filosofia francesa daquele período, em que Bergson
desempenhou um papel ao mesmo tempo capital e quase clandestino.
Worms quer dizer, talvez, que Bergson
(numa leitura acurada) oferecia uma saída para o dilema de se reduzir a filosofia a
uma crítica pura ou pretender com ela fazer uma metafísica pura. Se não podemos
aqui esmiuçar as razões e implicações
dessa afirmação, que nos baste lembrar
uma avaliação contígua, emitida por Marilena Chaui anos antes em sua apresentação à edição brasileira, que lamentavelmente não foi incorporada à tradução
francesa. Segundo ela, o livro de Bento
Prado "nos mostra, sem que seu autor
precise dizê-lo explicitamente, que a filosofia de Bergson cria um campo de pensamento em que se moverá a filosofia
francesa posterior".
Talvez tenha chegado o momento de
dizer uma palavrinha final sobre o "tom"
do livro em questão, para além de seus
embates teóricos. Num necrológio escrito em 1995, Giorgio Agamben compara
dois seminários a que assistiu, um de
Heidegger e outro, 20 anos mais tarde, de
Deleuze: "Um abismo separa esses dois
filósofos, a tonalidade geral de Heidegger
é de uma angústia tensa e quase metálica... Ao contrário, nada expressa melhor
a tonalidade fundamental de Deleuze que
uma sensação que ele gostava de chamar
pelo nome inglês: "self-enjoyment'". A
conclusão de Agamben é a seguinte: "A
grande filosofia deste século sombrio,
que começara pela angústia, conclui-se
com a alegria".
Décadas antes, ao comparar o bergsonismo e o existencialismo, Jean Hyppolite dizia algo similar, mas com o sinal invertido, como se o deplorasse: não há lugar em Bergson para a angústia humana.
E, ao comentar a serenidade do filósofo,
ele acrescentava: "É essa serenidade que
hoje já não estamos em condições de
compreender. Como se, num período da
história especialmente trágico como o
nosso, essa serenidade não mais tivesse
vez". Se a serenidade de um Bergson soava deslocada naquele momento, é possível que hoje, numa estranha reversão,
apesar das nuvens que se acumulam no
horizonte, e sem que isso implique qualquer adesão, já estejamos "maduros",
não só para o "tom" do filósofo, mas também para a linhagem de pensadores que
encontrou em sua serenidade uma nova juventude.
Peter Pál Pelbart é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (SP), tradutor de Deleuze e autor, entre outros livros, de "O Tempo
Não-Reconciliado" (Perspectiva).
Onde encomendar: Livraria Francesa (Tel.0/ xx/11/3231-4555)
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