São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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Contradança filosófica

A tradução francesa de um livro de Bento Prado Jr.

PETER PÁL PELBART

Présence et Champ Transcendental: Conscience et Négativité dans la Philosophie de Bergson
Bento Prado Jr.
Apresentação e tradução do português de Renaud Barbaras
Ed. Georg Olms Verlag
181 págs., 44 euros

Quase 40 anos separam a recente edição em francês de "Presença e Campo Transcendental - Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson", de Bento Prado Jr., de sua elaboração original. Eis um livro que chega aos poucos, discretamente, como se precisasse da prova do tempo para justificar sua pertinência e medir o seu alcance.
Escrito quando o autor tinha 26 anos de idade, em menos de três meses, logo após o golpe de 1964, dormitou na gaveta até sua publicação pela Edusp, em 1989. Agora, e em boa hora, por fim esta pequena preciosidade chega também ao público europeu, com esmerada tradução de Renaud Barbaras, a quem devemos a louvável iniciativa.
É preciso que se diga, antes de tudo, que este livro parece ter encontrado no texto em francês sua versão original. A elegância e concisão já notáveis na língua portuguesa ganharam realce na tradução, com a vantagem de que os poucos galicismos e muitas citações "retornaram à fonte"... Mérito do tradutor, sem dúvida, mas também característica do original, que, segundo confessa o autor, teria sido, por assim dizer, "pensado" em francês.
Não é de admirar que um estudo sobre Bergson, inspirado numa linhagem de intérpretes que vai de Guéroult a Goldschmidt, mas sobretudo confrontando o bergsonismo com Sartre, necessariamente seja um (re)corte na filosofia francesa. Se obedece a todos os rigores da historiografia dita "estrutural", que se propõe a ler um autor de maneira imanente, evitando lançar sobre ele qualquer juízo de valor extrínseco, Bento Prado não faz mero trabalho de historiador da filosofia, o que já não seria pouco. Fiel a um princípio que postula uma porosidade entre a filosofia e sua história, o autor consegue abrir Bergson às filosofias concorrentes, à tradição da qual se afasta e sobretudo à posteridade que o ecoa, quer ela o queira ou não.

Malícia filosófica
Com isso, as cartas do pensamento são marotamente embaralhadas, e os problemas, reinventados. Encontramos coincidências inesperadas de Bergson com Kant (sobre as ilusões da inteligência, "constelação de miragens" que faz sistema), afinidades e divergências com Husserl ou Merleau-Ponty ali onde menos as esperávamos, cruzamentos com Nietzsche, distâncias com Hegel etc. É a malícia filosófica do autor: reencontrar um solo comum onde outros viam continentes distintos, detectar bifurcações onde uma terminologia comum nos confundiria. Não sem humor, ele apaga e redesenha fronteiras, fiel às tensões e originalidades de cada "démarche".
Nesse sentido, a conversa mais curiosa que atravessa o livro é com Sartre. Já os termos utilizados nesse estudo, quase ausentes em Bergson, deixam poucas dúvidas quanto às inclinações do autor: em-si e para-si, autenticidade e inautenticidade, negatividade, práxis, campo transcendental... Contudo, se essa terminologia serve para facilitar o diálogo com o existencialismo e, por tabela, com a fenomenologia como um todo, em momento nenhum o pensamento bergsoniano parece subjugado à crítica proveniente desse campo. Exercício admirável de Bento Prado, o de pensar "contra si mesmo", isto é, contra o fascínio que Sartre exercia sobre sua geração. De maneira soberana, e seguindo os meandros da crítica de Bergson ao conjunto da tradição filosófica, a começar pela prevalência da idéia de Nada e suas implicações, Bento Prado reconstitui a gênese da subjetividade e da ontologia em sua obra.
Ao descobrir no bergsonismo um arco tenso que vai do pré-humano ao sobre-humano, sua interpretação revela a lógica desta curvatura, desde o "campo transcendental" até uma "ontologia da presença", deslocando inteiramente o lugar da consciência finita, ou da subjetividade, para situá-la "no meio": nem ponto de partida nem de chegada. Para ir rápido, diríamos que, ao desbancar um antropologismo filosófico, as condições mesmas de um certo "humanismo" são juguladas, com consequências de peso para a filosofia francesa subsequente -arrastando consigo o próprio Sartre, diga-se de passagem.
Com sua obra, Bento Prado livra o bergsonismo da imagem empoeirada que o pensamento, em suas variantes diversas -fenomenológica, marxista ou estrutural-, foi sedimentando a seu respeito. Já não podemos pensar nessa filosofia como um espiritualismo insípido, um psicologismo ou mesmo um vitalismo, muito menos biologizante.
É provável que o ostracismo a que foi relegada a filosofia de Bergson, na esteira dessa imagem injusta, esteja chegando ao fim, juntamente com o refluxo das correntes que ajudaram a fabricá-la -e a publicação do livro do autor na França talvez seja um indício suplementar disso, entre muitos outros. Nesse contexto, mais do que refazer um comentário do livro ou celebrar a ocasião, melhor seria indicar uma curiosidade no âmbito de sua "recepção" francesa.
Refiro-me à relação ziguezagueante de Bento Prado com Gilles Deleuze. Fosse-me permitido retribuir-lhes com um pouco do humor que nunca lhes faltou, eu daria a isso o nome de uma... contradança filosófica. Eu me explico.
Pouco depois da conclusão de "Presença e Campo Transcendental", saía na França, em 1966, o pequeno livro de Deleuze intitulado "Le Bergsonisme". Muito diferente no estilo, nos propósitos, na estrutura e no método, o estudo de Deleuze articulava o tema da duração, da memória e do impulso vital recorrendo a um fio condutor inesperado: o da diferença (e da multiplicidade). Bento Prado teve acesso ao miolo desse argumento num artigo publicado por Deleuze anos antes. Talvez essa leitura, somada à de "Nietzsche e a Filosofia", tenha ajudado a reforçar, em seu estudo, o caráter não-dialético da ontologia de Bergson e o caráter afirmativo do impulso vital.
Chegamos assim ao que nos interessa. Se é certo que Bento Prado leu Deleuze e dele tirou proveito, a recíproca não é verdadeira, pelo menos ao que nos consta. E no entanto... O fato é que o jovem filósofo brasileiro, já em 1964, parecia antecipar um tema caro à filosofia ulterior de Deleuze. Ao organizar seu estudo em torno da idéia de "campo transcendental sem sujeito", expressão de Sartre, ele ampliou-lhe o alcance, tendo em vista o caráter regressivo do método bergsoniano.
Trata-se, em suma, do esforço em remeter a consciência filosófica a um campo pré-filosófico, anterior à distinção sujeito/objeto. Em Bergson esse campo recebe o nome de vida ou imagem. É um "há" anônimo e impessoal, a partir do qual assiste-se ao nascimento da subjetividade. Para falar a linguagem da fenomenologia, a "redução" bergsoniana não poderia deter-se na consciência constituinte -deve ir além dela, já que a própria consciência é constituída.
Ora, é exatamente essa a exigência de Deleuze, exposta alguns anos depois em "Lógica do Sentido": "Procuramos determinar um campo transcendental impessoal e pré-individual". Ao retomar a idéia de Sartre e ao reivindicar um tal campo transcendental purificado de toda estrutura egológica, mas também de seu último avatar, a consciência como totalidade sintética e individual (que Sartre ainda preservava), Deleuze cruza o gesto de Bento Prado empreendido anos antes, embora o relance em direções próprias, com suas singularidades nômades e eus larvares, diferenças livres tomando de assalto o sujeito identitário, ajudando a solapar as bases de uma filosofia da representação. Com isso, diga-se de passagem, Deleuze prolonga uma matriz já anunciada em sua primeiríssima monografia sobre Hume, de 1952, que depois receberia a paradoxal designação de "empirismo transcendental".
Já podemos dar um salto para um dos ultimíssimos escritos de Deleuze, intitulado "L" Immanence: Une Vie". Não é curioso que ele comece literalmente com a pergunta: "O que é um campo transcendental"? Após passar por Bergson, Sartre, Fichte, Husserl, reafirma, contra uma filosofia do sujeito, o campo transcendental sem sujeito, mas como imanência absoluta da vida, na singularidade não-individual de suas manifestações: uma vida... E menciona como exemplo o canalha agonizante em Dickens, e uma vida, para aquém de bem e mal, que aí combate a morte e enternece até seus inimigos. Também comparece o gracioso exemplo das minúsculas criancinhas, todas parecidas, pois ainda não têm uma individualidade, mas no entanto já estão povoadas de singularidades, "um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjetivas", traços de uma vida. Eis de volta o indefinido pré-pessoal que Bento Prado tangenciou em seu estudo de juventude.
Se essa convergência pontual entre Bento Prado e Deleuze pode ser atribuída, em parte, à marca que foi comum aos dois autores, seja o ensinamento de Goldschmidt, seja a filosofia de Sartre ("Ele foi Meu Mestre" é o título de uma homenagem de Deleuze àquele que, segundo suas palavras, trouxe "ar puro" para a filosofia), ela se deve, mais amplamente, aos desafios que se colocavam para o pensamento da época na contestação de um certo humanismo, e que cada qual captou e desdobrou a seu modo, guardadas as devidas proporções, para um lado e para outro.

Jogos de linguagem
Evoquemos, em todo o caso, um dos últimos passos visíveis dessa contradança filosófica. Num comentário recente, Bento Prado remete a idéia deleuziana de "plano de imanência" à obsessão de levar o pensamento para um campo pré-subjetivo e pré-objetivo (daí a passagem por Hume, Bergson, Nietzsche), desembocando na vida pré-pessoal. Numa associação surpreendente, o autor aproxima uma vida às formas de vida que os jogos de linguagem em Wittgenstein expressam. Ora, ao atribuir a Deleuze e Wittgenstein o qualificativo de "anarcônticos", na recusa comum de uma "arké" transcendente ou de qualquer fundacionalismo em filosofia, e ao levar em conta as implicações subjetivas e vitais dessa posição, Bento Prado prolonga sua própria "démarche", já presente em seu texto de juventude, a respeito do campo transcendental e da gênese da subjetividade.
Deixemos o filósofo com suas criancinhas e contradanças e voltemos à recepção francesa do livro do autor. Um dos principais estudiosos da obra de Bergson hoje na França, Frédéric Worms, disse que, se o livro de Bento Prado tivesse sido publicado na época em que foi concluído, talvez tivesse contribuído para modificar não só a paisagem dos estudos bergsonianos, mas também o da filosofia francesa daquele período, em que Bergson desempenhou um papel ao mesmo tempo capital e quase clandestino.
Worms quer dizer, talvez, que Bergson (numa leitura acurada) oferecia uma saída para o dilema de se reduzir a filosofia a uma crítica pura ou pretender com ela fazer uma metafísica pura. Se não podemos aqui esmiuçar as razões e implicações dessa afirmação, que nos baste lembrar uma avaliação contígua, emitida por Marilena Chaui anos antes em sua apresentação à edição brasileira, que lamentavelmente não foi incorporada à tradução francesa. Segundo ela, o livro de Bento Prado "nos mostra, sem que seu autor precise dizê-lo explicitamente, que a filosofia de Bergson cria um campo de pensamento em que se moverá a filosofia francesa posterior".
Talvez tenha chegado o momento de dizer uma palavrinha final sobre o "tom" do livro em questão, para além de seus embates teóricos. Num necrológio escrito em 1995, Giorgio Agamben compara dois seminários a que assistiu, um de Heidegger e outro, 20 anos mais tarde, de Deleuze: "Um abismo separa esses dois filósofos, a tonalidade geral de Heidegger é de uma angústia tensa e quase metálica... Ao contrário, nada expressa melhor a tonalidade fundamental de Deleuze que uma sensação que ele gostava de chamar pelo nome inglês: "self-enjoyment'". A conclusão de Agamben é a seguinte: "A grande filosofia deste século sombrio, que começara pela angústia, conclui-se com a alegria".
Décadas antes, ao comparar o bergsonismo e o existencialismo, Jean Hyppolite dizia algo similar, mas com o sinal invertido, como se o deplorasse: não há lugar em Bergson para a angústia humana. E, ao comentar a serenidade do filósofo, ele acrescentava: "É essa serenidade que hoje já não estamos em condições de compreender. Como se, num período da história especialmente trágico como o nosso, essa serenidade não mais tivesse vez". Se a serenidade de um Bergson soava deslocada naquele momento, é possível que hoje, numa estranha reversão, apesar das nuvens que se acumulam no horizonte, e sem que isso implique qualquer adesão, já estejamos "maduros", não só para o "tom" do filósofo, mas também para a linhagem de pensadores que encontrou em sua serenidade uma nova juventude.


Peter Pál Pelbart é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (SP), tradutor de Deleuze e autor, entre outros livros, de "O Tempo Não-Reconciliado" (Perspectiva).


Onde encomendar: Livraria Francesa (Tel.0/ xx/11/3231-4555)


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