|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O trabalho do tempo
Uma coleção de fotos de Thomaz Farkas
VICTOR KNOLL
Thomaz Farkas
Artistas da USP nš 11
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
156 págs., R$ 30,00
O portfólio do fotógrafo Thomaz Farkas, dividido em quatro partes, traz de
volta para nosso olhar a São Paulo e o Rio
de Janeiro dos anos 40 e o período final
da construção de Brasília, mostrando o
andamento das obras até o dia de sua
inauguração. Dessa coleção de fotos de
Brasília há que destacar um pequeno salto para 1999, que contamos como quarta
parte, da qual temos apenas nove imagens no formato 6x6 tomadas com a mítica câmara Rolleiflex que Farkas tira do
armário e da qual limpa a poeira, e que
persiste como um grande instrumento de
criação. Essas fotos registram pessoas entregues ao cotidiano e nos dão a impressão de que estão em qualquer cidade humilde do país e não na capital à qual nos
acostumamos a associar ícones arquitetônicos como o Palácio da Alvorada.
No segmento dedicado a Brasília, além
das obras de sua construção, há uma série
de fotos do núcleo Bandeirante -"núcleo" porque não é uma cidade nem uma
vila nem algo a que se possa chamar de
meio urbano-, onde moravam os operários empenhados na construção da Capital. "Bandeirante" para dignificar um
favelão. Farkas opera um curto-circuito
no tempo. Não há diferença significativa
entre as fotos do núcleo dos fins dos anos
50 e aquelas tomadas recentemente. Parece que há uma continuidade ou um
movimento circular entre as imagens
desses dois momentos.
Entre as fotos de Brasília de 1999, destaca-se uma que mostra um casebre de madeira -trata-se de um "Tabernáculo
Evangélico"!- completamente isolado
em um descampado árido, que mais parece as primeiras "habitações" dos engenheiros e arquitetos que lá se instalaram
antes mesmos de um tijolo ser assentado
para a construção de Brasília. Ao lado das
fotos da Capital em construção, que possuem inevitavelmente um valor histórico, as imagens do Rio e de São Paulo se
voltam para um temário diversificado: a
vida diária urbana, o futebol, paisagens,
retratos, dança e ainda uma breve incursão no surrealismo.
Entretanto, Farkas abre espaço de modo especial para uma série de fotografias,
tomadas parte em São Paulo e parte no
Rio, que chamou de "recortes", que desempenham um papel estratégico no
portfólio. Nesses "recortes" está a orientação fotográfica de Farkas.
De modo explícito ou camuflado, sua
visão fotográfica está marcada por uma
inspiração gráfica -uma predominância do geométrico, da composição elaborada no retângulo do fotograma por linhas e volumes. Enfim, o que se consagrou pelo termo grafismo. Tal preocupação formal é solidária do empenho social,
quanto ao conteúdo, que grande parte de
suas fotos carrega.
Outro aspectos que possui grande força
é o uso da sombra. Ainda mais, o emprego gráfico da sombra. A combinação de
ambos -do elemento gráfico propriamente dito e de sua projeção como sombra- resulta em uma espécie de virtuosismo visual. É o caso da foto da grade do
viaduto. A grade, por si só, já é um elemento gráfico, que se desdobra em sua
sombra que assume o primeiro plano da
imagem. A foto é estruturada por duas linhas: uma acompanha a borda direita da
imagem e a outra, uma diagonal, perpassa a imagem do canto direito superior ao
canto esquerdo inferior. São as sombras
e não a coisa física, o objeto grade, que
constitui o interesse visual da foto.
A recorrência à grade como elemento
gráfico ocorre também na foto dos meninos que nela estão confortavelmente sentados, assistindo a um jogo de futebol no
Pacaembu. A imagem mostra que a função da grade sofre uma quase inversão:
ao contrário de impedir, ela dá acesso à
visão de algo que está escondido para a
nossa percepção. Mas, ao lado desse ponto, essa foto obedece também uma orientação gráfica em sua construção. As linhas verticais da grade estruturam visualmente a imagem.
Essa mesma recorrência ao grafismo
também a encontramos na bela foto de
um jogo de futebol na praia de Copacabana -a cena do momento em que se dá o
gol. As traves e o travessão que com a linha branca demarcada no chão formam
o retângulo do gol, transformam-se em
um trapézio escaleno por força do ângulo
da tomada da foto e do emprego de uma
lente grande-angular. Aqui também o espaço fotográfico é organizado graças ao
caráter gráfico das linhas. Temos, ainda,
as duas linhas suaves -a armação que
sustenta a rede- que prendem o trapézio no chão, conferindo grande estabilidade à imagem.
Por sua vez, o interesse da imagem é representar o movimento: o salto do goleiro e a trajetória da bola. Entretanto, nessa
foto, outro ponto ainda deve ser lembrado: o trapézio no qual se converteu o gol
toma o lugar, agora, do retângulo do fotograma. A foto se sustenta graças a esse
caráter gráfico: o menino em pleno vôo e
a bola -um ponto que marca a atenção
do espectador- conferem conteúdo à
organização gráfica do espaço. A areia no
primeiro plano e ao fundo o discreto recorte da montanha -com o indefectível
Pão de Açúcar esmaecido-, asseguram
realidade à imagem.
Forças contraditórias
Por fim, um derradeiro aspecto: há um
diálogo entre o vôo do menino com o
braço estendido na vã tentativa de alcançar a bola e as armações que sustentam a
rede. O menino, do pé até a mão, é uma linha que cai para a direita enquanto as armações são linhas que pendem para a esquerda. Esse jogo de duas forças contraditórias confere à foto, à totalidade da
imagem, um grande - e agradável -
impacto visual.
As fotos que documentam a construção
de Brasília possuem forçosamente caráter gráfico em virtude do assunto tratado:
andaimes cujas barras de ferro fazem da
imagem um complexo de linhas criando
as mais diversas formas geométricas.
Quanto ao uso da sombra, à qual já nos
referimos, como projeção gráfica de um
objeto, sua função consiste em estabelecer um efeito duplicador. Entretanto,
além da sombra, Farkas recorre a outro
expediente para desdobrar determinados
elementos de uma fotografia -o espelhamento. É o caso, por exemplo, de uma
tomada de uma rua do núcleo Bandeirante. No lugar da sombra, mas desempenhando o mesmo papel, temos o espelhamento na água de alguns elementos
da imagem: o homem que caminha, a tabuleta do alfaiate e outras tabuletas mais
distantes.
Estamos diante de uma foto que tem
uma clara intenção de registro, dotada de
forte carga antropológica -a presença
do alfaiate, do dentista e do relojoeiro em
uma rua que exprime a situação de uma
comunidade- e que conta, ainda que de
modo discreto, com o elemento gráfico
da projeção e do desdobramento da imagem. É certo, entretanto, que o interesse
maior dessa foto é ser um documento ligado à construção da Capital.
Há ainda que levar em conta o modo
como Farkas se serve da luz natural. Se
contemplarmos as imagens do portfólio
uma após a outra, com relativa rapidez,
podemos constatar que o fotógrafo lida
com a luz em duas direções bem distintas: ou a iluminação é diáfana ou há uma
forte tensão entre o claro e o escuro. Neste último caso, é claro, a luz guarda um
compromisso com o propósito gráfico
ou, mesmo, em benefício de uma expressividade mais contundente da imagem.
Já a iluminação diáfana -sobretudo nas
paisagens das praias de Copacabana e de
Itanhaém, como também na tomada do
Pão de Açúcar e da Urca- remete-nos,
ainda que de maneira discreta, ao pictorialismo. Trata-se, apenas, de uma lembrança.
É certo que, em momento algum, Farkas tem a intenção de imitar a pintura.
Ao contrário do que ainda era praticado
nos fotoclubes, o seu trabalho fotográfico
inscreve-se na modernização da fotografia no Brasil, que resultou no abandono
dos estereótipos picturalistas do fim do
século 19, que aqui durou até as três ou
quatro primeiras décadas do 20. As fotos
de Farkas que lidam com a luz diáfana
-aliás, a foto do gol é um exemplo-
afastam-se do pictorialismo não só por
força dos temas, sobretudo aqueles de
caráter social e documental, mas sobretudo pelo ponto de vista da tomada da
foto, pelo enquadramento por vezes ousados. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: aqueles fotoclubes desempenharam
um papel fundamental na história da fotografia brasileira e, de seu lado, "pictorialismo" não é palavra de baixo calão.
Muito ainda poderia ser comentado
acerca deste portfólio. Lembremos a foto
de uma banca de jornal que tem o atrativo de se constituir em um resumo do jornalismo impresso dos anos 40. Lá estão
"O Cruzeiro", "X-9", "O Tico-Tico", "O
Riso", a "Revista do Rádio", "O Globo
Juvenil", entre tantas outras publicações.
A magia da fotografia desperta sentimentos que gostaríamos de experimentá-los ainda hoje. Esse é um dos segredos
da fotografia, mesmo quando se volta
para assuntos triviais: o trabalho do tempo. Quanto ao modo como funciona a
nossa relação com o tempo diante da fotografia, há algo de diferente em relação
ao registro efetuado pela pintura. Na pintura o tempo se cristaliza. Na fotografia, se dá algo esquecido que subitamente se torna presente.
Victor Knoll é professor do departamento de filosofia da USP.
Texto Anterior: Três talismãs Próximo Texto: Contradança filosófica Índice
|