São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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O trabalho do tempo

Uma coleção de fotos de Thomaz Farkas

VICTOR KNOLL

Thomaz Farkas
Artistas da USP nš 11
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
156 págs., R$ 30,00

O portfólio do fotógrafo Thomaz Farkas, dividido em quatro partes, traz de volta para nosso olhar a São Paulo e o Rio de Janeiro dos anos 40 e o período final da construção de Brasília, mostrando o andamento das obras até o dia de sua inauguração. Dessa coleção de fotos de Brasília há que destacar um pequeno salto para 1999, que contamos como quarta parte, da qual temos apenas nove imagens no formato 6x6 tomadas com a mítica câmara Rolleiflex que Farkas tira do armário e da qual limpa a poeira, e que persiste como um grande instrumento de criação. Essas fotos registram pessoas entregues ao cotidiano e nos dão a impressão de que estão em qualquer cidade humilde do país e não na capital à qual nos acostumamos a associar ícones arquitetônicos como o Palácio da Alvorada.
No segmento dedicado a Brasília, além das obras de sua construção, há uma série de fotos do núcleo Bandeirante -"núcleo" porque não é uma cidade nem uma vila nem algo a que se possa chamar de meio urbano-, onde moravam os operários empenhados na construção da Capital. "Bandeirante" para dignificar um favelão. Farkas opera um curto-circuito no tempo. Não há diferença significativa entre as fotos do núcleo dos fins dos anos 50 e aquelas tomadas recentemente. Parece que há uma continuidade ou um movimento circular entre as imagens desses dois momentos.
Entre as fotos de Brasília de 1999, destaca-se uma que mostra um casebre de madeira -trata-se de um "Tabernáculo Evangélico"!- completamente isolado em um descampado árido, que mais parece as primeiras "habitações" dos engenheiros e arquitetos que lá se instalaram antes mesmos de um tijolo ser assentado para a construção de Brasília. Ao lado das fotos da Capital em construção, que possuem inevitavelmente um valor histórico, as imagens do Rio e de São Paulo se voltam para um temário diversificado: a vida diária urbana, o futebol, paisagens, retratos, dança e ainda uma breve incursão no surrealismo.
Entretanto, Farkas abre espaço de modo especial para uma série de fotografias, tomadas parte em São Paulo e parte no Rio, que chamou de "recortes", que desempenham um papel estratégico no portfólio. Nesses "recortes" está a orientação fotográfica de Farkas.
De modo explícito ou camuflado, sua visão fotográfica está marcada por uma inspiração gráfica -uma predominância do geométrico, da composição elaborada no retângulo do fotograma por linhas e volumes. Enfim, o que se consagrou pelo termo grafismo. Tal preocupação formal é solidária do empenho social, quanto ao conteúdo, que grande parte de suas fotos carrega.
Outro aspectos que possui grande força é o uso da sombra. Ainda mais, o emprego gráfico da sombra. A combinação de ambos -do elemento gráfico propriamente dito e de sua projeção como sombra- resulta em uma espécie de virtuosismo visual. É o caso da foto da grade do viaduto. A grade, por si só, já é um elemento gráfico, que se desdobra em sua sombra que assume o primeiro plano da imagem. A foto é estruturada por duas linhas: uma acompanha a borda direita da imagem e a outra, uma diagonal, perpassa a imagem do canto direito superior ao canto esquerdo inferior. São as sombras e não a coisa física, o objeto grade, que constitui o interesse visual da foto.
A recorrência à grade como elemento gráfico ocorre também na foto dos meninos que nela estão confortavelmente sentados, assistindo a um jogo de futebol no Pacaembu. A imagem mostra que a função da grade sofre uma quase inversão: ao contrário de impedir, ela dá acesso à visão de algo que está escondido para a nossa percepção. Mas, ao lado desse ponto, essa foto obedece também uma orientação gráfica em sua construção. As linhas verticais da grade estruturam visualmente a imagem.
Essa mesma recorrência ao grafismo também a encontramos na bela foto de um jogo de futebol na praia de Copacabana -a cena do momento em que se dá o gol. As traves e o travessão que com a linha branca demarcada no chão formam o retângulo do gol, transformam-se em um trapézio escaleno por força do ângulo da tomada da foto e do emprego de uma lente grande-angular. Aqui também o espaço fotográfico é organizado graças ao caráter gráfico das linhas. Temos, ainda, as duas linhas suaves -a armação que sustenta a rede- que prendem o trapézio no chão, conferindo grande estabilidade à imagem.
Por sua vez, o interesse da imagem é representar o movimento: o salto do goleiro e a trajetória da bola. Entretanto, nessa foto, outro ponto ainda deve ser lembrado: o trapézio no qual se converteu o gol toma o lugar, agora, do retângulo do fotograma. A foto se sustenta graças a esse caráter gráfico: o menino em pleno vôo e a bola -um ponto que marca a atenção do espectador- conferem conteúdo à organização gráfica do espaço. A areia no primeiro plano e ao fundo o discreto recorte da montanha -com o indefectível Pão de Açúcar esmaecido-, asseguram realidade à imagem.

Forças contraditórias
Por fim, um derradeiro aspecto: há um diálogo entre o vôo do menino com o braço estendido na vã tentativa de alcançar a bola e as armações que sustentam a rede. O menino, do pé até a mão, é uma linha que cai para a direita enquanto as armações são linhas que pendem para a esquerda. Esse jogo de duas forças contraditórias confere à foto, à totalidade da imagem, um grande - e agradável - impacto visual.
As fotos que documentam a construção de Brasília possuem forçosamente caráter gráfico em virtude do assunto tratado: andaimes cujas barras de ferro fazem da imagem um complexo de linhas criando as mais diversas formas geométricas.
Quanto ao uso da sombra, à qual já nos referimos, como projeção gráfica de um objeto, sua função consiste em estabelecer um efeito duplicador. Entretanto, além da sombra, Farkas recorre a outro expediente para desdobrar determinados elementos de uma fotografia -o espelhamento. É o caso, por exemplo, de uma tomada de uma rua do núcleo Bandeirante. No lugar da sombra, mas desempenhando o mesmo papel, temos o espelhamento na água de alguns elementos da imagem: o homem que caminha, a tabuleta do alfaiate e outras tabuletas mais distantes.
Estamos diante de uma foto que tem uma clara intenção de registro, dotada de forte carga antropológica -a presença do alfaiate, do dentista e do relojoeiro em uma rua que exprime a situação de uma comunidade- e que conta, ainda que de modo discreto, com o elemento gráfico da projeção e do desdobramento da imagem. É certo, entretanto, que o interesse maior dessa foto é ser um documento ligado à construção da Capital.
Há ainda que levar em conta o modo como Farkas se serve da luz natural. Se contemplarmos as imagens do portfólio uma após a outra, com relativa rapidez, podemos constatar que o fotógrafo lida com a luz em duas direções bem distintas: ou a iluminação é diáfana ou há uma forte tensão entre o claro e o escuro. Neste último caso, é claro, a luz guarda um compromisso com o propósito gráfico ou, mesmo, em benefício de uma expressividade mais contundente da imagem. Já a iluminação diáfana -sobretudo nas paisagens das praias de Copacabana e de Itanhaém, como também na tomada do Pão de Açúcar e da Urca- remete-nos, ainda que de maneira discreta, ao pictorialismo. Trata-se, apenas, de uma lembrança.
É certo que, em momento algum, Farkas tem a intenção de imitar a pintura. Ao contrário do que ainda era praticado nos fotoclubes, o seu trabalho fotográfico inscreve-se na modernização da fotografia no Brasil, que resultou no abandono dos estereótipos picturalistas do fim do século 19, que aqui durou até as três ou quatro primeiras décadas do 20. As fotos de Farkas que lidam com a luz diáfana -aliás, a foto do gol é um exemplo- afastam-se do pictorialismo não só por força dos temas, sobretudo aqueles de caráter social e documental, mas sobretudo pelo ponto de vista da tomada da foto, pelo enquadramento por vezes ousados. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: aqueles fotoclubes desempenharam um papel fundamental na história da fotografia brasileira e, de seu lado, "pictorialismo" não é palavra de baixo calão.
Muito ainda poderia ser comentado acerca deste portfólio. Lembremos a foto de uma banca de jornal que tem o atrativo de se constituir em um resumo do jornalismo impresso dos anos 40. Lá estão "O Cruzeiro", "X-9", "O Tico-Tico", "O Riso", a "Revista do Rádio", "O Globo Juvenil", entre tantas outras publicações. A magia da fotografia desperta sentimentos que gostaríamos de experimentá-los ainda hoje. Esse é um dos segredos da fotografia, mesmo quando se volta para assuntos triviais: o trabalho do tempo. Quanto ao modo como funciona a nossa relação com o tempo diante da fotografia, há algo de diferente em relação ao registro efetuado pela pintura. Na pintura o tempo se cristaliza. Na fotografia, se dá algo esquecido que subitamente se torna presente.


Victor Knoll é professor do departamento de filosofia da USP.


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