São Paulo, sábado, 10 de outubro de 1998 |
Próximo Texto | Índice Bienal
ANNATERESA FABRIS
Poderá um documento historicamente datado e, ao que parece, descontextualizado das tensões que caracterizaram o Modernismo articular uma visão contemporânea? Tomar a proposta antropofágica como mote para um evento do porte da Bienal terá sido a decisão mais apropriada num momento em que a singularidade nacional/pessoal e o fantasma da identidade a ela (inevitavelmente) associado vão sendo radicalmente redefinidos em função daqueles processos de globalização e despersonalização que estão apagando as antigas diferenças entre "próprio" e "alheio", "eu" e "outro"? Por outro lado, não será banal transformar em atitude antropofágica o diálogo, a adaptação, a interpretação de uma cultura por parte de outra cultura? Vista por este prisma, a antropofagia nada tem de novo: toda cultura é feita de empréstimos, adaptações, interpretações, de diálogos com outras culturas, e é justamente esse movimento constante que garante aquele jogo de contraposições tão caro à modernidade. E o que dizer do processo criador, definido por uma tensão permanente entre reciclagem/adaptação e contribuição original? Se a proposta do "Manifesto Antropófago" era proclamar a originalidade da cultura brasileira numa inversão proposital da lógica colonial, não é com esse quadro de referências que se deparam os artistas e os intelectuais das últimas décadas do século 20. Longe de ser uma construção nacional, a cultura afigura-se cada vez mais como um processo de montagem multinacional, como uma atividade gestada em diversos centros, para a qual os referentes tradicionais de identidade estão perdendo importância diante do caráter transnacional das tecnologias e do consumo de mensagens e produtos simbólicos. Neste momento, as análises relativas à cultura não podem levar em conta apenas a problemática da diferença, mas abrir-se cada vez mais ao fenômeno do hibridismo, da transação intercultural (García Canclini). Significativamente, vários curadores da seção "Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros" enfatizam esta problemática em seus textos e na própria seleção de artistas. Rina Carvajal, mesmo aderindo à metáfora antropofágica, coloca em discussão as noções de identidade, apropriação e fronteiras culturais, e propõe analisar a produção latino-americana a partir da perspectiva da "prática labiríntica": uma prática que não aspira à nenhuma unidade, pois se rege pelo fragmento e pela reformulação contínua. Apinan Poshyananda, que se interroga sobre a aplicabilidade da "idéia rica e provocadora" de Oswald de Andrade, lança mão de imagens muito próximas daquelas de Rina Carvajal: "Caminhos labirínticos, encruzilhadas e fronteiras". Relaciona ainda o canibalismo com o processo da globalização, demonstrando como na Ásia está sendo redesenhado o quadro das culturas nacionais em função do impacto das tecnologias e dos meios de comunicação de massa. Thomas Mulcaire e Lorna Fergusson, embora estruturem seu texto de maneira a negar a lógica colonial e afirmar a existência de uma autovisão africana, não deixam de adotar uma estratégia profundamente híbrida. É do confronto entre idéias modernas e idéias pós-modernas, vozes ocidentais e vozes nativas, que brota o conceito de "centralidade" africana. Uma centralidade que não exclui o diálogo com o outro, pois pressupõe dois tempos consecutivos: "Após nos examinarmos, irradiamos para fora e descobrimos povos e mundos em torno de nós". A tomada de posição africana não é incongruente com o fenômeno da globalização. Se a associação nação-território, identidade-comunidade imaginada se enfraqueceu, isso não implica a extinção da cultura nacional, convertida, entretanto, "em uma fórmula para designar a continuidade de uma memória histórica instável, que se reconstrói em interação com referentes culturais transnacionais", como lembra García Canclini. Os roteiros propostos para essa seção específica da 24ª Bienal de São Paulo, mais do que à ideologia de uma originalidade nativa forjada na década de 20, remetem, sem dúvida alguma, ao esboroamento de paradigmas, cânones e tendências em crescente expansão desde os anos 80. A multiplicação de possibilidades e estratégias mobilizadas pelos artistas contemporâneos traz a marca do fragmento, do entrecruzamento de diferentes realidades espaciais e temporais, de um presente que se define a partir de uma pluralidade cravada no passado, da autenticidade irreal, do fim da ilusão da originalidade, da descontextualização/recontextualização (nem sempre em sentido duchampiano), da perda da centralidade da arte no sistema cultural em prol daqueles novos instrumentos de estetização que são os meios de comunicação de massa e a publicidade. Diante deste quadro complexo, não parece ser possível tentar pensar a produção artística a partir de um prisma que teve sua razão de ser no começo do século, mas que se revela inadequado para o momento atual. Os artistas deste final de século só podem ramificar suas pesquisas em múltiplos itinerários, porque é com a fragmentação, a multiplicidade, a permeabilidade de imagens e signos que se deparam o tempo todo. "Itinerários" parece ser mais adequado que "roteiros", uma vez que o segundo termo pressupõe indicações metódicas e minuciosas, nem sempre claramente discerníveis num panorama como o atual, que está tentando redefinir novas funções e novos regimes para as práticas artísticas. A menos que o conceito de roteiro não seja pensado como construção ficcional de uma identidade, que não se reconhece mais nas categorias conceituais e formais erigidas pela modernidade e que se furta a qualquer distinção entre verdade e fantasia, passado e presente, por conceber a operação artística como uma modalidade possível dos sistemas de significação. A metáfora da antropofagia como eixo da Bienal suscita uma outra interrogação: não estaria de acordo com a crítica do eurocentrismo cultural que conferiu um novo estatuto à periferia? A dúvida da crítica chilena Nelly Richard sobre a centralidade das margens permite responder a esta indagação: os discursos sobre a diferença continuam sendo enunciados, em grande parte, pelas instituições culturais do centro. Nesta perspectiva, a metáfora da antropofagia acabaria por conferir ao Brasil uma centralidade imaginária, não efetiva. Se dúvidas houvesse sobre o caráter imaginário desta construção, bastaria atentar para quem aderiu à proposta antropofágica e quem se sentiu deslocado diante dela. Annateresa Fabris é historiadora, crítica de arte e autora, entre outros livros, de "Arte e Política: Algumas Possibilidades de Leitura" (1998). Próximo Texto | Índice |
|