São Paulo, sábado, 10 de outubro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice O discreto encanto da antropologia
FEDERICO NEIBURG
A edição, que agora se publica pela primeira vez em português, tem a felicidade de ter incorporado um breve artigo publicado em 1990, no número 60 de "Oceania", com o título "Encontros com os Tikopias em 60 Anos" -um texto que, ainda que sem desenvolvê-la, sugere uma reflexão sobre as relações entre a biografia pessoal do antropólogo e essas seis décadas na história dos tikopias e da antropologia. Raymond Firth se preocupou em produzir uma compreensão antropológica da dinâmica social e da história. Em 1959, depois de realizar outro período de trabalho de campo prolongado nas Salomon, publicou "Social Change in Tikopia: Re-Study of a Polinesian Community After a Generation", que é -junto com o livro, talvez, mais célebre de Robert Redfield sobre o povoado mexicano de Tepoztlán- um estudo pioneiro sobre o processo de formação do sistema mundial do ponto de vista de unidades sociais de escala pequeníssima. No campo das análises sobre religião, Firth realizou uma detalhada etnografia das missões e do processo de conversão dos tikopias ao cristianismo; nos estudos sobre economia, se preocupou especialmente em compreender a racionalidade do comportamento dos indivíduos diante das transformações do micromundo tikopia. Firth tinha em comum com Malinowski, seu professor, mais do que uma mesma formação original em economia; compartilhavam também uma teoria utilitarista do mundo social e uma teoria individualista da racionalidade da ação social. Apoiado nessa perspectiva, Firth se transformou em um dos principais protagonistas de uma "inovação" promovida pelo "establishment" antropológico do pós-guerra: a criação da "antropologia econômica" que, como sua irmã, a "antropologia política", nasceu de uma confluência de vários grupos de especialistas (incluindo economistas e politólogos), interessados em tematizar a existência de um mundo social dividido em esferas associadas à existência de saberes e de disciplinas. Entretanto essa perspectiva teórica estava presente já em "Nós, os Tikopias", informando um dos principais eixos do livro: a minuciosa análise dos vínculos entre a vida sexual, as relações matrimoniais, as identidades parentais, as formas de residência e da organização do espaço objetivados nas noções de clã e de "casa". A procura dos princípios da organização social nas ações e nos sentimentos individuais é, também, responsável por um elemento que distingue o livro entre as grandes monografias antropológicas do período. Trata-se, na verdade, de um desenvolvimento da etnografia consagrada por Malinowski: um método de construção de dados significativos para a compreensão da organização da vida social nativa, a partir da observação sistemática do efeito da presença do antropólogo na aldeia. Nos capítulos que abrem o livro, Firth mostra como, em um processo que é paralelo ao aprendizado da língua nativa, o antropólogo se "localiza" em um mundo social que o reconhece como alguém de fora. A objetivação de Tikopia em mapas e planos não inclui somente a "casa" ocupada por Firth; ela está construída a partir do ponto de vista dessa "casa" e pressupõe a compreensão das ações e dos sentimentos mobilizados pela sua presença entre os vários indivíduos e famílias tikopias com os quais ele estabeleceu algum tipo de relação. "Nós, os Tikopias" não está incluída entre as monografias antropológicas mais reconhecidas do seu tempo. Nenhuma história da antropologia compararia o livro de Firth com a elegância da análise estrutural dos Nuer, realizada por seu colega Evans-Pritchard. Sua retórica nunca seria identificada com as heterodoxias de alguns dos integrantes da geração dos seus alunos, de origem social mais alta, como Edmund Leach ou Gregory Bateson. Coerente com essas imagens, as representações sobre a figura de Firth tendem a incorporar, transformada em anátema, uma das características associadas a seu mestre Malinowski: as virtudes do discípulo deveriam ser encontradas menos nas suas contribuições teóricas e muito mais na sua sensibilidade como etnógrafo. Talvez por essa razão, o discreto encanto de "Nós, os Tikopia" esteja no fato de ser um livro que convida a uma leitura tranquila, mostrando-nos ao mesmo tempo algumas das faces da vida dos tikopias e uma forma de fazer antropologia -carregada com as inquietações científicas, políticas e éticas de um meio intelectual, como o londrino, fortemente cosmopolita, no qual se reuniam exilados e judeus, jovens oriundos das colônias e formados na metrópole durante, ou imediatamente depois, da Primeira Guerra Mundial entre Estados-Nacionais. Ali, me parece, reside a chave de uma possível leitura contemporânea deste livro: o antropólogo neozelandês qualificou Tikopia como a "ilha-pátria" de um "povo orgulhoso", unido por uma "comunidade de interesses e de sensibilidade", "autoconsciente da sua individualidade, marcada na aparência física, nas roupas, nos costumes". Firth encontrou em Tikopia o cenário perfeito para a realização do ideal do que deveria ser uma verdadeira nação, uma ilha na qual as fronteiras de uma comunidade moral parecem um fato da natureza. Federico Neiburg é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Os Intelectuais e a Invenção do Peronismo. Estudos de Antropologia Social e Cultural" (Edusp). Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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