São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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RES PUBLICA

Livro sobre as origens da república moderna é analisado pelo filósofo Milton Meira do Nascimento


Origens do Republicanismo Moderno
Newton Bignotto
Editora UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4650)
300 págs., R$ 30,00


MILTON MEIRA DO NASCIMENTO

Dez anos após a publicação do seu "Maquiavel Republicano", no qual o autor de "O Príncipe" é indicado como um dos grandes campeões da liberdade, Newton Bignotto nos apresenta agora o resultado mais elaborado do que já esboçara: o desenho daquilo que a crítica especializada no Renascimento chamou de humanismo cívico, a partir de "The Crisis of the Early Italian Renaissance", de Hans Baron.
Acompanhar os meandros da análise de Bignotto, sempre em confronto e aproximação com os autores de referência necessária aos estudos do humanismo cívico, constitui para o leitor uma aventura que beira a vertigem. Não porque o texto seja difícil, mas pelas opções de leitura que nos oferece sobre o tema central de sua investigação: os elementos constitutivos do humanismo cívico mantêm uma relação de continuidade com a tradição medieval ou estabelecem uma ruptura radical com esse passado recente?
Mas, ao decidir-se pela ruptura, Bignotto não assume a posição radical que não vê nenhuma continuidade dos temas medievais no pensamento do humanismo cívico renascentista. Seu grande desafio é o de conduzir-se exatamente na linha de ruptura, o que, por vezes, desnorteia o leitor. Esse desnorteamento tem por objetivo mostrar-lhe as implicações de uma conclusão apressada que pretendesse sugerir ora a continuidade, ora a ruptura, quando está em jogo o fato de que pensar o humanismo cívico é, antes de mais nada, entender o universo de significações que seus mentores produziram na tentativa de forjar uma nova visão e uma nova forma de inserção na vida política. "Nossa opção pela idéia de ruptura é, portanto, uma opção pela idéia de criação e uma recusa de uma continuidade que não explicita seus limites e seus pressupostos filosóficos, pretendendo com isso se refugiar em um campo de pretensa neutralidade metodológica."
Ao demarcar seu lugar em relação à tradição crítica, colocando-se mais ao lado da interpretação de Hans Baron, contra uma gama de autores como P. Kristeller, Paolo Viti, J.M. Blythe, James Hankins, Jerrod Seigel, Quentin Skinner, Bignotto mostra não só ousadia mas amadurecimento intelectual para se apresentar diante dessas ilustres figuras e discutir cada passo de suas argumentações, recorrendo às fontes primárias a fim de justificar suas críticas e incursões ousadas.
Em apêndice, apresenta-nos traduções preciosíssimas dos autores cujos textos analisa. Pela primeira vez em português, temos acesso ao "Familiarum Rerum", de Petrarca, à "Invectiva contra Antonio Loschi de Vicenza", de Salutati, ao "Diálogo para Pier Paolo Vergerio", de Leonardo Bruni, à "Carta para Leonardo Aretino", de Poggio Bracciolini, e a "O Destino e a Fortuna", de Leon Battista Alberti.
Peças expostas para serem visitadas por todo republicano que se preze, se quiser voltar às fontes do ideal moderno da ação política sem tutelas, do primado da vida pública sobre a vida privada, da vida ativa sobre a contemplativa, enfim, se quiser fazer a aposta na ação política como espaço de liberdade, com todas as implicações dessa escolha, inclusive a da construção de um novo ideal de educação para uma nova vida na cidade.
Repassemos alguns momentos dos passos de Bignotto, nos quais explicita os traços mais marcantes do humanismo cívico do Trecento e do Quattrocento italianos, sobretudo o que se desenvolveu em Florença, que assinalariam uma nova forma de inserção na vida política e que são emblemáticos para a compreensão do seu procedimento metodológico.
Como era possível exaltar o primado da vida ativa sobre a contemplativa assim como tantos outros valores republicanos forjados ao longo desse período, sem que os protagonistas dessa transformação não se sentissem divididos, numa certa tensão?
Essa situação incômoda era resultado de sua escolha da Antiguidade clássica como o lugar de redescoberta de um grande arsenal posto à sua disposição para enfrentar as novas exigências do presente, principalmente a de uma cidade como Florença, ameaçada pela dominação estrangeira e que precisava fazer o maior esforço para não se deixar abater pelo fantasma da tirania, inimiga mortal da liberdade.
Voltar-se para a Antiguidade greco-romana implicava renegar não só a tradição medieval cristã mas também sua visão enviezada dos clássicos e bater de frente com aquelas estruturas ainda em vigor. Não era fácil para uma cidade como Florença manter sua independência diante do império e um bom relacionamento com o papado.
Quando nos apresenta o "De Tyranno", de Coluccio Salutati, um dos grandes expoentes do humanismo cívico e que ocupou o cargo de chanceler da república de Florença de 1375 a 1406, Bignotto se debruça sobre o partido que tomou em relação à polêmica criada por Dante, que, na "Divina Comédia", colocou Brutus no inferno. O que, para a tradição republicana, deveria soar como um grande equívoco, pois o suposto herói republicano deveria ter sido absolvido. Ao definir o tirano como aquele que age contra a lei, Salutati não consegue ver em César um tirano, mas um defensor do direito e da lei, o portador de um título legítimo. Salutati concorda com Dante, mas nem por isso deixa de defender o princípio da legitimidade das leis, do respeito às boas leis. "Dado que César, como foi abundantemente mostrado, não foi um tirano pela falta de título, pois o país agradecido voluntariamente o escolheu como príncipe; e nem o foi pela soberba, uma vez que governou com clemência e humanidade, fica claro que seu assassinato foi um crime terrível."
Essas palavras em nada indicam que Coluccio Salutati tivesse renegado seus princípios republicanos. Ao enfatizar o respeito às leis, não estaria pensando a relação república versus monarquia, mas república versus tirania, um regime ilegítimo. O que faz lembrar Aristóteles, que no livro 3º da "Política" apresenta a tirania como uma forma degenerada de um regime constitucional legítimo, a monarquia.
Segundo Bignotto, para Salutati "a tirania não era, portanto, jamais um bom regime, pois no máximo ela vem coroar a decadência de um povo. O cesarismo, ao contrário, foi uma solução cabível dentro do quadro teórico proposto por Salutati, pois mantinha a referência essencial de todos os regimes legítimos: o respeito às leis".
A novidade aqui está no tema da corrupção dos regimes, o que não fazia parte do quadro da reflexão medieval sobre a política, em que predominava ainda a visão agostiniana, segundo a qual no mundo da política não havia muita coisa a fazer, por causa da natureza já corrompida da história secular dos homens. Salutati, por sua vez, inscreve a corrupção dos regimes no plano da história humana autônoma, resultado da ação política.

Florença e a liberdade
Ligada à questão da legitimidade das leis e da corrupção dos regimes está a concepção republicana da liberdade. O texto de referência dessa vez é o "Elogio da Cidade de Florença", de Leonardo Bruni, outro humanista que ocupou a chancelaria de Florença, mas já no período da dominação da família dos Médici, no qual havia pouco da república da época de Salutati.
Nesse "Elogio", "o que chama a atenção é o fato de que, ao se referir à cidade como um sujeito de direito e ao pensar sua organização política, o autor não se sinta compelido a apelar para uma fonte superior de legitimação. Florença busca sua identidade em raízes que podem ser descobertas na história, e isso tem um peso muito grande no momento em que seus homens políticos devem tomar decisões quanto aos rumos a serem seguidos".
O que importa é reivindicar a soberania da cidade diante do império e contra qualquer forma de dominação. Para firmar-se como corpo político independente, a comunidade precisa criar suas próprias leis, autogovernar-se. Cada cidadão, ao desenvolver a atividade pública, ao valorizar sua vida ativa, contribui para a preservação dessa liberdade que é ao mesmo tempo sua e da cidade.
Numa passagem da "Invectiva contra Antonio Loschi de Vicenza", resposta ao panfleto no qual este atacava violentamente os florentinos e defendia a política expansionista de Milão, Salutati já apresentava essa imagem da liberdade que aos poucos vai-se firmando. "Veremos, disseste; todavia vês e verás a força mais que romana e a constância do povo florentino na defesa da dulcíssima liberdade, que, como foi dito, é um bem celeste que supera toda riqueza do mundo.
Todos os florentinos têm no ânimo o firme propósito de defendê-la como à própria vida, mais ainda do que com a vida, com as riquezas e com a espada, para deixar aos filhos essa ótima herança que recebemos de nossos pais, para deixá-la, com a ajuda de Deus, saudável e incontaminada." A liberdade dos cidadãos, pautada pela liberdade da cidade, será entendida como exercício da justiça e promulgação das leis num espaço de concordância, só quebrado pela guerra civil, outro inimigo da liberdade.
Essa concepção de liberdade política vincula-se diretamente ao princípio que estabelece o primado da vida pública sobre os interesses particulares. Tema tão caro a Cícero, exposto em "Dos Deveres", e que não passou desapercebido a um outro humanista cívico, o autor de "Vita Civile", Matteo Palmieri.
Para este, "o fundamento de toda república está na união civil, e para conservá-la é necessário conservar a companhia e a convivência dos cidadãos. Quem disso se distancia e trabalha pelo bem dos particulares e abandona os demais dissemina na cidade escândalos e discórdias graves das quais, pela divisão dos cidadãos, nascem guerras internas".
Para desempenhar bem seu novo papel, o cidadão deveria receber uma formação muito especial. Deveria ser versado nos "studia humanitatis", que incluíam o estudo das letras clássicas, da gramática, da retórica, da história, da poesia e da filosofia moral, ao lado das disciplinas do "quadrivium" medieval, aritmética, geometria, música e astronomia, agora relegadas a um segundo plano.

O papel da retórica
Nessa formação, convém destacar o papel da retórica, disciplina que sofre uma transformação significativa em relação à tradição medieval. Doravante, com Petrarca, "o elogio da eloquência implicava a redescoberta do espaço cívico e de sua importância para a vida dos homens e com isso uma mudança na maneira de se encarar a retórica". Da "ars dictaminis" -que consistia na aprendizagem dos instrumentos para bem escrever cartas, técnica necessária para os que se preparavam para ocupar cargos públicos- até uma disciplina cujo objetivo principal é a preparação para bem expressar-se no espaço público, lugar privilegiado para a defesa do bem público, há uma distância enorme, embora possam ser vistos, já nos manuais da "ars dictaminis", alguns ingredientes que prenunciam essa nova disposição.
Na análise da retórica, Bignotto nos mostra o quanto se pode perceber de continuidade e ruptura em relação ao passado medieval e à Antiguidade. Mais uma vez, é a Cícero que os humanistas cívicos recorrem.
Discurso bem articulado, espírito de invenção, organização do material, boa formulação, memorização e apresentação são os elementos indispensáveis para o cidadão na nova ordem republicana. Sem eles a vida ativa não funciona. Segundo Bignotto, "o gênero retórico é posto à disposição da enunciação de uma teoria política, que pretendia ser ao mesmo tempo adequada a certas cidades e a todas as que pretendessem alcançar os mesmos benefícios derivados da adoção de um regime republicano".
É com a força máxima da eloquência que Salutati se dirige a Antonio Loschi como "fera terrível", "ferocíssima besta", "raivosa e estultíssima besta", a fim de expô-lo à execração pública, pois não era possível aturar o insulto de alguém que justificava os anseios imperialistas dos milaneses sobre Florença.
Depois de exaltar a grandeza da cidade em todos os seus aspectos, de acordo com as regras da boa retórica, o chanceler florentino fecha sua "Invectiva" nos seguintes termos: "Uma vez que nesse mundo corruptível tanta grandeza é impossível, envergonha-te, ó mais sujo dos sujos, esterco e excremento dos lombardos (...), por chamar de escória da Itália aos florentinos, que são a verdadeira e única honra da Itália".
"Origens do Republicanismo Moderno", além de nos proporcionar um grande prazer de leitura, impressiona pelo rigor, erudição, clareza, pelo estilo de chamar a atenção do leitor para as nuances de cada passo da reflexão, pela coerência metodológica mantida até o fim e consagra o seu autor como um dos mais importantes conhecedores do humanismo cívico renascentista.

Milton Meira do Nascimento é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp/Nova Stela).


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