São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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Os habitantes do mar


A Faina, a Festa e o Rito - Uma Etnografia Histórica sobre as Gentes do Mar (Séculos 17 a 19)
Luiz Geraldo Silva
Papirus (Tel. 0/xx/19/272-4500)
256 págs., R$ 32,00


MARINA DE MELLO E SOUZA

"A Faina, a Festa e o Rito", de Luiz Geraldo Silva, nos introduz ao universo da navegação e dos homens que dela participaram, abordando três séculos e amplos espaços. O autor inicia seu estudo considerando as características da navegação européia por volta do século 15, os instrumentos e embarcações utilizados, centrando seu foco nas feições que assumiu em Portugal e na América portuguesa. Aventura de grande risco, uma viagem à Índia levava de seis a oito meses, numa rota cheia de histórias de naufrágios, e necessitava de homens dispostos a enfrentar as duríssimas condições da travessia dos oceanos.
O acanhamento demográfico do pequeno reino que se expandia em grande império, aliado aos terrores da navegação oceânica, levou ao recrutamento forçado de tripulações, entre homens habituados aos trabalhos marítimos e entre camponeses que dele nada entendiam. Muitos destes aportaram na América portuguesa, marinheiros que abandonaram a carreira das Índias e retornaram à antiga ocupação de pescadores, mas não à terra natal.
A esses lusitanos somaram-se nativos, escravos utilizados na pesca, na construção, manutenção e manejo de embarcações, e que trouxeram consigo conhecimentos incorporados às atividades exercidas em rios e no mar. E aos índios e portugueses juntaram-se, a partir do final do século 16, os africanos, que ocuparam espaço crescente na economia e na sociedade brasileiras até o século 19.
Da mesma forma que no século 17 mudou a composição da mão-de-obra dos engenhos e plantações de cana, com a intensificação do tráfico de escravos africanos, estes também passaram a predominar nos trabalhos ligados à pesca e à navegação. E como a reposição do trabalho escravo se fazia mais pelo tráfico do que pela reprodução natural, havendo altos índices de alforria, o crescimento da população negra, forra e livre, levou ao aumento da sua presença nos trabalhos marítimos, ou entre os homens envolvidos com a "maritimidade", neologismo que o autor encontrou para sintetizar o universo sobre o qual se debruça.
Parte importante do seu livro é dedicada a trazer à tona o lugar dos africanos e seus descendentes nessas atividades, destacando a presença maciça de pescadores, canoeiros e marinheiros de origem africana, escravos, forros e livres trabalhando lado a lado, partilhando uma mesma cultura, integrando corporações de trabalho nas quais hierarquias eram nitidamente traçadas, mantendo relações de solidariedade que ajudavam os escravos fugidos a desaparecerem entre seus semelhantes.
A pesquisa empreendida resgata a presença de africanos envolvidos na pesca e na navegação em Portugal, assim como menciona suas atividades na África, pescando, comerciando pela costa, percorrendo os caminhos das bacias hidrográficas. Tal postura, que busca conhecer as matrizes africanas das contribuições que recebemos dos escravos negros, começa a ganhar terreno na historiografia brasileira e deve ser louvada.
Mas o pouco conhecimento acerca dos povos africanos que ainda predomina entre nós, permite que o autor se engane ao localizar os vilis (importante grupo banto, radicado em Loango e que mercadejava na bacia do rio Congo fazendo a conexão entre o lago Malebo e a costa), na região do rio Senegal, vinculando-os aos jalofos, diulas e mandingas, com os quais nada tinham a ver.
Percorrendo um longo período de tempo com sua minuciosa pesquisa documental e ampla discussão bibliográfica, o autor se deteve nos processos de transformação que envolveram as pessoas, cujos modos de vida e trabalho busca recriar por meio de uma etnografia histórica. Passando constantemente do particular para o geral, das situações nas quais os personagens presentes nos documentos se envolveram para os grandes processos ocorridos ao longo dos 300 anos abordados, o autor persegue a dinâmica da história e a conexão entre os indivíduos e os determinantes do meio em que vivem. Nessa perspectiva é que ele conclui o livro, mostrando como, no Brasil Império, quando se buscava construir um Estado e uma marinha nacionais, os convocados foram os homens envolvidos nas lides fluviais e, principalmente, marítimas.
A transformação em curso levava não apenas ao recrutamento forçado daqueles que detinham os saberes necessários à navegação mas a um controle sobre o próprio processo de trabalho. É nesse contexto que os grupos dominantes da sociedade em mudança passaram a criticar o desperdício de um tempo gasto com momentos lúdicos e de lazer.
Livro portador de pesquisa de fôlego e perspectiva original, tem a lhe atrapalhar a opção do autor por citações longas, algumas utilizadas mais de uma vez em diferentes momentos do texto. O material trabalhado é sem dúvida fascinante, mas a leitura seria mais prazerosa se as informações nos fossem passadas pelo correr da narrativa. A valorização extrema dos documentos algumas vezes chega a comprometer as possibilidades de análise que oferecem, pois ao ficar muito preso a eles o autor quase os deixa falar por si próprios, reduzindo o espaço da interpretação.
Acrescente-se ainda que o recurso excessivo às citações, além de interromper o ritmo da leitura, acaba por minimizar o impacto que trechos dos documentos podem operar sobre o espírito do leitor.
Um outro ponto de reparo é que, se por um lado Luiz Geraldo Silva faz alguns desvios de seu tema, como uma digressão acerca do crescimento urbano do Recife (que não deixa por isso de ser interessante) ou do tipo de movimento que ocorria naquele porto colonial (mostrando a partir de fontes primárias que o tráfico de escravos era assunto de pernambucanos e baianos diretamente com a Costa da Mina e Angola), por outro ele anuncia no título assuntos que não são desenvolvidos ou nem sequer tocados.
A faina certamente está contemplada, sendo o eixo condutor da narrativa. A festa que menciona, ligada à escolha de um "governador dos canoeiros" e realizada no dia do santo padroeiro da comunidade, é abordada em duas páginas, havendo rápidas menções a festas em duas outras passagens. Quanto ao rito, fechamos o livro sem ouvir falar nele. Se ali está, é de maneira tão discreta e silenciosa que não percebemos sua presença. Mas a despeito da inadequação do título ao livro, não há dúvida de que saímos muito enriquecidos da sua leitura.

Marina de Mello e Souza é professora do departamento de história da USP.


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