São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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As estatísticas da via Ápia


Ce que Je Sais de Vous... Disent-ils
Gérard Miller
Stock (Onde encomendar: Livraria Francesa, Tel.0/xx/11/231-4555)
192 págs., 92 francos


RENATO JANINE RIBEIRO

Gérard Miller, psicanalista lacaniano, publicou um livro sobre a astrologia. Quando o recebi, abri prontamente o capítulo de meu signo, que me pareceu bem escrito e com humor. Só estranhei a estatística segundo a qual 92% dos piromaníacos são de meu signo. Estranhei mais ainda, quando li o signo de uma pessoa querida, saber que 92% dos piscianos executados na rebelião de Espártaco nem reclamaram de seu cruel destino. O livro é inteligente; mas como teria o autor chegado a esses dados?
Se começo pela anedota de minha recepção pessoal dessa obra, é porque ela demonstra o acerto, a grande idéia de Gérard Miller. Ele afirma que a astrologia é, dos discursos atuais, o que melhor dá ao destinatário a convicção de que está sendo diretamente visado pelo emissor. E é essa posição de destinatário do destino o que ele trabalha.
A chave está já no prefácio, porém. Ali reconhece Miller que é complicado calcular o mapa natal. Por isso, sugere um método mais simples: ler o livro inteiro, as passagens em que me reconheça. A lápis, porque daqui a alguns meses devo reler e sublinhar os trechos com os quais então me identificarei. É claro, diz, que não serão os mesmos da vez anterior.
Com isso, muda por completo o que significa a astrologia. Lembremos que ela não é, ao contrário do que pensa boa parte de sua clientela, que também frequenta o tarô ou o "I Ching", uma prática de adivinhação. Ela afirma ser uma ciência, procede por cálculos matemáticos das posições dos astros, e sua prática não requer nenhuma iniciação ou invocação religiosa. É evidente que, ao usar a cosmologia ptolomaica e ao articular os astros com a mitologia grega, a astrologia se afasta da ciência -mas, de todo modo, ela parte de uma causalidade acirrada.
Essa causa básica, para a astrologia, é a hora do nascimento. Mesmo na astrologia mais requintada, a derivada de Jung -que largou as previsões pelo exame da personalidade e assim eliminou a adivinhação, tornando-se prática auxiliar da análise junguiana-, os traços da pessoa são derivados do instante em que ela nasceu. O que torna rica essa análise é a combinatória que ela permite, pelos aspectos dos astros entre si, bem como suas posições nas casas e nos signos. E o que a torna sutil é o vínculo com a mitologia e com as teorias de Jung. Mas, na sua base, está um determinismo que escandaliza os cientistas, porém justamente porque pretende, a seu modo, ser ciência.
O que faz Miller? Ele solapa por completo essa sequência, supostamente científica, que subsume os traços da personalidade a um certo número (12) de elementos de base. Em vez disso, pulveriza esses traços. Toda raiz, causa ou substantivo (signos, casas, planetas) passa a segundo plano, e se torna relevante a fina análise de cada conduta ou "ethos". Mas o importante é que esses traços, assim analisados, não remetem mais a nenhuma causa, a nenhuma permanência.
Dá para ver que, assim, a astrologia deixa de ser astrologia? Não há mais causalidade ou estabilidade. A cada tantos meses, mudo de pele. O que a astrologia ainda me proporcionará é um amplo estoque de descrições -um vocabulário do humano. Mas esse vocabulário não remete mais a nenhuma essência. Não sou mais sagitário, poderia dizer Miller se sua língua tivesse a riqueza do português diante dos matizes do ser, que compensa, largamente, todas as nossas eventuais deficiências: estou sagitário. Passarei, passearei, nem mesmo pelos signos, mas por pequenas "paroles" de cada signo (imaginando que cada um deles seja uma "langue", nos termos de Saussure).
Eis a revolução irônica que Miller efetua no uso da astrologia pela profissão "psi". Há mais, porém: a percepção de que com a astrologia nos sentimos o que chamei de destinatários de nosso destino.
Vivemos num mundo em que os discursos são genéricos e imprecisos. Ouça um político: dificilmente sentirá que ele se dirige especificamente a você. É justamente porque a mídia jamais se dirige só a mim que me torno massa e perco o caráter precioso de minha individualidade.
Ora, esse anonimato é insuportável. Não é à toa que procuramos, então, modos de nos sentirmos únicos. A popularidade dos pregadores religiosos se deve a isso: falando em nome e em lugar de Deus, podem dar ao ouvinte a convicção de que é o destinatário especial daquele discurso. Mas, num plano talvez mais laico, a astrologia pode cumprir também esse papel.
Mas não é só, como diz Miller, que o astrólogo me diga "eu te conheço" e ofereça um discurso que alia sua total ignorância de mim (de fato) e seu completo conhecimento de meu íntimo. O importante, acrescentaríamos, é ser este o único discurso que uma pessoa culta -e mesmo laicizada- de nosso tempo possa aceitar como uma mídia personalizada para ela. Junta-se assim a sensação de ser único e a convicção de que todo um sistema cósmico -ou astral- se une na minha direção. Como, além disso, a astrologia junguiana é otimista (tudo, até os aspectos mais atrabiliários de Saturno, concorre para meu crescimento interno), a máquina do mundo inteira me cumula de significação.
E aqui está o ponto em que esse lacaniano, talvez o único de sua filiação a ler astrologia, obviamente diverge dos junguianos. Quando alguns destes se interessam pela astrologia, é óbvio que excluem dela tudo o que for previsão, fatalismo ou determinismo, para se interessarem pela detecção dos traços da pessoa. Mas Miller vai adiante: o que ele propõe é pulverizar essa identidade que nos viria do cosmo.
É apostar decididamente na linguagem da astrologia, como uma mitologia aplicada, que nos permite sintonizar de maneira fina nossos sentimentos, mas recusando qualquer causalidade de base, ou seja, o engate cósmico.
Eliminando os últimos apelos da astrologia à ciência (a causação pela hora do nascimento), ele a libera como uma linguagem sem permanência -que se consulta com lápis na mão. E talvez seja essa impermanência do mito que permita o bom humor, a leveza do texto e a constante invocação de estatísticas sem pé nem cabeça. Você acredita que algum cronista romano foi perguntar a cada crucificado da via Ápia qual era o seu signo?

Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia política na USP e autor, entre outros livros, de "Ao Leitor sem Medo - Hobbes Contra seu Tempo" (Ed. UFMG).


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