São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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Denúncias e vitupérios


Poesias da Pacotilha (1851-1854)
Anônimos
Organização e introdução: Mamede Mustafa Jarouche
Martins Fontes (Tel. 0/xx/11/239-3677)
178 págs., R$ 24,00


CILAINE ALVES CUNHA

"Poesias da Pacotilha" compõe-se de uma seleção das sátiras publicadas pelo jornal de oposição liberal, o "Correio Mercantil", entre 1851 e 1854. Destituída do poder desde fins da década anterior, teve então cancelada a reprodução dos atos oficiais do governo, restrita a partir daí ao concorrente e conservador "Jornal do Comércio". Nesse momento, o periódico liberal põe em prática uma de suas definições para a imprensa brasileira: em defesa de seus interesses pelos dividendos dos cofres públicos, ela ora se põe a favor da monarquia e da moderação, ora, quando contrariada, torna-se republicana e "revolucionária".
Veiculado diariamente, o jornal dos liberais, com o cancelamento das publicações oficiais, transmuta-se, aos domingos e segundas, no suplemento satírico "Pacotilha", a mesma em que Manuel Antônio de Almeida publicou originalmente as "Memórias de um Sargento de Milícias". Inéditas desde então e só agora resgatadas, o valor dessas sátiras possui duplo vetor: ressaltam usos e práticas literárias inerentes ao período romântico e deixam evidentes as manobras econômicas e políticas por meio das quais a elite dominante, no Brasil, se mantém e se perpetua no poder.
A sátira, nos moldes antigos, foi bastante praticada durante o século 19, pelo menos até a década de 1860, quando, seguindo a tendência da modernidade literária, incorpora-se aos estilos médio e sublime. Além do discurso melancólico, do amoroso e do nacionalista empenhado, a estética romântica produziu também um estilo de dissolução de seus próprios princípios, desenvolvendo, com Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Luiz Gama etc., peças paródicas cujos alvos são alguns motivos sacralizados no horizonte dos letrados da época. Ainda que desaparecido do cânone atual, o privilégio então concedido ao gênero satírico sobressai-se pela reprodução, em "Poesias da Pacotilha", de algumas tópicas correntes entre estes autores.
O leque dos motivos românticos aí satirizados toma por alvo o tipo da virgem pálida e imaculada, transformada, de verso a outro, em mulher dissoluta que "da vida só amando à escada corre, vive só para amar, amando morre"; mas também a imagem da lua cheia como estímulo à inspiração de um poeta-estudante que, dessacralizando o elemento natural e o tipo romântico, lamenta a perda dos favores e sentimentos de uma dama feia e burra, mas dotada de prestimoso poder econômico.
Em outra maledicência que contradiz a noção de que o "gênio" ocupa alta posição no registro da memória de seu país, a tópica do nariz inflado encena indivíduos que se lançam como "heróis nacionais", empregando aquele amontoado de "frases feitas, as locuções convencionais e as fórmulas consagradas" (celebrizadas no medalhão de Machado de Assis), em defesa de um patriotismo que, na prática, funciona com valor de troca simbólica, instrumentalizando a ocupação de cargos públicos.
O tipo Pinóquio pode alcançar também o político conservador, habitante do anagramático país Zabril, cujo "caráter" típico é o do lambe-botas que, em defesa dos interesses de terceiros e dos próprios, nega seus valores, idéias e sua própria identidade, adotando uma oratória tal que, dependendo do montante recebido, pode até transformar Portugal em "pai" de Roma.
A produção do sistema satírico definido nessa "Pacotilha" segue os princípios da retórica, distanciado-se dos preceitos românticos que o concebem como exercício da reflexão crítica e de negatividade. Definitivamente apeada do poder, a oposição liberal, nesse suplemento, propõe a produção do gênero não como militância discursiva da subversão, mas como restauração da ordem liberal. Diversas sátiras procuram atingir o desfuncionamento dessa ideologia, postulando um liberalismo "stricto sensu".
Assim, o mesmo liberalismo moderado que, no período conturbado da Regência, alinhou-se aos conservadores para aplacar sua facção dita "radical" e promover o golpe da Maioridade é o que, na "Pacotilha", toma d. Pedro 2º como "Deus menino,/ Cavaleiro da ordem da poeira" e como tirano, numa encenação que pressupõe aspirações antimonarquistas. Denunciando a disseminação da corrupção pela magistratura, pela imprensa conservadora e entre os deputados, algumas sátiras propõem destituir o "salvador" e solucionar as mazelas do país, fazendo com que o legislativo seja ocupado pelo ladrão comum: "Abre-se a cadeia velha;/ Quem quiser ser deputado/ Vá logo lugar tomando,/ Vá dos negócios tratando/ Para salvação do Estado".
Boa parte dessas poesias de circunstância toma por objeto a eleição de 1852, data da Conciliação. É de esperar que, nelas, a oposição que, entre seus membros, contava com agentes ligados à economia escravista de exportação e importação, e que já havia debelado de seu interior a facção pleiteante do sufrágio universal, não procure questionar o sistema eleitoral então estabelecido. Dirige antes as denúncias à irregularidade dos pleitos e à prática do clientelismo na cooptação dos eleitores, pressupondo, com isso, a legitimidade de um sistema baseado no voto indireto e na exclusão da maioria da população.
Pela etimologia do nome de batismo desse suplemento, é possível supor a concretização dos fins a que ele se propunha.
Conforme as indicações do organizador da coletânea, o suplemento se autoconcebe como veículo de circulação de mercadorias, os "enfardamentos" ou as denúncias e os vitupérios, recurso este que procura significar o processo de mercantilização da sociedade e da cultura, inclusive nomeando seu leitor de "freguês". Selando essa autodestinação, em 1854, quando situação e oposição, conciliadas, já haviam consolidado a centralização do país e a política imperial, Francisco Otaviano (provavelmente sob orientação de Joaquim Nabuco) assume a direção do "Correio Mercantil", extingue a "Pacotilha", e seu dono, Muniz Barreto, é agraciado com a construção de uma estrada-de-ferro na Bahia.
O conjunto completo de tópicas e costumes representados em todos os números do suplemento é bem explorado na introdução que ainda recupera diversas referências configuradoras do riso, perdidas no tempo. Mas esse conjunto encontra-se escassamente reproduzido pela coletânea. Em alguns casos, a reprodução de apenas uma única sátira dificulta o reconhecimento da tópica e mesmo de costumes. O ideal seria que a coletânea fosse complementada por um segundo volume.


Cilaine Alves Cunha é professora no departamento de teoria literária e literatura comparada da USP.


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