São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Poeta e tradutor


Metamorfoses
Ovídio
Tradução: Bocage
Texto latim-português
Introdução de João Angelo Oliva Neto
Hedra (Tel. 0/xx/11/3097-8304)
223 págs., R$ 25,00


JACYNTHO LINS BRANDÃO

Em recente congresso de tradutores, causava espanto não só que nos setecentos já se refletisse sobre a tradução, como eram desconhecidos do público o nome de Cândido Lusitano e sua famosa versão da "Arte Poética", de Horácio, de 1758. Uma reação fácil seria lamentar a situação dos estudos de literatura portuguesa entre nós. O que ressalta, todavia, é quanto continuamos devedores do romantismo, que mergulhou em névoa o século 18, como época de pouca invenção e muita imitação, de que raros poetas se salvam, para não falar nos poetas tradutores, cuja obra se considera menor. Só esse estado de coisas já garante a oportunidade da reedição dos versos de Ovídio vertidos por Bocage, em belo volume, capaz de propiciar o redescobrimento de um século e de um poeta ilustres.
Com efeito, afirmava Teófilo Braga, "o povo português só conhece o nome de dois poetas, Camões e Bocage, não porque repita os seus versos, mas porque de Camões sabe a lenda do seu amor pela pátria, e de Bocage repete uma ou outra anedota picaresca". Ainda assim, o mesmo crítico vê no último "um gênio abortado", por cultivar a imitação e ter "uma falsa concepção da poesia", de que é prova sua versão das "Metamorfoses".
Tudo fruto da "férula violenta da gramática latina", que "o aleijou intelectualmente", impedindo-o de "apaixonar-se pelas novas disciplinas das ciências naturais introduzidas no ensino pelas reformas de Pombal". Como se vê, não é só por se conhecer mais o Bocage das anedotas que sua obra foi esquecida, mas também por juízos que desvalorizam nela tudo que é setecentista, salvando só o que parece "pré-romântico". Não cabe aqui julgar o crítico e seus valores. De fato, o século 19 marca uma mudança de gosto tão profunda, que torna difícil, para nós, a leitura dos poetas precedentes. Quem perde com isso? Sem dúvida nós, o que justifica o esforço de recuperação.
Começar pelas traduções pode ser um bom caminho, em vista do interesse que, nas últimas décadas, desperta essa arte. No livro em causa, o ensaio breve e erudito de Oliva Neto serve como guia para o leitor, estabelecendo argutas relações entre a "tradução poética no século 18" e as correntes estéticas em vigor. Percorrem-se as "receitas", isto é, as poéticas aparecidas em Portugal sob o impulso dos comentários de Verney, no "Verdadeiro Método de Estudar", de 1746, a que se segue, dois anos depois, a publicação da "Arte Poética" de Cândido Lusitano, a primeira "escrita no nosso idioma". Em seguida, aborda-se o traduzir, distinguindo-se entre a imitação, a reelaboração e a tradução propriamente dita. Enfim, comentam-se as opções de Bocage no trabalho com texto de Ovídio.
Ora, quase um terço do que ele compôs são traduções de vários gêneros, sempre em versos (nisso seguindo o preceito de Filinto Elísio: "Traduções de poetas em prosa é menos vistoso que figuras de tapeçaria vistas pelo avesso"). Muito desse trabalho foi feito sob encomenda, para garantir-lhe a subsistência -o que ele chamou "lucro mesquinho de vigílias duras". O que só prova como traduzia com a destreza com que poetava, fato já admirado pelos contemporâneos, como se lê nos versos que Ribeiro dos Santos lhe dedica, equiparando-o a Ovídio: "O poeta e o tradutor/ tanto entre si se ajustaram/ que parece que eles ambos/ numa só lira tocaram".
Efetivamente, poucos séculos valorizaram tanto a tradução como o 18, o que a moda neoclássica, em princípio, justifica. Mas não se pode esquecer que isso se deve também à função importante que o Iluminismo atribuía à poesia. Os longos "poemas didáticos" vertidos do francês por Bocage ("Os Jardins", de Mr. Delille, e "A Agricultura", de Mr. de Rosset) são correlatos das enciclopédias e produtos da Ilustração. Se é fácil perceber a relevância da versão de obras destinadas à difusão de saberes aplicados, não parece tão evidente por que se traduzem os clássicos: moda, inércia ou atraso?
Convenha-se que a história literária que opõe classicismos a anticlassicismos não passa de simplificação, visando a justificar a novidade do romantismo e das estéticas em que o valor é a originalidade: contra a imitação, a criação "ab ovo". Ora, numa cultura multinacional, plurilingue e de longa duração como a nossa nada é tão simples. A tradição serve a múltiplos usos e as traduções é que tornam possível reler os antigos, tanto enquanto se vertem para várias línguas, quanto para gostos variados.
Assim, integram a enciclopédia da cultura, sendo compreensível que o século de Bocage lhes atribuísse tanto valor: "Traduzi, alunos de Apolo!" -exortava ainda Filinto- "Não cuideis que esse mérito é mesquinho. Outro não teve o latiníssimo Plauto, nem Terêncio, que, com pouca alteração das comédias gregas, nos deixaram obras imortais para modelo".
Bem observou Maria Helena da Rocha Pereira como o legado clássico se manifesta de três modos em Bocage: na imitação de idéias e fórmulas; em obras originais de sabor clássico, como as "Metamorfoses Originais"; nas traduções em si, em que se destacam as de Ovídio. No fundo, são variações de grau, pois "o gramático sem musas" censuraria, nas últimas, acréscimos e faltas (percepção dificultada na presente edição, por não terem sido postos os dois textos lado a lado).
Mais digno de nota, porém, é que Bocage não tenha vertido o original inteiro, elegendo o que lhe agradava. E que recrie cada episódio como um poema novo e autônomo. Enfim, que tenha composto sua própria "Metamorfose", com a história de Areneo e Argira, desconhecida nas fontes antigas.
Tudo isso ilustra como a poeta e tradutor o mesmo fogo anima: "Verter com melodia, ardor, pureza/ o metro peregrino em luso metro/ próprio tornando, e natural, o alheio". Pena é que o volume ora publicado não inclua também o episódio de Areneo, sua "tradução" mais "original" (isto é: sem original), em que ele emula com o poeta antigo: "Estro de Ovídio, seguirei teus vôos/ se não me é dado emparelhar contigo". Não parece que os leitores lhe recusaram tal emparelhamento, a crer-se no que escreveu seu contemporâneo e rival José Agostinho de Macedo: "Tu falaras assim, se Ovídio foras,/ ele falara assim, se o Tejo vira".

Jacyntho Lins Brandão é professor de grego da UFMG e autor, dentre outros, de "A Poética do Hipocentauro" (Editora da UFMG).


Texto Anterior: Anelito de Oliveira: Pobre Alphonsus!
Próximo Texto: Luciano Trigo: Aceitação e evasão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.