São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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Pobre Alphonsus!

Toda a poesia do solitário de Mariana


Poesia Completa
Alphonsus de Guimaraens
Organizadores: Alphonsus de Guimaraens Filho, Afonso Henriques Neto e Alexei Bueno
Nova Aguilar (Tel. 0/xx/21/2537-8275)
652 págs., R$ 90,00


ANELITO DE OLIVEIRA

A presente edição é a quarta tentativa de reunir toda a poesia de Alphonsus de Guimaraens. A primeira foi a do modernista João Alphonsus, filho do poeta, em 1938, com o volume "Poesias", trabalho dirigido e revisto por Manuel Bandeira. Em 1955, deu-se a segunda tentativa, com Alphonsus de Guimaraens Filho publicando a segunda edição, revista e aumentada, das "Poesias". Em 1960, aparece a "Obra Completa", também organizada por este último, apresentando, além dos trabalhos então já conhecidos, poemas e crônicas escritos na mocidade, bem como a prosa de "Mendigos".
Esta nova edição traz correções e acréscimos, como o soneto 36, do livro "Escada de Jacó", um dos muitos trabalhos que o simbolista não chegou a ver publicado e que teria sido encontrado no segundo número, aparecido em 1901, da revista "Rosa-Cruz", conexão místico-midiática do simbolismo nacional estimulada por leituras do francês Joseph Péladan, fundador da seita Rosa-Cruz. "Poesia Completa" é oportuna: traz à lembrança o centenário de nascimento do seu primeiro organizador, o contista João Alphonsus (1901-1944), e marca também os 80 anos da morte de Alphonsus de Guimaraens, convidando-nos a repensar seu gesto num momento em que a cultura e suas práticas estético-literárias estão completamente desvinculadas daquele agonístico horizonte vislumbrado por sua microgeração.
Em relativa oposição a uma abordagem presa a efeitos e desinteressada por causas, como não raro costuma ser a da poesia com pendor esteticista, hoje é possível dizer que não se trata de um gesto simbolista tout court, mas, quando muito, de um gesto afim do simbolismo.
O ideal simbolista apresenta-se como uma provocação à sensibilidade do poeta, uma vontade de desequilíbrio, de "desregramento dos sentidos", para citar Rimbaud, que, no final das contas, acaba sucumbindo ao equilíbrio exigido pela lógica civilizacional.
Essa vontade não é privilégio apenas do "solitário de Mariana", apresentando-se até em parnasianos mais sensíveis, como Raimundo Correia. Mas a submissão ao equilíbrio, o desejo de não desfigurar a "imitatio", de forma que sujeito e mundo se mantenham em harmonia, coloca-se como algo muito próprio de Alphounsus, de um poeta que se interessa, especialmente, pela Antiguidade clássica, romana e grafada em latim.
Mais do que interesse, pode-se falar numa verdadeira obsessão pelo mundo romano, enquanto fonte do catolicismo, com o autor começando pela latinização do próprio nome: Alphonsus. Dir-se-ia que não queria apenas ser lido como um poeta da Antiguidade, a exemplo do Baudelaire de Benjamin, mas também escrever como tal, assumindo um modo de existir radicado em outro tempo, não exatamente passado, mas apenas barrado pelo presente. Escrever de dentro da angústia, não exclusivamente daquela "anxiety" bloomiana, literária, mas da angústia de existir, humana, própria de quem não consegue sair para fora de si, "delirar".
Paradigmática dessa situação é a coletânea "Pulvis", em que este vocábulo tem o sentido primário de poeira, pó, cinza, o que aponta para a dimensão "décadent" tão característica da sensibilidade alphonsina. Mas "pulvis" também alcança ali o sentido figurado de combate, que, sem dúvida, coloca-se como o mais plausível. Esse combate é a evidente repercussão de uma busca da completude perdida, nunca mesmo realizada, certamente impossível de se realizar -um ideal romântico, de religação, de "religare", enfim, de religião.
Esta, se o poeta a ela se apegasse como um mero religioso, colocaria um fim a esse combate, mas, como viu Jackson de Figueiredo em 1925, Alphonsus de Guimaraens "é mais um grande poeta, um grande artista, do que uma grande alma religiosa". Não se "religa" a Deus, não se conforma, porque seu conflito, a razão pela qual combate, não é de ordem apenas espiritual, mas também material -um amálgama: alma-corpo.

Floresta de símbolos
Sem dúvida, a maneira como o poeta mineiro busca a completude, operacionalizando situações de incompletude, é algo estimulado pelo pressuposto simbolista de que as infinitas partículas do real são indissociáveis. Tudo é fundamental na "floresta de símbolos", qualquer partícula é indispensável por contribuir de forma decisiva para a configuração do real e, assim, qualquer perda se torna um evento dramático que coloca o eu lírico em crise.
Certamente Alphonsus viu na proposta estética do simbolismo um horizonte adequado para dar vazão à imagem da perda com que se deparara ainda na aurora da mocidade: sua prima-noiva Constança, filha do poeta Bernardo de Guimaraens, morre, quase adolescente, em dezembro de 1888.
O poeta, num movimento criativo sem precedentes na literatura brasileira, parte desse fato para ler a cultura que o fundamenta, esse espaço-tempo em que a morte é, paradoxalmente, coletiva, dizendo respeito a muitos, seus cultores. Assim sua escrita se move, gradativamente, da esfera do vivente (a noiva, a musa, o nome) para a do viveiro (a igreja, o discurso, a imagem), enfim, do que é restrito, determinado, para o que é irrestrito, indeterminado.
Ao contrário do que se poderia esperar, portanto, Alphonsus promove uma despersonalização, demarcando uma ampliação do poético que, no limite, termina por afirmar algo como um mais-aquém do Romantismo, daquele instante em que o sujeito levanta sua voz acima do mundo, totalmente liberto.
O poeta parece orientar-se, em termos estritamente literários, no sentido de resgatar o elo perdido com o sensível neoclassicismo dos sonetos de Cláudio Manoel da Costa, aquele eu perturbado pelo "infame ruído".
Não se trata, claro, de um legatário passivo, um epígono, mas sim de um "intercessor", como diria Deleuze, de um leitor-escritor disposto a desarmar o que foi armado, como assinala num soneto a Cláudio, construindo, a partir de outras referências, novos "castelos" de sentido, o que exige constante lucidez, talvez a razão maior do equilíbrio aludido inicialmente.
Entre as principais referências que esse poeta tem em vista para construir seus novos "castelos" está a da mística cristã, aguçada, no âmbito literário, pelos simbolistas. Essa referência permite que Alphonsus amplie o horizonte intimista de Cláudio Manoel, investindo-o de humanidade em detrimento da racionalidade aristotélica, atualizada pelo Iluminismo e com latentes repercussões na articulação do poético no século 18.
A via mística incita no autor de "Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte" não uma emoção, não uma nova razão, mas uma compaixão pelo outro, por si mesmo e, no limite, pelo que está entre essas duas instâncias, o incompleto, o "pobre", atributo que o sujeito da lírica alphonsina ostenta insistentemente.
A identificação definitiva do sujeito com a condição de "pobreza" aparece no poema "A Catedral", com que se encerra a "Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte". Ali repete um monótono sino, em ritmo de canto, clamor, choro e gemido: "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!", enquanto a "catedral ebúrnea" do sonho do poeta aparece num céu "risonho", "tristonho" e, finalmente, desaparece num céu "medonho".
Nesse poema se amalgamam os motivos e os muitos sentidos de "pobreza" que atravessam a obra alphonsina: ausência, incompletude, impossibilidade, insuficiência, limitação etc. A "catedral ebúrnea" apresenta-se como uma espécie de metáfora da parte inalcançável, de algo com que não se pode conciliar porque não tem materialidade, sendo o próprio ausente, apenas entrevisto, uma miragem.
A "pobreza" do sujeito, enquanto incompletude, torna-se condição irreversível, condenando-o a uma profunda solidão, a uma instância de desencanto, de onde emerge, em última análise, a linguagem extremamente reflexiva, poeticamente pensada, desse poeta que é, como poucos, auto-sustentável.


Anelito de Oliveira é editor do "Suplemento Literário de Minas Gerais" e autor de "Lama" (Orobó Edições).


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