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Metamorfoses do corpo
O Corpo Impossível
Eliane Robert Moraes
Editora Iluminuras
(Tel. 0/xx/11/3068-9433)
239 págs. R$ 35,00
Um estudo sobre a desagregação da figura humana
GLORIA CARNEIRO DO AMARAL
"O Corpo Impossível" estuda a gradativa desagregação da figura humana que se pode observar em
obras de artistas e escritores do fim do século 19 até o
surrealismo, refletindo sobre as causas desse tipo de
representação. De imediato, dois aspectos chamam
a nossa atenção. Em primeiro lugar, a riqueza e a variedade do objeto de estudo: a autora analisa textos
de Oscar Wilde, Flaubert, Mallarmé, Breton, Hoffmann, Apollinaire e sobretudo Lautréamont e Bataille, além de obras de Max Ernst, Magritte, Salvador
Dalí, Hans Bellmer. O segundo traço é decorrente do
primeiro: o trânsito livre -saudável e instigante-
entre filosofia, artes plásticas e literatura.
Já em seu livro anterior, "A Felicidade Libertina",
sobre a obra do marquês de Sade, Eliane Robert Moraes transitava entre a filosofia e a literatura. Aliás, é
interessante acompanhar o caminho percorrido até
aqui: na origem do questionamento da visão antropocêntrica, correlato da representação de um corpo
fragmentado, estão os pensadores céticos e libertinos. Uma significativa citação do marquês aparece
quando se discutem as metamorfoses da figura humana. Perguntando-se sobre a importância do homem na natureza, Sade conclui que o ser humano
"foi lançado no mundo pela natureza, da mesma forma como o boi, o burro, a couve, a pulga e a alcachofra". Idêntica ausência de hierarquia pode ser encontrada em "Les Chants de Maldoror", de Lautréamont, uma das obras mais frequentadas nesse estudo. O poeta declara: "É um homem ou uma pedra ou
uma árvore que vai começar o quarto canto", colocando os três reinos naturais no mesmo plano.
Tal perspectiva da natureza pode até causar certa
inquietação. Já estamos acostumados a descender
do macaco, mas daí a ter o mesmo status que a pulga... Essa amostra nos revela o sobressalto e o desconforto que o assunto tratado neste livro podem
eventualmente despertar; podendo até "assustar",
como é sugerido na sua apresentação.
Nesse sentido, a relação que se estabelece entre assunto e estrutura é curiosa, pois, se o tema pode ser
inquietante, articula-se em rigorosa construção. O
trabalho está dividido em 11 capítulos, de circuito fechado, blocos temáticos organizados numa apresentação cronológica. Além disso, está embasado em
sólida pesquisa, que pode ser rastreada na bibliografia ampla, de crítica e de ficção. Características em
parte resultantes da forma original de tese de doutoramento. Mas a escritura clara e fluente torna a leitura extremamente agradável.
Um exemplo significativo da articulação das diversas áreas é o capítulo 7. O seu título, "A "Fábula Inumana'", é tirado do próprio texto de Lautréamont,
procedimento que revela uma leitora atenta. O capítulo inicia-se com uma referência a dois artigos anônimos, publicados em 1929 na revista "Documents"
e que têm o mesmo título: "Homem". Em ambos, o
homem aparece reduzido ao seu corpo, que é decomposto em elementos químicos, ferro, fósforo,
magnésio, potássio, enxofre, avaliando-se ao que
nossa carcaça equivale em termos de mercadoria,
tais como sabonetes, palitos, pregos. Tudo isso, afirma a autora, confronta o ser humano à "sua condição de matéria, perecível e reciclável", sublinhando a
desconfiança que começa a se esboçar em relação ao
nosso próprio corpo.
Imagens necrófilas
Diante dos termos "perecível e reciclável", poderíamos retomar Baudelaire, mencionado anteriormente, mas ligado a temas que já estão assimilados
pela crítica, como o da mulher fatal e o dos alucinógenos. "Uma Carniça", poema que tem suas origens
nas imagens necrófilas do romantismo, apresenta
uma matéria que é tratada pela natureza a fogo lento,
para ser depois reaproveitada. Um corpo humano
reduzido a uma matéria reciclável como em outros
exemplos aqui estudados.
Podemos reler outros poemas de "As Flores do
Mal" na perspectiva da fragmentação do corpo humano e neles ver uma prévia de quadros surrealistas
aqui estudados. Como "Uma Mártir", que descreve
um cadáver cuja cabeça está separada do corpo e da
qual jorra sangue que se espalha pelo travesseiro. Isso nos faria recuperar aspectos que a visão da modernidade deixa por vezes de lado na poesia de "As
Flores do Mal" e que, no entanto, eram os mais vivos
na época.
A análise da desfiguração da imagem humana no
capítulo 7 toma como ponto de partida textos literários. Um deles é "O Homem de Areia", de Hoffmann, em que a personagem Natanael apaixona-se
pela boneca Olimpia, sem perceber que não se trata
de um ser humano. Personagem robótica que deu
origem às "meninas desarticuladas" de Hans Bellmer e à intrigante obra de Marcel Duchamp, "La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même", propostas amplamente analisadas por Eliane Moraes.
Paralelamente, em "Les Chants de Maldoror" evidencia-se a precariedade das fronteiras entre formas
do psiquismo humano e do animal -e a animalidade é uma força a ser reconquistada, perspectiva retomada pela visão surrealista. Daí os seres híbridos,
humanos e animais, que aparecem tanto naquela
obra literária quanto nestas pinturas.
Percebe-se, assim, como uma certa literatura de
caráter fantástico do século 19 alimentou ou alavancou a desarticulação da figura humana do surrealismo, o que lança uma luz nova sobre esses autores e
desperta no leitor a vontade de ler ou reler Lautréamont e Hoffmann, o que seria já uma missão cumprida para qualquer trabalho.
Para alinhavar as análises das obras literárias e artísticas e fechar o circuito habitual dos capítulos, a
autora recorre a Walter Benjamin, mostrando como
as engrenagens de Bellmer e de Duchamp podem ser
entendidas como uma resposta à idealização fascista
de um modelo físico perfeito e à mecanização produzida pela sociedade industrial.
E qual seria a resposta possível ao culto do corpo
eternamente jovem, modelo que não cessa de nos ser
exibido, em meio ao "boom" de academias e da malhação? Não estaríamos fabricando bonecas humanas, montadas por meio de lipoaspiração, botox e
outras técnicas, versão viva das bonecas articuláveis
de Bellmer? Ou criando, como aponta a epígrafe do
referido capítulo 7, a "mulher espectral" de Salvador
Dalí, a "mulher (literalmente) desmontável", em
"novas cores" de um sex appeal da nossa era? O que
nos faz pensar que as questões tratadas em "O Corpo
Impossível" podem estar tão ligadas ao nosso cotidiano quanto às obras surrealistas.
Gloria Carneiro do Amaral é professora de literatura francesa
na USP.
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