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ENTREVISTA
A precisão do gesto
Uma entrevista sobre teatro com o filósofo Gerd Bornheim (1929-2002)
RICARDO MUSSE
Gerd Bornheim não foi apenas
um estudioso de Hegel, Marx,
Heidegger e Sartre, interpretados
em ensaios originais ao longo de
uma obra que se estende de "Introdução ao Pensar" (Globo,
1969) a "O Conceito do Redescobrimento" (Eduerj, 1998). Dedicou parte de sua vida à compreensão do fenômeno teatral, assunto
que abordou em três livros: "O
Sentido e a Máscara" (Perspectiva, 1969), "Teatro: A Cena Dividida" (L&PM, 1983) e "Brecht: A
Estética do Teatro" (Graal, 1993).
Empenhado na vida cultural do
país, Gerd não se furtava aos inúmeros convites para falar a um
público mais amplo que o universitário. Parte dessa produção está
sendo resgatada pela revista "Folhetim", que editou, em 2002, nos
números 12 e 15, a transcrição de
duas conferências suas acerca do
"sentido da tragédia" e da "questão da crítica" teatral. Como homenagem póstuma, o Jornal de
Resenhas publica a seguir uma
entrevista inédita, concedida por
ele a Ricardo Musse em fevereiro
de 1990.
Folha - Quais são as tendências
estéticas dominantes no atual teatro brasileiro?
Gerd Bornheim - O panorama se
mostra extremamente diversificado. Há literalmente de tudo. Faria uma única ressalva: existe uma
distância muito grande entre a
pesquisa formal e a temática ou a
situação eminentemente brasileira. Não se trata de defender alguma forma de nacionalismo, mas
de desejar um esforço maior de
síntese. A pesquisa formal vai indo muito bem no Brasil e não é
defeito constatar que ela se deixa
nortear por critérios internacionais. Mas a contrapartida é um
certo desamparo em torno dos esforços que poderiam ser caracterizados como especificamente
brasileiros. O nosso mundo, o que
se vê na rua, é muito rico e deve
suscitar uma pesquisa mais pertinente. Isso, aliás, é uma diretriz
internacional. É o que faz, por
exemplo, um Robert Wilson. Os
nossos dramaturgos continuam
muito presos ao modelo tradicional de dramaturgia.
Parece-me também que não há
atualmente muita preocupação
com a questão do ator. Falta a figura do diretor de ator e até mesmo atores de primeira linha se
ressentem disso.
Folha - Os diretores ocupam o
centro da cena teatral?
Bornheim -Entre nós está sempre mais presente um teatro de diretor, como o experimental de
Gerald Thomas. Mas felizmente
não há só Gerald Thomas. A estética em geral perdeu seu caráter
de normatividade. No passado, a
estética era precipuamente normativa. O crítico, amparado nela,
podia julgar a validez ou não de
um espetáculo. Mas a experiência
mais radical da arte e da estética
de nosso tempo consiste na recusa de qualquer forma de normatividade. Vale dizer que, hoje,
quando um pintor produz um
quadro, ele não pinta apenas um
tema, uma impressão ou uma
idéia; ele cria tudo, inclusive as
normas válidas para a criação
desse quadro e que, em princípio,
não deveriam valer para o quadro
seguinte. Se valessem, seria plágio. Isso também acontece no espetáculo, seja "teatro teatral" ou
"teatro de texto". A não normatividade é um princípio básico da
peça. Mesmo se eu montasse um
Shakespeare à maneira do século
16, tudo se passaria como se eu estivesse inventando regras, porque
as normas do século 16 não existem mais.
Folha - Como o modelo de interpretação e o "star system" da TV
afetam o teatro brasileiro?
Bornheim - A vedete parece pertencer definitivamente ao passado. Explico: certo vedetismo pertence à condição do ator; subjetivamente, por seu narcisismo, e,
objetivamente, por seu sucesso ao
encarnar esse ou aquele personagem. O vedetismo, porém, que caracterizava as artes cênicas e o cinema até havia pouco, até a morte
de Marylin Monroe, digamos, parece ultrapassado. A razão disso é
óbvia: a vedete se configura a partir de um contexto social que concede máxima importância aos valores do individualismo. Quando
esse individualismo entra em crise, a vedete perde sua sustentação.
Hoje há uma verdadeira inflação de autobiografias de atores e
atrizes, tanto no Brasil como no
exterior. Isso pode ser visto como
um indício do fim da vedete. Evidencia mais a vontade de ser vedete do que propriamente a expressão do esplendor do vedetismo. O trabalho de equipe vem se
revelando mais satisfatório; afinal, o espetáculo é uma síntese de
muitos elementos.
A forma de interpretação da TV
não serve de modelo. Concordo
com Pudovkin, o cinema cinematográfico dispensa atores. O ator
surge no cinema e na TV na medida em que esses meios recorrem
ao teatro. O ideal, talvez, seria separar muito bem ator de teatro e
ator de TV.
É claro que, quando Paulo Autran e Fernanda Montenegro fazem uma novela, todo mundo sai
ganhando, mas o contrário não
vale. As técnicas da TV nada ensinam ao ator que possa ser utilizado no palco do teatro. Quando
um ator ou uma atriz passam
anos fazendo televisão e depois
voltam ao teatro, percebe-se logo
que estão no lugar errado. Esquecem a precisão teatral do gesto e o
uso adequado da voz. Aquilo que
esquecem de fato é o corpo. A televisão consegue diluir o corpo do
ator, assim como dilui a força da
dramaturgia.
Folha - O teatro brasileiro sempre
teve seus momentos mais criativos
associados a grupos...
Bornheim - A idéia de grupo parece que se impõe entre nós como
uma força maior, um pouco à maneira de Brecht, que trabalhava
sempre com uma equipe e não
gostava de assinar o que ela fazia.
É claro que certa liderança acaba
por se impor. As partes que compõem o espetáculo conheceram,
no decorrer do século 20, o poder
de sua autonomia. O cenógrafo,
por exemplo, sabe, como nunca
soube no passado, que ele realmente é um artista. Isso começou
com o expressionismo. Um espetáculo hoje termina sendo o embate de todas essas forças criativas. Se o diretor não é mais absoluto, é fatal que ele tenha, através
do diálogo ou não, uma responsabilidade maior na síntese final,
que é o espetáculo.
Folha - Na dramaturgia temos um
fenômeno recente, a criação de
textos por parte de pessoas diretamente envolvidas com o espetáculo teatral. Isso aponta para uma superação do teatro literário?
Bornheim -Trata-se de outro aspecto em crise. Esqueceu-se em
demasia, nos últimos séculos, o
caráter efêmero da arte cênica. Foi
somente a partir do século 17 que
surgiu a literatura dramática como fenômeno independente do
palco, ainda que feita para o palco. É essa autonomia literária que
está cada vez mais desgastada. O
caráter de improvisação literária,
o que não quer dizer falta de "métier", tende a ser recuperado. Hegel em sua "Estética" disse algo
que me parece muito saudável:
um texto dramático deveria circular apenas entre gente de teatro,
para que o público só pudesse ter
acesso a ele por meio da cena. O
que era normal até o advento da
imprensa. Essa dicotomia que se
estabeleceu então tende, hoje, a
ser superada. Afinal, essa dicotomia foi a grande intrusa que veio
estabelecer uma hierarquia espúria dentro da inteireza da experiência teatral.
Folha - Há, hoje, no teatro brasileiro uma valorização excessiva de
aspectos não literários, uma preocupação com a encenação, uma ênfase no espetáculo...
Bornheim - O "teatro teatral"
apresenta sempre, no Brasil e no
exterior, uma direção que é congenitamente experimental. Nunca se termina de apreendê-lo, e ele
é compelido a se renovar quase a
cada noite. O teatro convencional,
ao contrário, oferece uma estabilidade muito maior, pois praticamente dispensa as teorias interpretativas. Já o "teatro teatral" ostenta uma sequência de teorias. A
teoria é sempre uma leitura do
tempo. Ela muda conforme este.
Essa não é sua limitação, ao contrário, é sua importância e sua
grandeza.
Folha - No final dos anos 1970, a
questão do teatro popular era hegemônica nas discussões sobre o
teatro brasileiro...
Bornheim - Hoje me parece que
tudo o que se fazia e que se dizia
naquela época sobre teatro popular deixava-se nortear por uma
utopia. Algo como a pureza do
popular em estado imaculado. No
bojo de um processo político geral, aquela luta me parecia até
mesmo necessária; tenho a impressão, no entanto, de que no ensaio que escrevi então ["Sobre o
Teatro Popular"", tomo o termo
popular numa acepção mais ampla.
A incidência do universal no nacional e vice-versa é sempre necessária em qualquer manifestação de cultura; o confinamento no
particular acaba na autodestruição. O homem cria necessariamente a partir do particular. Sem
essa condição ele não pode atingir
um universal, digamos, satisfatório. O teatro não pode ser a discussão da idéia pela idéia.
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da USP.
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