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A força da história
Relações de Força
Carlo Guinzburg
Tradução: Jônatas Batista Neto
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3167-0801)
198 págs., R$ 29,50
O historiador Carlo Guinzburg critica concepção relativista e cética da história
NICOLAU SEVCENKO
Dizer de Carlo Guinzburg que é um dos
historiadores mais admirados do mundo
contemporâneo é ainda dizer pouco. Em
vários sentidos ele redefiniu a prática, o
campo e os limites da historiografia. O viço inovador de seus estudos e ensaios se
abre para a filosofia, a antropologia, os
estudos literários, a iconografia, a hermenêutica, a semiologia, a política e que outras áreas houver, capazes de enriquecer
o trabalho do historiador, tornando sua
atividade crítica num epicentro das humanidades. Não é de admirar que suas
obras despertem o entusiasmo dos estudantes de quaisquer áreas que tenham
acesso a elas.
Esse seu novo livro, bem traduzido por
Jônatas Batista Neto, vem se juntar a uma
obra toda ela de conhecimento obrigatório para quem deseja sintonizar com a
fronteira do debate intelectual. O assunto, à primeira vista, pode parecer muito
técnico, e o argumento, demasiado detalhista. Mas o estilo de Guinzburg é de
uma clareza cristalina e o seu modo de
conduzir a investigação histórica prende
o leitor como um engenhoso conto de detetive.
O livro é todo ele um debate com a corrente que Guinzburg denomina de "relativismo cético". Ela reúne aqueles que defendem "as teses baseadas na redução da
historiografia à sua dimensão narrativa
ou ficcional", ou seja, aqueles que encaram a escrita da história como uma espécie de exercício variante da criação literária. Há vários nomes por trás dessas teses,
mas o que ressalta, no que ele chama de
versão feroz, é Paul de Man. Outros que
comporiam esse círculo cético, na versão
branda, incluem Hayden White, Richard
Rorty, Roland Barthes, Michel Foucault e
Jacques Derrida, dentre os mais célebres.
Combate ao positivismo
Como teríamos chegado a essa situação? Como teria a pesquisa histórica perdido seu estatuto de uma disciplina consolidada dentre as ciências humanas,
passando a ser reenquadrada no contexto dos estudos literários? Segundo o professor Guinzburg, essa metamorfose teria
ocorrido como uma consequência do
combate sistemático às posições do positivismo ao longo dos anos 1960 e 70. No
seu afã de contestar os dogmas do saber
positivo, esses intelectuais centraram fogo no que consideravam como o mais sólido bastião defensivo do inimigo, sua obsessão pela prova.
Dessa forma, segundo ele, ao jogarem
fora a água suja da prova positivista, esses
teóricos teriam jogado junto o bebê do
conhecimento histórico. Para completar
o infanticídio, eles teriam substituído a
criança perdida pela retórica e seus artifícios ficcionais. Mas onde então buscaram
fundamentos para justificar uma operação tão drástica?
A partir daqui começam as grandes revelações, desvendadas pela lupa implacável do detetive Guinzburg. Pistas colhidas
dentre vários autores céticos apontam todas na mesma direção, Nietzsche, e para
uma mesma fonte, "Acerca da Verdade e
da Mentira". Esse texto era o esboço de
um futuro livro, que o filósofo, ao redor
dos 30 anos, numa fase de intensa depressão e ceticismo, acabaria abandonando
inconcluso. Ele seria, entretanto, publicado postumamente, em 1903. Lá estava a
passagem que seria a chave de toda a "virada retórica":
"Que é então a verdade? Um exército
móbil de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo: uma suma de
relações humanas que foram reforçadas
poética e retoricamente, que foram deslocadas e embelezadas e que, após um
longo uso, parecem, a um dado povo, sólidas, canônicas e vinculatórias. As verdades são ilusões das quais se esqueceu a
natureza evasiva, são metáforas que se esgarçaram e perderam toda forma sensível, são moedas cujas imagens se apagaram e são levadas em consideração apenas como metal e não mais como moedas".
A investigação meticulosa de Guinzburg revela as duas fontes básicas dessas
elaborações de Nietzsche. A primeira é o
diálogo do retórico Cálicles, defensor do
poder manipulatório das palavras e dos
privilégios dos poderosos, com seu adversário, o filósofo Sócrates, partidário da
justiça e da igualdade, tal como apresentado no "Górgias", de Platão.
A segunda das fontes desse texto cético
de Nietzsche é ainda mais reveladora.
Num fluxo surpreendente de relações
cruzadas, vemos o filho de pastor protestante e ex-aluno de teologia, que renegara
o pai, a fé e a carreira eclesiástica, enveredar pelas obras de Overbeck e Gerber, para chegar a Goethe e nada menos que Lutero, Santo Agostinho, São Paulo e o
Evangelho de São João. Na senda dessa linhagem, "a linguagem é espírito", Deus é
Verbo e articula o mundo como uma urdidura de tropos retóricos. O que leva
Guinzburg à desconcertante conclusão
de que "a filosofia do idealismo alemão é,
sob muitos aspectos, um cristianismo
protestante secularizado". Nietzsche representaria o ápice das estirpes idealista e
romântica, inscrevendo a redenção humana como sumo artifício retórico, só
que em chave cética.
Poesia e história
Afora esse texto crucial do mestre alemão, há ainda um outro, que compõe o
segundo pé para a sustentação das teses
do relativismo cético. Trata-se da "Poética", de Aristóteles, na qual ele define a
poesia como atividade mais filosófica e
elevada que a história, na medida em que
a primeira cogita de eventos gerais e possíveis, ao passo que a segunda se limita
aos fatos particulares e reais. Os céticos
interpretam esse texto como uma redução da história a um campo menor no
contexto da poética e como uma afirmação da soberania da retórica como o saber último sobre os potenciais da linguagem. Para eles, tanto a história quanto
qualquer romance, por exemplo, têm
exatamente a mesma finalidade, a de
criar mundos textuais autônomos e convincentes, sem nenhuma relação com
quaisquer eventos externos ao universo
da linguagem. História e ficção só existem como artefatos retóricos.
Guinzburg discorda frontalmente dessa posição, tomando como base outro
texto de Aristóteles, a "Retórica", no qual
ele destaca o papel exponencial da prova,
como o único elemento capaz de legitimar os procedimentos retóricos. Essa é a
razão pela qual Aristóteles critica o historiador Heródoto, dado a incorporar à sua
narrativa fantasias destituídas de evidências e comprovação, preferindo Tucídides, cujos argumentos remetem sempre
ao "núcleo central da prova".
Mas então, se para o grande mestre
Aristóteles a retórica estava tão inextricavelmente presa à prova, como se firmou a
tradição segundo a qual a retórica passou
a ser associada apenas à ficção e ao universo impalpável da linguagem? A resposta está na incorporação da cultura
grega pela romana e nas inevitáveis distorções que se seguiram. O personagem
decisivo aqui é o maior orador e pensador político romano, Cícero, que, tendo
conhecimento precário e indireto de
Aristóteles, estabeleceu uma nova concepção de retórica:
"A nossa oratória deve ser adaptada aos
ouvidos da multidão; deve seduzir os ânimos, deve convencê-los, deve provar seus
argumentos não com a balança dos ourives, mas sim como uma espécie de balança popular".
Soa familiar? Deve soar, pois essa é a
nossa herança cultural e, infelizmente,
sobretudo política. E é desse legado que
derivou a concepção da retórica como a
arte do agenciamento dos sentidos, da
excitação do imaginário e da manipulação da linguagem, para fins de sedução,
conformação e mobilização coletiva. Daí
decorrem também sua associação com a
ficção e seu divórcio final com as exigências da prova.
Jogada para a sombra, a tradição crítica
de Aristóteles não morrera em definitivo.
Um mestre latino posterior, Quintiliano,
escreveria um tratado, "Institutio Oratoria", destinado a transmiti-la a gerações
posteriores. Quem haveria de resgatar essa linhagem, transformando-a na peça
angular da crítica humanista foi Lourenço Valla, no seu bombástico "Discurso
Sobre a Falsa e Enganadora Doação de
Constantino".
O texto foi escrito em 1440, mas só publicado em 1506, tão explosivo era seu
impacto político. Nele, Valla demonstrava a fraude do documento mediante o
qual, supostamente, o imperador Constantino teria doado metade do seu império ao pontífice de Roma. A Igreja forjara
e usara esse falso testamento durante séculos para legitimar suas pretensões ao
poder temporal. Valla lançou a pá de cal
sobre as ambições do papado. Tão notável quanto sua proeza política era a verve
com que desmantelou um a um os argumentos e a linguagem da "Doação", aplicando exemplarmente as lições sobre os
rigores da prova da retórica de Quintiliano. Guinzburg traça os passos que de Valla, por meio de Mabillon, Montfaucon e
os eruditos de Saint-Maur, levam diretamente a Marc Bloch e Walter Benjamin,
no século 20, e à consolidação da historiografia em sua versão mais moderna e
engajada.
Inversão do argumento
Nos três ensaios finais do livro, conduzindo a análise crítica com a graça de um
virtuose, Guinzburg inverte o argumento, passando a demonstrar como as próprias criações artísticas, literárias e retóricas são fontes valiosas para aprofundar o
conhecimento histórico. Num documento jesuítico sobre uma revolta de nativos
das ilhas Marianas, de 1700, ele detecta
uma inesperada intromissão das vozes
locais, invadindo o monólogo da cultura
colonialista européia. Noutro estudo,
sonda as elipses, silêncios, e rupturas narrativas de Flaubert, revelando suas densas conotações históricas. No último, recompõe o percurso iconográfico que resultou na tela "As Senhoritas de Avinhão", de Picasso, decifrando o complexo jogo de trocas culturais, entre as colônias e a Europa, entre os tempos arcaicos
e a modernidade, entre a arte e a história,
que pulsam em tensão extrema numa das
obras seminais da cultura contemporânea.
Ao virar a última página, a arquitetura
do livro se recompõe como um todo. A
expansão e o domínio do Ocidente burguês impôs sua hegemonia sobre outros
povos, outras culturas e classes, o que é
um fato. Mas nem de longe esse processo
é unívoco, consumado ou moralmente
isento. O objetivo da pesquisa histórica é
esgarçar a pretensa coerência desse tecido discursivo, abrindo poros por onde
transpirem presenças, experiências e sentidos antes destinados a permanecer
ocultos ou sufocados, como num teatro
cujo pano de boca nunca subisse.
O problema com o relativismo cético é
que ele insiste em que atrás do pano de
boca só há o avesso do pano de boca. Os
fatos ficam reificados na linguagem e os
juízos éticos são remetidos à dinâmica do
imaginário. O que se perde de vista são as
relações de força, o nexo explicativo entre
os fatos que se impõem e as vivências que
se escamoteiam. Guinzburg restitui o ofício do historiador à sua mais plena dignidade.
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP.
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