São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

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O poema-rio de Mário Faustino

O Homem e Sua Hora e Outros Poemas
de Mário Faustino Maria Eugenia Boaventura (org.) Ed. Companhia das Letras (Tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801) 288 págs., R$ 34,00.

O primeiro volume das obras do poeta brasileiro que foi comparado a Rimbaud

IVO BARROSO

Para efeito de inventário: esta é a quarta edição de "O Homem e Sua Hora", primeiro dos cinco volumes da obra completa de Mário Faustino (1930-1962), organizada pela professora Maria Eugênia Boaventura, da Universidade Estadual de Campinas. Em abril próximo sairá o segundo, "De Anchieta aos Concretos", com parte dos ensaios de crítica literária do autor. Virão depois os volumes referentes à sua atividade jornalística de divulgador de poesia e o aparato crítico e referencial sobre o poeta e sua obra.
A primeira edição dessas poesias saiu em 1955, pela Livros de Portugal, ainda em vida do autor, que contava à época 25 anos, a maior parte dos poemas escrita aos 23. A ela seguiu-se, quatro anos depois de sua morte, a da editora Civilização Brasileira, com o título "Poesia de Mário Faustino", com introdução de Benedito Nunes, um de seus mais fiéis amigos e dedicado curador de sua obra, acrescida de um depoimento de Paulo Francis, que conviveu com Faustino nos agitados tempos do "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil", do semanário político-humorístico "O Pasquim" e da revista "Senhor". Incorpora, além do elenco da primeira edição, 34 esparsos e inéditos.
A terceira edição, desta vez pela Max Limonad, em 1985, igualmente organizada e prefaciada por Benedito Nunes, com o título "Poesia Completa/ Poesia Traduzida", enriquece as anteriores com a transcrição de cerca de 40 poemas traduzidos. Além dessas edições, cabe mencionar o volume "Poesia-Experiência", publicado pela Perspectiva, em 1977, devido ao mesmo organizador, em que recolhe boa parte das seções que compunham a página mantida pelo poeta no "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil" com aquele mesmo título.

Bagagem intelectual
Avaliando agora o patrimônio, temos que o aparecimento da obra completa, a começar por esta quarta edição de "O Homem e Sua Hora", 17 anos após a última, impunha-se por vários motivos: as anteriores se haviam totalmente esvanecido, as novas gerações estavam sem referências quanto à verdadeira importância do autor e de suas realizações no campo poético e careciam ainda de um corpus crítico capaz de orientá-las na devida apreciação tanto do momento em que a obra surgiu quanto de seu significado nos dias atuais.
Desde já concorre enormemente para a depuração de tudo isso o texto introdutório da professora Maria Eugênia Boaventura, que, numa linguagem direta (preconizada por Faustino em seus ensaios literários), "despida de jargões técnicos e de pompa", consegue "dimensionar a bagagem intelectual desse jornalista" que foi "o centro de referência e de aglutinação dos valores jovens" de seu tempo.
A ênfase que em geral incide sobre a obra jornalística de Faustino, no diapasão da maioria de seus analistas também presente nesta edição, não exclui dela contudo uma avaliação das qualidades poéticas do autor, reconhecendo em "O Homem e Sua Hora" um momento de renovação dos valores consagrados na literatura brasileira por ocasião de seu aparecimento.
Para os de minha geração (a mesma de Faustino), sua poesia era realmente nova, pois, embora o vírus rilkiano já se tornasse endêmico na chamada Geração de 45, o culto a Pound e Eliot estava ainda circunscrito a dois ou três representantes de nossa intelligentsia. Faustino, além de "ensinar" as novas tendências poéticas em seus "Diálogos de Oficina", mostrou o que eram essas técnicas na prática do verso -carregando em sua esteira praticamente todos os poetas novos que se iniciavam no propósito de aprender, de trabalhar o verso, de praticar a tradução para adquirir cabedal de erudição que lhes permitisse participar da atividade poética como elemento criador e modificador da linguagem.

Poeta carismático
Equivale dizer com isto que ele representou de fato a figura do "condottiere" literário, esse elemento judicatório e aglutinador que via, por exemplo, em Mário de Andrade, mas que achava inexistente no seu tempo, a do poeta carismático (ou a de uma vanguarda séria) capaz de agitar (segundo ele) a "pasmaceira literária" em que madorrava a poesia de então. É curioso que Faustino falasse em "pasmaceira" no momento mesmo em que a poesia brasileira havia atingido um ápice até agora insuperado: "Claro Enigma" (1951), de Drummond; "Invenção de Orfeu" (1952), de Jorge de Lima; "Romanceiro da Inconfidência" (1953), de Cecília Meireles; "A Luta Corporal" (1954), de Ferreira Gullar e "Duas Águas" (1956), de João Cabral, são alguns dos títulos definitivos da década.
Mas pode-se facilmente entender que se referisse a uma imobilidade criativa subsequente a essa concentração de alto nível, fatalmente condenada à neutralização por força dos diluidores. Era preciso augurar o aparecimento de um "frisson nouveau", de uma energia catalisadora cujo empuxe pudesse elevar esse conglomerado poético a estágios superiores.
A necessidade desse líder (ou desse movimento) é precononizada no célebre artigo de 10/1/1957 ("A Poesia "Concreta" e o Momento Poético Brasileiro"), em que, depois de considerar Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Vinícius de Morais e Cassiano Ricardo inelegíveis para o cargo, por sua atitude contemplativa ou acomodada em relação aos rumos da poesia brasileira, saúda o advento do concretismo como o possível elemento de transformação, o "shake up" ("safanão") -palavras suas- de que estávamos precisando Esse artigo, pela sua franqueza, honestidade, coragem e grande dose de acerto passou a ser uma espécie de "lettre du voyant" da literatura brasileira. Aliás, há uma fácil tentação de ver em Faustino o "nosso Rimbaud": a mesma precocidade criativa, a mesma agudeza crítica, o impulso iconoclasta, o "vedor" e o visionário, e aquela mesma premonição do destino, que se tornou o lugar-comum por excelência de todos os que escreveram sobre ele.
Morrendo cedo, deixou a indagação de como teria evoluído sua poesia, se ela de fato chegaria a alcançar o momento de transição e ruptura sonhado por ele e por todos nós que tanto dele esperávamos. Mas indagações desse tipo são sempre gratuitas; talvez ele (ainda como Rimbaud) se desiludisse da poesia e de sua possibilidade de mudar o mundo (sintoma que chegou a manifestar); ou quem sabe fosse preferir a política como veículo de realização de seus ideais (outro viés para o qual tendia). Tudo indica, no entanto, que se o poeta tivesse persistido nele, além de se manter na vanguarda que representava a novidade do momento, no culto de seus ídolos, ele teria certamente aberto as portas àquele contato imediato com a poesia do futuro e inaugurado um novo Natal na terra.

Faustino e o concretismo
Tendo sido embora seu João Batista, Faustino não chegou de fato a "propagar" o concretismo. Diversamente dos muitos adeptos de primeira hora -e até mesmo de Bandeira, que o praticou numa tentativa de se "aggiornar", de não perder um lugar na modernidade de seu tempo-, Faustino fez apenas umas incursões tímidas, tipo espacejamento e corte de palavras, em poemas publicados no suplemento dominical do "Jornal do Brasil" e no "Correio da Manhã", como "Ariazul, Cavossonante Escudo Nosso" e "22.10.1956".
Aliás, diga-se que essa entronização não implicava sua adesão ao movimento. Ele próprio afirma que não tinha "o menor interesse pessoal na experiência" e que o fazia por acreditar na "competência e honestidade intelectual" de seus patronos "como artistas de vanguarda". A face vanguardista -o "nouveau"- de sua obra poética estava na utilização de temas órficos, de evocações mitológicas, de paráfrases greco-romanas, de colagens, justaposições e intertextualidades, à maneira de Pound, que viriam depois a constituir o arsenal de todo poeta iniciante, que o exibiria com alarde, como se descobrisse a pólvora. Em Faustino esse instrumental se adequava perfeitamente à necessidade íntima de codificar e equacionar sentimentos complexos e angustiantes e exprimir, apesar de bem moço, sua trágica e abrangente visão do mundo.
Alguns de seus poemas são o que de melhor se fez à época (e mesmo hoje) em termos de expressão não derramada, de labor alquímico de emoções e vivências, realizados por graça de um domínio do verso, de uma polissonante riqueza de elocuções. O poema longo -instrumento recomendado por ele para a aferição do "fôlego poético" e da capacidade de equilíbrio lírico-, o longo poema que dá título ao livro é uma de suas mais conseguidas realizações, onde faíscam as "touchstones" ("pedras de toque") que o fascinavam, os "exhibits" ("exemplos") e os "viz" (abreviação de "videlicet", "a saber") de toda uma arte poética, para usarmos expressões que lhe eram caras e por ele postas em circulação.
Embora a realização absoluta desse seu ideal já tivesse sido alcançada em 1952 com a "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima -sobre quem ele escreveu um dos mais lúcidos ensaios de toda a crítica nacional-, o poema-rio de Faustino demandava outro curso, pois declina de certo barroquismo gratuito para explorar profundidades psíquicas e panejamentos surrealistas, que exigem um vôo mais fundo ou um mergulho mais alto no manejo da argonave lírica.
Finalmente, quanto aos bens disponíveis, quanto à herança deixada, podemos hoje, 40 anos depois de sua morte, 47 depois da publicação de "O Homem e Sua Hora", avaliar o "fenômeno Faustino" sob dois aspectos: continua vago o lugar de "condottiere" deixado por ele, e daí a oportunidade desta edição de suas obras completas, que permitirá aos leitores novos ilustrar-se na teoria da arte literária sem a necessidade de recorrer a compêndios pretensiosos ou sensaborões; estas aulas dialogais de Faustino representam a súmula de tudo aquilo que se precisa saber sobre poesia sem gastar anos de pesquisa, sem outra universidade que seu livro.
Quanto à poesia propriamente dita, estamos vivendo uma época em que muitas das "aras sacras" de Faustino sofreram os inevitáveis transtornos do tempo: Pound, mitologias, colagens, extra-textualidade estão definitivamente em baixa, só utilizados ainda por alguns incautos, pseudovanguardistas ou descobridores da pólvora. Também (embora não fosse seu caso) caíram em desuso (há muito tempo, aliás) os trocadilhos (tipo sal, sol, sul), as associações gratuitas de palavras (como o fio da faca/ o filho do fraco), os parênteses, "picadinhos" e minúsculas à cummings, as imitações de Pessoa e todas as retortas e cadinhos do laboratório experimentalista, para não falarmos num certo "letrismo eletrônico" que antes de vagir já é perfeitamente deletável.
Nenhuma restrição, nenhum tabu ou nenhuma tendência nova, modismo ou propensão estética momentâneos serão capazes, no entanto, de comprometer o vigor, o vivaz e a bela modernidade de grande parte dos poemas de "O Homem e Sua Hora".
Por isso, esta edição representa não apenas um "revival", uma reedição, uma reavaliação da obra de Mário Faustino, mas seu restabelecimento, sua restauração no lugar que sempre lhe coube por direito e que parecia não contestado, mas esquecido pela maioria dos leitores.
Com ela Faustino volta a ocupar uma posição de destaque entre os grandes nomes da década de 50, naquela "concentração de alto nível" a que nos referimos como os expoentes poéticos de seu tempo, pois seus poemas são feitos com sangue, pulsão e sentimento humano, sem os quais a poesia não passa de contrafação.


Ivo Barroso é poeta e tradutor.


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