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O poema-rio de Mário Faustino
O Homem e Sua Hora e Outros Poemas
de Mário Faustino
Maria Eugenia Boaventura (org.)
Ed. Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801)
288 págs., R$ 34,00.
O primeiro volume das obras do poeta brasileiro que foi comparado a Rimbaud
IVO BARROSO
Para efeito de inventário: esta é a quarta
edição de "O Homem e Sua Hora", primeiro dos cinco volumes da obra completa de Mário Faustino (1930-1962), organizada pela professora Maria Eugênia
Boaventura, da Universidade Estadual de
Campinas. Em abril próximo sairá o segundo, "De Anchieta aos Concretos",
com parte dos ensaios de crítica literária
do autor. Virão depois os volumes referentes à sua atividade jornalística de divulgador de poesia e o aparato crítico e
referencial sobre o poeta e sua obra.
A primeira edição dessas poesias saiu
em 1955, pela Livros de Portugal, ainda
em vida do autor, que contava à época 25
anos, a maior parte dos poemas escrita
aos 23. A ela seguiu-se, quatro anos depois de sua morte, a da editora Civilização Brasileira, com o título "Poesia de
Mário Faustino", com introdução de Benedito Nunes, um de seus mais fiéis amigos e dedicado curador de sua obra,
acrescida de um depoimento de Paulo
Francis, que conviveu com Faustino nos
agitados tempos do "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil", do semanário
político-humorístico "O Pasquim" e da
revista "Senhor". Incorpora, além do
elenco da primeira edição, 34 esparsos e
inéditos.
A terceira edição, desta vez pela Max Limonad, em 1985, igualmente organizada
e prefaciada por Benedito Nunes, com o
título "Poesia Completa/ Poesia Traduzida", enriquece as anteriores com a transcrição de cerca de 40 poemas traduzidos.
Além dessas edições, cabe mencionar o
volume "Poesia-Experiência", publicado
pela Perspectiva, em 1977, devido ao
mesmo organizador, em que recolhe boa
parte das seções que compunham a página mantida pelo poeta no "Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil" com
aquele mesmo título.
Bagagem intelectual
Avaliando agora o patrimônio, temos
que o aparecimento da obra completa, a
começar por esta quarta edição de "O
Homem e Sua Hora", 17 anos após a última, impunha-se por vários motivos: as
anteriores se haviam totalmente esvanecido, as novas gerações estavam sem referências quanto à verdadeira importância
do autor e de suas realizações no campo
poético e careciam ainda de um corpus
crítico capaz de orientá-las na devida
apreciação tanto do momento em que a
obra surgiu quanto de seu significado nos
dias atuais.
Desde já concorre enormemente para a
depuração de tudo isso o texto introdutório da professora Maria Eugênia Boaventura, que, numa linguagem direta (preconizada por Faustino em seus ensaios literários), "despida de jargões técnicos e de
pompa", consegue "dimensionar a bagagem intelectual desse jornalista" que foi
"o centro de referência e de aglutinação
dos valores jovens" de seu tempo.
A ênfase que em geral incide sobre a
obra jornalística de Faustino, no diapasão da maioria de seus analistas também
presente nesta edição, não exclui dela
contudo uma avaliação das qualidades
poéticas do autor, reconhecendo em "O
Homem e Sua Hora" um momento de renovação dos valores consagrados na literatura brasileira por ocasião de seu aparecimento.
Para os de minha geração (a mesma de
Faustino), sua poesia era realmente nova,
pois, embora o vírus rilkiano já se tornasse endêmico na chamada Geração de 45,
o culto a Pound e Eliot estava ainda circunscrito a dois ou três representantes de
nossa intelligentsia. Faustino, além de
"ensinar" as novas tendências poéticas
em seus "Diálogos de Oficina", mostrou
o que eram essas técnicas na prática do
verso -carregando em sua esteira praticamente todos os poetas novos que se iniciavam no propósito de aprender, de trabalhar o verso, de praticar a tradução para adquirir cabedal de erudição que lhes
permitisse participar da atividade poética
como elemento criador e modificador da
linguagem.
Poeta carismático
Equivale dizer com isto que ele representou de fato a figura do "condottiere"
literário, esse elemento judicatório e
aglutinador que via, por exemplo, em
Mário de Andrade, mas que achava inexistente no seu tempo, a do poeta carismático (ou a de uma vanguarda séria) capaz de agitar (segundo ele) a "pasmaceira
literária" em que madorrava a poesia de
então. É curioso que Faustino falasse em
"pasmaceira" no momento mesmo em
que a poesia brasileira havia atingido um
ápice até agora insuperado: "Claro Enigma" (1951), de Drummond; "Invenção de
Orfeu" (1952), de Jorge de Lima; "Romanceiro da Inconfidência" (1953), de
Cecília Meireles; "A Luta Corporal"
(1954), de Ferreira Gullar e "Duas Águas"
(1956), de João Cabral, são alguns dos títulos definitivos da década.
Mas pode-se facilmente entender que
se referisse a uma imobilidade criativa
subsequente a essa concentração de alto
nível, fatalmente condenada à neutralização por força dos diluidores. Era preciso
augurar o aparecimento de um "frisson
nouveau", de uma energia catalisadora
cujo empuxe pudesse elevar esse conglomerado poético a estágios superiores.
A necessidade desse líder (ou desse movimento) é precononizada no célebre artigo de 10/1/1957 ("A Poesia "Concreta" e o
Momento Poético Brasileiro"), em que,
depois de considerar Drummond, João
Cabral, Manuel Bandeira, Jorge de Lima,
Cecília Meireles, Murilo Mendes, Vinícius de Morais e Cassiano Ricardo inelegíveis para o cargo, por sua atitude contemplativa ou acomodada em relação aos
rumos da poesia brasileira, saúda o advento do concretismo como o possível
elemento de transformação, o "shake up"
("safanão") -palavras suas- de que estávamos precisando Esse artigo, pela sua
franqueza, honestidade, coragem e grande dose de acerto passou a ser uma espécie de "lettre du voyant" da literatura brasileira. Aliás, há uma fácil tentação de ver
em Faustino o "nosso Rimbaud": a mesma precocidade criativa, a mesma agudeza crítica, o impulso iconoclasta, o "vedor" e o visionário, e aquela mesma premonição do destino, que se tornou o lugar-comum por excelência de todos os
que escreveram sobre ele.
Morrendo cedo, deixou a indagação de
como teria evoluído sua poesia, se ela de
fato chegaria a alcançar o momento de
transição e ruptura sonhado por ele e por
todos nós que tanto dele esperávamos.
Mas indagações desse tipo são sempre
gratuitas; talvez ele (ainda como Rimbaud) se desiludisse da poesia e de sua
possibilidade de mudar o mundo (sintoma que chegou a manifestar); ou quem
sabe fosse preferir a política como veículo
de realização de seus ideais (outro viés
para o qual tendia). Tudo indica, no entanto, que se o poeta tivesse persistido nele, além de se manter na vanguarda que
representava a novidade do momento,
no culto de seus ídolos, ele teria certamente aberto as portas àquele contato
imediato com a poesia do futuro e inaugurado um novo Natal na terra.
Faustino e o concretismo
Tendo sido embora seu João Batista,
Faustino não chegou de fato a "propagar" o concretismo. Diversamente dos
muitos adeptos de primeira hora -e até
mesmo de Bandeira, que o praticou numa tentativa de se "aggiornar", de não
perder um lugar na modernidade de seu
tempo-, Faustino fez apenas umas incursões tímidas, tipo espacejamento e
corte de palavras, em poemas publicados
no suplemento dominical do "Jornal do
Brasil" e no "Correio da Manhã", como
"Ariazul, Cavossonante Escudo Nosso" e
"22.10.1956".
Aliás, diga-se que essa entronização
não implicava sua adesão ao movimento.
Ele próprio afirma que não tinha "o menor interesse pessoal na experiência" e
que o fazia por acreditar na "competência e honestidade intelectual" de seus patronos "como artistas de vanguarda". A
face vanguardista -o "nouveau"- de
sua obra poética estava na utilização de
temas órficos, de evocações mitológicas,
de paráfrases greco-romanas, de colagens, justaposições e intertextualidades, à
maneira de Pound, que viriam depois a
constituir o arsenal de todo poeta iniciante, que o exibiria com alarde, como se
descobrisse a pólvora. Em Faustino esse
instrumental se adequava perfeitamente
à necessidade íntima de codificar e equacionar sentimentos complexos e angustiantes e exprimir, apesar de bem moço,
sua trágica e abrangente visão do mundo.
Alguns de seus poemas são o que de
melhor se fez à época (e mesmo hoje) em
termos de expressão não derramada, de
labor alquímico de emoções e vivências,
realizados por graça de um domínio do
verso, de uma polissonante riqueza de
elocuções. O poema longo -instrumento recomendado por ele para a aferição
do "fôlego poético" e da capacidade de
equilíbrio lírico-, o longo poema que dá
título ao livro é uma de suas mais conseguidas realizações, onde faíscam as
"touchstones" ("pedras de toque") que o
fascinavam, os "exhibits" ("exemplos") e
os "viz" (abreviação de "videlicet", "a saber") de toda uma arte poética, para usarmos expressões que lhe eram caras e por
ele postas em circulação.
Embora a realização absoluta desse seu
ideal já tivesse sido alcançada em 1952
com a "Invenção de Orfeu", de Jorge de
Lima -sobre quem ele escreveu um dos
mais lúcidos ensaios de toda a crítica nacional-, o poema-rio de Faustino demandava outro curso, pois declina de
certo barroquismo gratuito para explorar
profundidades psíquicas e panejamentos
surrealistas, que exigem um vôo mais
fundo ou um mergulho mais alto no manejo da argonave lírica.
Finalmente, quanto aos bens disponíveis, quanto à herança deixada, podemos
hoje, 40 anos depois de sua morte, 47 depois da publicação de "O Homem e Sua
Hora", avaliar o "fenômeno Faustino"
sob dois aspectos: continua vago o lugar
de "condottiere" deixado por ele, e daí a
oportunidade desta edição de suas obras
completas, que permitirá aos leitores novos ilustrar-se na teoria da arte literária
sem a necessidade de recorrer a compêndios pretensiosos ou sensaborões; estas
aulas dialogais de Faustino representam
a súmula de tudo aquilo que se precisa saber sobre poesia sem gastar anos de pesquisa, sem outra universidade que seu livro.
Quanto à poesia propriamente dita, estamos vivendo uma época em que muitas
das "aras sacras" de Faustino sofreram os
inevitáveis transtornos do tempo: Pound,
mitologias, colagens, extra-textualidade
estão definitivamente em baixa, só utilizados ainda por alguns incautos, pseudovanguardistas ou descobridores da pólvora. Também (embora não fosse seu caso) caíram em desuso (há muito tempo,
aliás) os trocadilhos (tipo sal, sol, sul), as
associações gratuitas de palavras (como o
fio da faca/ o filho do fraco), os parênteses, "picadinhos" e minúsculas à cummings, as imitações de Pessoa e todas as
retortas e cadinhos do laboratório experimentalista, para não falarmos num certo
"letrismo eletrônico" que antes de vagir
já é perfeitamente deletável.
Nenhuma restrição, nenhum tabu ou
nenhuma tendência nova, modismo ou
propensão estética momentâneos serão
capazes, no entanto, de comprometer o
vigor, o vivaz e a bela modernidade de
grande parte dos poemas de "O Homem
e Sua Hora".
Por isso, esta edição representa não
apenas um "revival", uma reedição, uma
reavaliação da obra de Mário Faustino,
mas seu restabelecimento, sua restauração no lugar que sempre lhe coube por
direito e que parecia não contestado, mas
esquecido pela maioria dos leitores.
Com ela Faustino volta a ocupar uma
posição de destaque entre os grandes nomes da década de 50, naquela "concentração de alto nível" a que nos referimos
como os expoentes poéticos de seu tempo, pois seus poemas são feitos com sangue, pulsão e sentimento humano, sem
os quais a poesia não passa de contrafação.
Ivo Barroso é poeta e tradutor.
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