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A identidade da América Latina
A América Latina no Século 19 -
Tramas, Telas e Textos
Maria Lígia Coelho Prado
Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149)
232 págs., R$ 29,00
NICOLAS SHUMWAY
Às vezes me pergunto por que não existe o termo "anglofonia", ou
algum semelhante, para se falar do conjunto das antigas colônias inglesas,
assim como se fala da América Latina. Por que não há centros de estudos
anglofônicos, nos quais se estudaria o passado da Nova Zelândia, da
Austrália, do Canadá, dos EUA, da Jamaica, da Índia e da África do Sul?
O fato de que não existam tais centros ou termos assinala a dose de
arbitrariedade inerente à expressão "América Latina". Faz lembrar as
raízes hegemônicas desse termo, pois foi concebido na França, nos
tempos de Napoleão 3º, em parte para justificar a invasão do México por
tropas francesas. Ainda hoje, nos EUA e Europa, recorda um pouco o
direito dos grandes países de aglomerar e confundir outros povos e
línguas.
Portanto, quem escreve sobre a América Latina em conjunto sempre
tem que tomar cuidado com as generalizações, que são inerentes ao
assunto.
Nos anos recentes, ninguém escreveu sobre o tema com mais
inteligência e originalidade que Maria Lígia Prado Coelho, professora de
história latino-americana na USP. Como a autora reconhece na
introdução do livro aqui tratado, ela se dedica em parte a explicar a
América Latina a seus compatriotas, que às vezes se recusam a se ver
como latino-americanos. A professora fala do Brasil e da América Latina
como dois pólos que se atraem e se repelem, embora sabendo que
nenhum deles é completo ou compreensível sem o outro.
Neste livro, ela reúne sete artigos particularmente notáveis, criando um
volume de alto valor, tanto para um público acadêmico quanto para os
leitores em geral. Embora alguns dos temas tratados sejam bem
conhecidos -por exemplo, o "Facundo", de Sarmiento-, Maria Lígia
nunca deixa de surpreender com observações originais. No caso do
"Facundo", não sei se as esclarecedoras comparações que faz entre o
pensamento de Sarmiento e algumas correntes intelectuais brasileiras do
momento foram notadas antes.
Outros temas, sem dúvida, -penso no magistral capítulo sobre as
novelas lidas no Brasil Joanino -serão tão novos para a maioria dos
leitores quanto foram para mim.
Os capítulos do livro são diversos, sem nexos explícitos entre si.
Entretanto a questão da identidade coletiva da América Latina sempre
está subjacente. No estudo do papel das mulheres nas lutas pela
independência na América Hispânica, ela descobre abundantes
evidências sobre a atuação corajosa de muitas mulheres que, a despeito
das restrições impostas pela sociedade, encontraram inesperadas formas
de servir à causa da liberdade, trabalhando como espiãs, portadoras de
armas e às vezes como "soldadeiras" ou "amazonas".
Com certa ironia, Maria Lígia também nota como as poucas biografias
dessas heroínas, quase todas escritas por homens, descrevem, como se
fosse por obrigação, que todas elas, após a guerra, voltaram para casa,
onde viraram fiéis esposas e mães exemplares.
No capítulo dedicado ao pensamento dos liberais José María Luis Mora,
no México, e Esteban Echeverría, na Argentina, Maria Lígia mostra como
dois intelectuais, que sofreram o caos que invadiu os seus respectivos
países, tentaram manter-se fiéis a certas doutrinas liberais, conservando a
idéia de povo soberano, mas restringindo a participação deste povo a
uma elite de talento, cultural e moral. Maria Lígia analisa as contradições
de seus pensamentos, levando em conta os extraordinários momentos
que viviam, assim chegando a conclusões distintas dos julgamentos
modernos que os descartariam como elitistas, inimigos do povo ou
típicos liberais burgueses.
Da mesma forma, faz um excepcional estudo sobre a formação das
universidades modernas no Chile, México e Brasil, narrando uma
história que nunca foi, que eu saiba, contada de uma perspectiva
comparativa. Voltando a um tema referido anteriormente, acontece que
as histórias de cada país são bem diferentes, sobretudo a do Brasil, onde
não havia universidades coloniais e onde, portanto, não se produziram os
grandes conflitos entre Igreja e Estado, que tanto afetaram, por exemplo,
o desenvolvimento das universidades mexicanas.
Num livro tão uniformemente bom, não sei se me será permitido ter
preferências, mas devo dizer que é particularmente agradável o capítulo
dedicado à leitura, publicação e censura de novelas para mulheres dos
tempos joaninos. Com delicadeza e humor, Maria Lígia levanta questões
difíceis de resolver. Quais eram os gostos femininos daquela época? Por
que os censores deixavam passar tramas que ainda hoje provocariam, em
alguns círculos, comentários negativos? Até que ponto podemos
compreender esse público leitor feminino, vendo apenas seu reflexo no
espelho imperfeito dos textos que lia?
Outro capítulo particularmente interessante é o último, que
impressiona também pela temática, mas principalmente pela ambição.
Trata de um estudo sobre a imagem da paisagem em textos e quadros da
Argentina e dos EUA do século 19. A autora nota que a representação da
paisagem, tanto em pintores quanto em escritores dos EUA daquela
época, foi sempre positiva e otimista, com referências contínuas à
natureza como fundamento e imagem dum novo povo forte,
individualista, democrático e bem-sucedido.
Contrasta esta visão com a de vários viajantes e pintores, estrangeiros e
argentinos, que quiseram representar a paisagem argentina. Com poucas
exceções, concordaram numa visão negativa, que teria sua mais
importante voz em Sarmiento, para quem a natureza da Argentina era
fonte de barbárie.
Maria Lígia termina notando que a representação da natureza, tão
diferente na Argentina e nos EUA, em um momento-chave de suas
formações nacionais, poderia ter uma explicação material, pois o país do
norte, já em meados do século 19, se considerava um sucesso, enquanto o
da outra ponta do hemisfério estava no mesmo momento
testemunhando o retumbante fracasso de suas primeiras tentativas de
formação nacional.
Mas também reconhece que esta explicação não é suficiente; que a
partir de uma visão puritana de um novo mundo como paraíso puro e
intocado, a imagem otimista da natureza nos EUA resulta também de
uma inércia cultural, cujas raízes se acham nos primeiros momentos da
colônia. Os pontos que aborda são tão interessantes e pouco pesquisados
que bem poderiam servir de base para um outro livro -que será tão bom
e bem-vindo como este.
Nicolas Shumway é diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade do Texas (Austin),
da qual também é professor.
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