São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A identidade da América Latina

A América Latina no Século 19 - Tramas, Telas e Textos
Maria Lígia Coelho Prado
Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149)
232 págs., R$ 29,00

NICOLAS SHUMWAY

Às vezes me pergunto por que não existe o termo "anglofonia", ou algum semelhante, para se falar do conjunto das antigas colônias inglesas, assim como se fala da América Latina. Por que não há centros de estudos anglofônicos, nos quais se estudaria o passado da Nova Zelândia, da Austrália, do Canadá, dos EUA, da Jamaica, da Índia e da África do Sul?
O fato de que não existam tais centros ou termos assinala a dose de arbitrariedade inerente à expressão "América Latina". Faz lembrar as raízes hegemônicas desse termo, pois foi concebido na França, nos tempos de Napoleão 3º, em parte para justificar a invasão do México por tropas francesas. Ainda hoje, nos EUA e Europa, recorda um pouco o direito dos grandes países de aglomerar e confundir outros povos e línguas.
Portanto, quem escreve sobre a América Latina em conjunto sempre tem que tomar cuidado com as generalizações, que são inerentes ao assunto.
Nos anos recentes, ninguém escreveu sobre o tema com mais inteligência e originalidade que Maria Lígia Prado Coelho, professora de história latino-americana na USP. Como a autora reconhece na introdução do livro aqui tratado, ela se dedica em parte a explicar a América Latina a seus compatriotas, que às vezes se recusam a se ver como latino-americanos. A professora fala do Brasil e da América Latina como dois pólos que se atraem e se repelem, embora sabendo que nenhum deles é completo ou compreensível sem o outro.
Neste livro, ela reúne sete artigos particularmente notáveis, criando um volume de alto valor, tanto para um público acadêmico quanto para os leitores em geral. Embora alguns dos temas tratados sejam bem conhecidos -por exemplo, o "Facundo", de Sarmiento-, Maria Lígia nunca deixa de surpreender com observações originais. No caso do "Facundo", não sei se as esclarecedoras comparações que faz entre o pensamento de Sarmiento e algumas correntes intelectuais brasileiras do momento foram notadas antes.
Outros temas, sem dúvida, -penso no magistral capítulo sobre as novelas lidas no Brasil Joanino -serão tão novos para a maioria dos leitores quanto foram para mim.
Os capítulos do livro são diversos, sem nexos explícitos entre si. Entretanto a questão da identidade coletiva da América Latina sempre está subjacente. No estudo do papel das mulheres nas lutas pela independência na América Hispânica, ela descobre abundantes evidências sobre a atuação corajosa de muitas mulheres que, a despeito das restrições impostas pela sociedade, encontraram inesperadas formas de servir à causa da liberdade, trabalhando como espiãs, portadoras de armas e às vezes como "soldadeiras" ou "amazonas".
Com certa ironia, Maria Lígia também nota como as poucas biografias dessas heroínas, quase todas escritas por homens, descrevem, como se fosse por obrigação, que todas elas, após a guerra, voltaram para casa, onde viraram fiéis esposas e mães exemplares.
No capítulo dedicado ao pensamento dos liberais José María Luis Mora, no México, e Esteban Echeverría, na Argentina, Maria Lígia mostra como dois intelectuais, que sofreram o caos que invadiu os seus respectivos países, tentaram manter-se fiéis a certas doutrinas liberais, conservando a idéia de povo soberano, mas restringindo a participação deste povo a uma elite de talento, cultural e moral. Maria Lígia analisa as contradições de seus pensamentos, levando em conta os extraordinários momentos que viviam, assim chegando a conclusões distintas dos julgamentos modernos que os descartariam como elitistas, inimigos do povo ou típicos liberais burgueses.
Da mesma forma, faz um excepcional estudo sobre a formação das universidades modernas no Chile, México e Brasil, narrando uma história que nunca foi, que eu saiba, contada de uma perspectiva comparativa. Voltando a um tema referido anteriormente, acontece que as histórias de cada país são bem diferentes, sobretudo a do Brasil, onde não havia universidades coloniais e onde, portanto, não se produziram os grandes conflitos entre Igreja e Estado, que tanto afetaram, por exemplo, o desenvolvimento das universidades mexicanas.
Num livro tão uniformemente bom, não sei se me será permitido ter preferências, mas devo dizer que é particularmente agradável o capítulo dedicado à leitura, publicação e censura de novelas para mulheres dos tempos joaninos. Com delicadeza e humor, Maria Lígia levanta questões difíceis de resolver. Quais eram os gostos femininos daquela época? Por que os censores deixavam passar tramas que ainda hoje provocariam, em alguns círculos, comentários negativos? Até que ponto podemos compreender esse público leitor feminino, vendo apenas seu reflexo no espelho imperfeito dos textos que lia?
Outro capítulo particularmente interessante é o último, que impressiona também pela temática, mas principalmente pela ambição. Trata de um estudo sobre a imagem da paisagem em textos e quadros da Argentina e dos EUA do século 19. A autora nota que a representação da paisagem, tanto em pintores quanto em escritores dos EUA daquela época, foi sempre positiva e otimista, com referências contínuas à natureza como fundamento e imagem dum novo povo forte, individualista, democrático e bem-sucedido.
Contrasta esta visão com a de vários viajantes e pintores, estrangeiros e argentinos, que quiseram representar a paisagem argentina. Com poucas exceções, concordaram numa visão negativa, que teria sua mais importante voz em Sarmiento, para quem a natureza da Argentina era fonte de barbárie.
Maria Lígia termina notando que a representação da natureza, tão diferente na Argentina e nos EUA, em um momento-chave de suas formações nacionais, poderia ter uma explicação material, pois o país do norte, já em meados do século 19, se considerava um sucesso, enquanto o da outra ponta do hemisfério estava no mesmo momento testemunhando o retumbante fracasso de suas primeiras tentativas de formação nacional.
Mas também reconhece que esta explicação não é suficiente; que a partir de uma visão puritana de um novo mundo como paraíso puro e intocado, a imagem otimista da natureza nos EUA resulta também de uma inércia cultural, cujas raízes se acham nos primeiros momentos da colônia. Os pontos que aborda são tão interessantes e pouco pesquisados que bem poderiam servir de base para um outro livro -que será tão bom e bem-vindo como este.


Nicolas Shumway é diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade do Texas (Austin), da qual também é professor.


Texto Anterior: Antonio Candido: Tensões críticas do modernismo
Próximo Texto: Marilena Chaui: Raízes do atraso
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.