São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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O planeta cidade

A 25ª Bienal de São Paulo visitada e comentada pelo arquiteto Abilio Guerra

25ª Bienal de São Paulo -
Iconografias Metropolitanas
Curador-chefe: Alfons Hug
Curador do Núcleo Brasileiro: Agnaldo Farias
Catálogo em 3 volumes: "Países" (288 págs., R$ 50,00), "Cidades" (448 págs., R$ 80,00), "Brasil" (200 págs., R$ 40,00)
Fundação Bienal de São Paulo
(Tel. 0/xx/11/5574-5922)

ABILIO GUERRA

Convocado pelo editor do "Jornal de Resenhas" para escrever um texto sobre a Bienal de São Paulo, confesso que fiquei um tanto perplexo e preocupado. Já havia visitado a mostra e não tinha me encantado. O tema da 25ª edição -"Iconografias Metropolitanas"- tinha me motivado a conhecê-la logo nos primeiros dias. O saldo da primeira visita foi uma profunda sensação de déjà vu. Uma sucessão infinita de instalações realizadas com os materiais mais diversos, desde o mais efêmero papelão aos polímeros não recicláveis. E uma tremenda overdose de videoinstalações, a ponto de uma área do segundo piso se assemelhar a uma rua especializada no comércio fácil de prazeres, com sua sucessão de cômodos escuros. As texturas, as cores, as formas, as tecnologias -para onde olhava me sentia num território familiar, já devidamente medido e esquadrinhado. Um simulacro um tanto mambembe da vida de todos os dias, onde as ações humanas se sobrepõem com rapidez vertiginosa, gerando um mundo onde o excesso surge como fragmentos ante nossos olhos.
Nem mesmo os nus presentes em diversos trabalhos pareciam ter a capacidade de produzir um "frisson" genuíno. Os corpos desnudos são suportes de projetos estéticos diversos e mesmo conflitantes -entre outros, a ascese introspectiva e estática de seres habitando cubos transparentes e buracos escavados na rocha ou na areia (Atta Kim); os corpos enlameados e amontoados em posição fetal diante do Juízo Final (Andres Carranza Mora); as silhuetas negras recortadas no fundo branco em pleno ato sexual (Julião Sarmento); os corpos vivos dispostos como mortos pelos solos de Roma, Nova York, Montreal e agora São Paulo (Spencer Tunick); e a ambivalência sadomasoquista das mulheres em posição marcial, desnudas e calçando botas de grife da moda (Vanessa Beecroft). Misto de instalação e performance ao vivo, as duas últimas obras ganharam as primeiras páginas dos jornais e espaço nos noticiários televisivos, competindo com as sensuais vendedoras de cerveja ou evocando os mortos da última chacina.
Também é incômoda a presença do mesmo olho mágico no cartaz da bienal e na logomarca do "reality show" Big Brother. No programa da empresa holandesa Endemol, o mítico personagem do romance "1984", de George Orwell, símbolo do controle totalitário, ressurge para legitimar o "voyeurismo" sórdido e pervertido. O olho mágico da bienal é uma metáfora ingênua para ilustrar o tema do controle social, central para a curadoria e que se materializa didaticamente nas torres de vigilância de dois artistas (Los Carpinteros e Fabrice Gygi).
Hans Ulrich Reck, num dos textos do catálogo, denuncia a tradição utópica renascentista, que tenta "submeter incondicionalmente o real ao seu domínio", discurso normativo e purificador que resultou na tediosa cidade fortificada de Palmanova e na prisão panóptica de Jeremy Bentham. Transparência social no sonho democrático de Rousseau, a visibilidade total ganha significado político diametralmente oposto, tornando-se arma poderosa dos donos do poder. Contudo o espaço lúdico criado pela imensa exposição parece anular irremediavelmente a sensação de vigilância permanente, como se pode verificar nas reiteradas tentativas de crianças transformarem as torres em trepa-trepa, abortadas pela presença dos seguranças e placas de advertência (e essas placas não param de surgir, como pude verificar em visita posterior, inibindo e constrangendo a interação do público com as obras, uma curiosa e involuntária colaboração da organização para a eficácia do tema).
Olho pelos vidros do prédio de Niemeyer e observo o parque verde tranquilo, tendo ao fundo as torres da cidade. Estou novamente na bienal, percorrendo um dos corredores laterais. Apartado do burburinho intenso do mundo do trabalho, o pavilhão se assemelha a um imenso e acético cubo branco.
O problema que é enfocar a cidade apartando seus elementos mais característicos -buzinas, fumaça dos escapamentos, congestionamentos, assaltos no sinal da esquina...- não escapou ao curador-geral da bienal, o alemão Alfons Hug, que aponta os riscos latentes de uma alternativa antípoda: "Não se trata, aqui, de arte no espaço público, que, no caso de São Paulo, sempre corre o risco de desaparecer no vórtice do "urban sprawl" sem chamar a atenção".



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