São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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Cidade

Recordo-me imediatamente do meu fracasso em tentar descobrir, alguns dias antes, as intervenções urbanas da exposição "Artecidadezonaleste". "Sob as condições da metrópole", prossegue Hug, "a arte não concorre apenas com a arquitetura mas também com todas as formas de cacofonia e contaminação visual". Dilema da arte que acorda de seu sonho moderno de autonomia, que precisa novamente de temas e narrativas como os corpos vivos precisam de ar e água para sobreviver.
Observo belas e imensas pinturas, com baixos-relevos conquistados com o acúmulo de acrílico colorido sobre a tela (Nabil Nahas). Parecem formas naturais inorgânicas. Nostalgia da mimese, quando era evidente o papel da arte. Agora a arte quer falar da cidade, mas para falar exatamente o quê? As mazelas da vida urbana constituem a preocupação central de muitas disciplinas -urbanismo, sociologia, economia, psicologia de massa, planejamento urbano... Os arquitetos, com a modalidade cada vez mais em voga do projeto urbano, tentam ordenar a balbúrdia.

Pensamento único
Segundo críticos ferozes, é a face visível do novo consenso forjado pelo capital, a erradicação dos espaços públicos com a conversão das cidades em suportes da reprodução e da acumulação. Cidade do pensamento único, em que os desejos são satisfeitos com as quimeras do consumo compulsivo, do prazer sensual e do sonho escapista. A curadoria mostra-se convicta sobre o papel do artista contemporâneo: "As colônias da arte são locais de segregação, ilhas de resistência num mar de uniformidade".
E completa Alfons Hug: "O olhar incorruptível do artista obriga-nos a ver a presença das imagens e das histórias recalcadas". Visão edificante da arte e do artista, tributária da longa tradição. Menos otimista, lembro que o sucesso de uma bienal é medido pela audiência, afinal os patrocinadores precisam ficar satisfeitos e as futuras edições precisam ser agendadas.
Continuo minha caminhada e constato o estado de vigília dos artistas. Vejo um parque de diversões desabitado, na escala reduzida da maquete e no suporte ampliado da fotografia -"Italpark", diz o letreiro (Dino Bruzzone). Outra maquete simula a cidade de Kinshasa do terceiro milênio, um esplendoroso parque de diversões das corporações multinacionais, com as torres institucionais altíssimas em formas roubadas de Las Vegas. Néon, fantasia e sonho, solapando o que nos resta de razão.
No resguardo tranquilo do pavilhão da bienal, cubos silenciosos denunciam o enclausuramento, democrático em seu desrespeito pelas fronteiras nacionais: a Kommunehaus, casa transparente de vidro e acrílico (Carsten Höller); a moradia mínima proletária (Pablo Rivera); a prisão quebrada ao meio (Michael Elmgren e Ingar Dragset).
Cubos gélidos que contrastam com os sensuais interiores de motéis, promessa de grandes prazeres (Lucinda Devlin). Dubiedade do processo de globalização. A homogeneização em curso, catapultada pelo capitalismo de última geração, espraia por todo o planeta os mesmos letreiros, propagandas, máquinas e edifícios espelhados, suportes artificiais em que brotam vidas coletivas diversificadas, com seus hábitos, costumes, vestimentas e línguas.
O mesmo fotógrafo registra a impessoalidade universalista da baía de Tóquio e os característicos barcos-moradia no rio Vermelho de Hanói (Doug Hall). A clássica e já em desuso distinção entre civilização artificial e cultura orgânica parece ganhar, com essa cena finissecular tardia, um sopro de sobrevida. Artistas das mais diversas localidades do globo, munidos de máquinas fotográficas, câmeras de vídeo e computadores fabricados pelas grandes corporações multinacionais, ganham aqui a possibilidade de expressar sua visão de mundo regional.
O curador geral nos diz que "a Bienal de São Paulo é a grande antípoda do eurocentrismo nas artes plásticas", sonho de um deslocamento do eixo político-cultural que deixa à mostra o grande pesadelo do mundo contemporâneo: a hegemonia econômica do seleto grupo dos países ricos, cerne do desequilíbrio da globalização. A subversão estética buscada em diversos trabalhos é decorrente dessa assimetria, como é o caso do "Jardim dos Frutos Proibidos" (Charles Juhasz-Alvarado), em que personagens latinos tentam contrabandear frutas tropicais ludibriando burocratas alfandegários norte-americanos instalados num surreal e improvável aeroporto de cores berrantes.
Povos, formas expressivas, verdades diferentes: a impressionante massa humana fotografada em Mahha Kumbh Mela, Índia (Armin Linke), participam de uma festa ou de uma migração forçada por alguma tragédia política? Ocorre-me o quão tênue é a linha que separa a diversidade da relatividade cultural, o risco sempre eminente de desistirmos do homem imaginado pela tradição humanista, de justificarmos as barbáries pelas diferenças inatas.

Terceira via?
Teríamos uma terceira via entre denunciar ou justificar a barbárie? Violência contra a cultura, como a destruição do Buda gigante no Afeganistão (Arthur Omar). Violência contra o homem, como o decreto oficial que permitiu que 3,5 milhões de indivíduos fossem removidos à força de suas casas na África do Sul (David Goldblatt). Constatação dos liames invisíveis em fotos impecáveis: a magnífica reconstrução da Potsdamer Platz projetada por Renzo Piano (Michael Wesely) é irmã xifópaga dos terroristas atemorizando a América (Nancy Davenport). Perplexidade diante dos valores: criticamos o eurocentrismo, mas nos aferramos a uma de suas tradições mais nobres para balizar nossos juízos.
Continuo meu percurso pela Bienal, já desobrigado da reflexão solicitada e com juízo inicial devidamente revisto. Antes do final da jornada, algumas obras me levam à introspecção: corredores kafkianos onde a transcendência é inimaginável e a claustrofobia uma constante (Stan Douglas); os mundos paralelos possíveis e imagináveis presentes nos delicados e surpreendentes entalhes feitos em resmas de papel branco dispostos cartesianamente no solo (Marco Maggi); o simulacro fugidio de um mundo incompreensível projetado invertido na câmera obscura, reverência singela à caverna de Platão, constatação da irreversível subjetividade de nossa visão de mundo (Philippe Gruenberg e Pablo Hare); alienados acorrentados, surpreendentemente familiares, dispostos em círculo que se fecha com minha presença (Chien-Chi Chang); o destino individual e as escolhas definitivas, presentes nas quatro portas que se oferecem para mim (Gong Xin Wang); as recordações liberadas pelo som de um jogo já jogado, enquanto a mesa, raquetes e bolinhas permanecem inertes, silenciosas em suas caixas mortuárias de acrílico (Nelson Leirner).
Viagem interior, sensível e emotiva, que culmina com o canto ingênuo e entusiasmado dos campos de futebol, que vaza rouca e sufocada de uma das salas fechadas (Oriana Duarte).
Ao percorrer lentamente o corredor escuro, me assoma uma longínqua memória da infância. Meu sorriso farto, meu pai ao lado, a fila de torcedores uniformizados, a iminência do jogo há muito aguardado. Felicidade indescritível, que julgava perdida irremediavelmente.


Abilio Guerra é professor de arquitetura da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e editor de
www.vitruvius.com.br




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