São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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A contradição do crítico

Um painel da situação artística brasileira entre os séculos 19 e 20

Impressões de um Amador - Textos Esparsos de Crítica (1882- 1909)
Luís Gonzaga Duque Estrada
Júlio Castañon Guimarães e Vera Lins (orgs.)
Editora UFMG/Fundação Casa de
Rui Barbosa (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
385 págs., R$ 36,00

TADEU CHIARELLI

Gonzaga Duque, o principal crítico de arte brasileira, entre os séculos 19 e 20, assim começa um de seus artigos, de 1904: "Neste turbulento mau tempo do nosso viver, deve considerar-se feliz quem possuir quatro paredes de um gabinete (...) onde se homizie das estouvices e rezingas dos desvairados por gloríolas e riquezas. E mais feliz será, nesse obscuro remanso, embora despido de objetos raros e comodidades voluptuosas, quem conseguir consolo e revigoramento d'espírito com demorado olhar sobre luxuosas páginas da "Deutsch Kunst und Dekorations" e do "Studio", ao tempo em que a cigarrilha, pendente do lábio, fumega preguiçosa e aromática. É realmente um conforto a contemplação desses documentos da grande vida espiritual dos fortes, claros, sérios povos da Civilização, que levantam sobre velhas formas e velhos preceitos, a nova Arte do século 20".
Aqui fica evidente a situação delicada vivida pelo crítico e por quem, no Brasil, se interessasse por arte e cultura no início do século 20: o sujeito tinha que considerar-se feliz pelo menos por possuir quatro paredes onde pudesse, ao sabor da fumaça da cigarrilha e do exame das então revistas internacionais de arte, contemplar a vida espiritual dos "fortes, claros, sérios povos da Civilização" que reestruturavam a tradição para configurar a nova arte do século que se iniciava.
Frente, então, a todas essas transformações, passíveis de serem conferidas nas páginas da "Deutsch Kunst und Dekoration", do "Studio" e "Il Secolo 20", nós brasileiros apenas poderíamos lançar olhares atônitos: "Sem a compreender bem, porque ainda estão conosco o refratarismo dos bugres, a obtusidade dos africanos e a casmurrice dos nossos maiores...".
A tônica da maioria dos artigos de Gonzaga Duque, reunidos em "Impressões de um Amador", será justamente esta: o constante oscilar entre a idealização de uma arte e de uma cultura superiores, vindas da Europa e dos EUA, e a consciência da estrutural (porque "mestiça") incapacidade brasileira de dialogar em igualdade com a modernidade internacional daqueles povos claros, sérios e fortes, fomentadores da Civilização com "c" maiúsculo...
Para Gonzaga Duque, nesses textos que não se pretendem "exemplares" de sua trajetória como crítico -porque aqueles que poderiam sê-lo, já teriam sido publicado em coletâneas anteriores (1)-, a questão da arte e da cultura brasileiras parece surgir, na verdade, como um problema ainda a ser engendrado como tal, a ser construído em toda sua complexidade no cotidiano comezinho dos artigos para jornais, revistas de variedades ou artigos de fundo para efêmeras revistas de arte.
E é justamente no fato de "Impressões de um Amador" se caracterizar como uma coletânea de textos "menores" -com assuntos que vão de perfis de Pedro Américo a resenhas de exposições corriqueiras, memórias do início da carreira do crítico e texto sobre a "graça feminina na pintura"-, justamente por ser tão eclético e estar tão à mercê das circunstâncias do que de melhor sobrou dos textos do crítico ainda a serem publicados, que reside todo o interesse e importância deste livro.

O leitor frívolo
Em "Impressões de um Amador", percebemos o grave autor de "A Arte Brasileira" (Mercado de Arte, 1995) ou mesmo de "Mocidade Morta" (Casa de Rui Barbosa, 1995) -em vez de teorizar sobre a função e os objetivos da arte-, tentar, de maneira mundana, chamar a atenção do frívolo e desinteressado leitor de um periódico qualquer para as possibilidades de ornamento que a obra de arte poderia assumir.
Como esse seu comentário sobre telas de Augusto Off: "O "Théophile Gautier", propriedade do falecido Artur de Oliveira, e o "Dumas Filho", que está no "atelier" do artista, são dous magníficos cartões de "boudoir", próprios para serem pendurados num muro "gris perle", entre miniaturas de Boldini e vasos etruscos de porcelana de Sèvres, por cima do encosto de um divã de seda, "vieil or" e defronte de um espelho de cristal da Boêmia, emoldurado em charão negro de Nanquim...".
Ou então esse seu comentário sobre alguns trabalhos de Aurélio de Figueiredo: "E com a mesma facilidade ele pinta um quadro de gênero ou um quadro histórico. As três fantasias -o mesmo modelo, sempre loiro e de vestido cor-de-rosa- são delicados ornamentos de "boudoir", caprichosamente pintados, com uma delicadeza, uma elegância, uma distinção originais de desenho. Como é "chic" aquela graciosa loira...".
Para que grandes teorizações sobre a arte brasileira, grandes projetos para o futuro da arte nacional (visíveis em "A Arte Brasileira" e "Mocidade Morta"), se o público local não parecia minimamente interessado nos assuntos ligados às artes plásticas?
Essa foi, talvez, a grande contradição vivida por Gonzaga Duque como crítico de arte, a grande contradição ainda vivida por todos os críticos de arte no país...
Numa atitude bastante influenciada pelas vertentes inovadoras dos movimentos de inserção da arte no cotidiano das populações das grandes cidades (muito comuns na passagem do século 19 para o 20), Gonzaga Duque, em alguns dos textos publicados na coletânea citada, chama a atenção para a necessidade de trazer a arte para o cotidiano da população carioca, quer por meio do incentivo às iniciativas de promover concursos para projetos de selos assinados por nomes extremamente significativos da arte de então (Eliseu Visconti, Henrique Bernardelli e outros), quer pelo incentivo ao embelezamento dos parques e das avenidas da cidade do Rio de Janeiro.
Se, no primeiro caso, o autor não via possibilidades de sucesso imediato, já no segundo os resultados podiam ser percebidos nos principais espaços da cidade, logo após as reformas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos na antiga capital federal.
No entanto mesmo as relações de Gonzaga Duque com a cidade remodelada e transformada -pelo menos em sua parte central- numa espécie de capital européia jogada no meio do ambiente tropical, não eram tranquilas. Contra a atitude modernizadora, higienizadora do prefeito, parecia resistir um atavismo "caturra" da população local, mestiça e ignorante, incapaz de se adequar aos novos ditames arquitetônicos e urbanísticos propostos pela reforma de Pereira Passos. Tal posicionamento fica evidente em seu artigo "Casas Capadócias".
O autor compara um tipo de habitação popular, surgido no Rio de Janeiro -cidade assolada por problemas habitacionais seríssimos, após a reforma Passos-, habitações "raquíticas, de aparência espremida, como tuberculosas", ao "capadócio carioca", ou seja, Gonzaga Duque estabelece uma relação indissociável entre a habitação popular carioca e o carioca comum, a "pobre titica", que Deus teria colocado no mundo -nas palavras de Chico Buarque de Holanda, em "Partido Alto".
É essa a comparação do crítico: "O que há num de raquítico, há noutra de franzino; nesse, o meneio tem desengonços pacholas de símia ancestralidade; naquela, a forma guarda-lhe a mesma proporção desajeitada; o tipo é molengo e pelintra, não tem o arcabouço firme, a postura sólida, e se arreia com bugigangas dum mau gosto irritante, cilhas complicadas, de cores vivas e túmidas de bocetas pra o relógio, para os níqueis, para os cigarros, cadeiras pingenteadas de escapulários e lembranças, gravatas sanguíneas a drapejar pontas soltas, uma vestidura flácida, com larguezas de borjaca, que lhe dança no escanifro bamboleante da carcaça; a casa retém-lhe a figura, parece sem resistência para aprumar-se, encosta-se às outras em procura de apoio, e pretende-se graciosa com seus arremedos decorativos.
Contra o sonho tornado realidade da reforma de Pereira Passos, o pesadelo da realidade de uma cidade fundamentalmente capadócia, infestada de capadócios de "símia ancestralidade", obrigando nosso crítico de arte a tornar-se um crítico da cultura muito peculiar, a perambular por aqui, num lugar repleto de tipos pelintras, a sonhar com os feitos e com a vida espiritual "dos fortes, claros, sérios povos da Civilização...".


Nota
1. "Graves e Frívolos", Lisboa, Clássica, 1910. Segunda edição, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, Sette Letras, 1997. "Contemporâneos", Rio de Janeiro, Typographia Benedicto de Souza, 1929.

Tadeu Chiarelli é professor de história da arte brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP.




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