|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A contradição do crítico
Um painel da situação artística brasileira entre os séculos 19 e 20
Impressões de um Amador -
Textos Esparsos de Crítica
(1882- 1909)
Luís Gonzaga Duque Estrada
Júlio Castañon Guimarães e Vera Lins (orgs.)
Editora UFMG/Fundação Casa de
Rui Barbosa (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
385 págs., R$ 36,00
TADEU CHIARELLI
Gonzaga Duque, o principal crítico de
arte brasileira, entre os séculos 19 e 20, assim começa um de seus artigos, de 1904:
"Neste turbulento mau tempo do nosso
viver, deve considerar-se feliz quem possuir quatro paredes de um gabinete (...)
onde se homizie das estouvices e rezingas
dos desvairados por gloríolas e riquezas.
E mais feliz será, nesse obscuro remanso,
embora despido de objetos raros e comodidades voluptuosas, quem conseguir
consolo e revigoramento d'espírito com
demorado olhar sobre luxuosas páginas
da "Deutsch Kunst und Dekorations" e do
"Studio", ao tempo em que a cigarrilha,
pendente do lábio, fumega preguiçosa e
aromática. É realmente um conforto a
contemplação desses documentos da
grande vida espiritual dos fortes, claros,
sérios povos da Civilização, que levantam
sobre velhas formas e velhos preceitos, a
nova Arte do século 20".
Aqui fica evidente a situação delicada
vivida pelo crítico e por quem, no Brasil,
se interessasse por arte e cultura no início
do século 20: o sujeito tinha que considerar-se feliz pelo menos por possuir quatro paredes onde pudesse, ao sabor da fumaça da cigarrilha e do exame das então
revistas internacionais de arte, contemplar a vida espiritual dos "fortes, claros,
sérios povos da Civilização" que reestruturavam a tradição para configurar a nova arte do século que se iniciava.
Frente, então, a todas essas transformações, passíveis de serem conferidas nas
páginas da "Deutsch Kunst und Dekoration", do "Studio" e "Il Secolo 20", nós
brasileiros apenas poderíamos lançar
olhares atônitos: "Sem a compreender
bem, porque ainda estão conosco o refratarismo dos bugres, a obtusidade dos
africanos e a casmurrice dos nossos
maiores...".
A tônica da maioria dos artigos de
Gonzaga Duque, reunidos em "Impressões de um Amador", será justamente esta: o constante oscilar entre a idealização
de uma arte e de uma cultura superiores,
vindas da Europa e dos EUA, e a consciência da estrutural (porque "mestiça")
incapacidade brasileira de dialogar em
igualdade com a modernidade internacional daqueles povos claros, sérios e fortes, fomentadores da Civilização com "c"
maiúsculo...
Para Gonzaga Duque, nesses textos que
não se pretendem "exemplares" de sua
trajetória como crítico -porque aqueles
que poderiam sê-lo, já teriam sido publicado em coletâneas anteriores (1)-, a
questão da arte e da cultura brasileiras
parece surgir, na verdade, como um problema ainda a ser engendrado como tal, a
ser construído em toda sua complexidade no cotidiano comezinho dos artigos
para jornais, revistas de variedades ou artigos de fundo para efêmeras revistas de
arte.
E é justamente no fato de "Impressões
de um Amador" se caracterizar como
uma coletânea de textos "menores"
-com assuntos que vão de perfis de Pedro Américo a resenhas de exposições
corriqueiras, memórias do início da carreira do crítico e texto sobre a "graça feminina na pintura"-, justamente por
ser tão eclético e estar tão à mercê das circunstâncias do que de melhor sobrou
dos textos do crítico ainda a serem publicados, que reside todo o interesse e importância deste livro.
O leitor frívolo
Em "Impressões de um Amador", percebemos o grave autor de "A Arte Brasileira" (Mercado de Arte, 1995) ou mesmo
de "Mocidade Morta" (Casa de Rui Barbosa, 1995) -em vez de teorizar sobre a
função e os objetivos da arte-, tentar, de
maneira mundana, chamar a atenção do
frívolo e desinteressado leitor de um periódico qualquer para as possibilidades
de ornamento que a obra de arte poderia
assumir.
Como esse seu comentário sobre telas
de Augusto Off: "O "Théophile Gautier",
propriedade do falecido Artur de Oliveira, e o "Dumas Filho", que está no "atelier"
do artista, são dous magníficos cartões de
"boudoir", próprios para serem pendurados num muro "gris perle", entre miniaturas de Boldini e vasos etruscos de porcelana de Sèvres, por cima do encosto de
um divã de seda, "vieil or" e defronte de
um espelho de cristal da Boêmia, emoldurado em charão negro de Nanquim...".
Ou então esse seu comentário sobre alguns trabalhos de Aurélio de Figueiredo:
"E com a mesma facilidade ele pinta um
quadro de gênero ou um quadro histórico. As três fantasias -o mesmo modelo,
sempre loiro e de vestido cor-de-rosa-
são delicados ornamentos de "boudoir",
caprichosamente pintados, com uma delicadeza, uma elegância, uma distinção
originais de desenho. Como é "chic" aquela graciosa loira...".
Para que grandes teorizações sobre a
arte brasileira, grandes projetos para o
futuro da arte nacional (visíveis em "A
Arte Brasileira" e "Mocidade Morta"), se
o público local não parecia minimamente
interessado nos assuntos ligados às artes
plásticas?
Essa foi, talvez, a grande contradição vivida por Gonzaga Duque como crítico de
arte, a grande contradição ainda vivida
por todos os críticos de arte no país...
Numa atitude bastante influenciada pelas vertentes inovadoras dos movimentos
de inserção da arte no cotidiano das populações das grandes cidades (muito comuns na passagem do século 19 para o
20), Gonzaga Duque, em alguns dos textos publicados na coletânea citada, chama a atenção para a necessidade de trazer
a arte para o cotidiano da população carioca, quer por meio do incentivo às iniciativas de promover concursos para
projetos de selos assinados por nomes
extremamente significativos da arte de
então (Eliseu Visconti, Henrique Bernardelli e outros), quer pelo incentivo ao embelezamento dos parques e das avenidas
da cidade do Rio de Janeiro.
Se, no primeiro caso, o autor não via
possibilidades de sucesso imediato, já no
segundo os resultados podiam ser percebidos nos principais espaços da cidade,
logo após as reformas empreendidas pelo
prefeito Pereira Passos na antiga capital
federal.
No entanto mesmo as relações de Gonzaga Duque com a cidade remodelada e
transformada -pelo menos em sua parte central- numa espécie de capital européia jogada no meio do ambiente tropical, não eram tranquilas. Contra a atitude modernizadora, higienizadora do
prefeito, parecia resistir um atavismo
"caturra" da população local, mestiça e
ignorante, incapaz de se adequar aos novos ditames arquitetônicos e urbanísticos
propostos pela reforma de Pereira Passos. Tal posicionamento fica evidente em
seu artigo "Casas Capadócias".
O autor compara um tipo de habitação
popular, surgido no Rio de Janeiro -cidade assolada por problemas habitacionais seríssimos, após a reforma Passos-,
habitações "raquíticas, de aparência espremida, como tuberculosas", ao "capadócio carioca", ou seja, Gonzaga Duque
estabelece uma relação indissociável entre a habitação popular carioca e o carioca comum, a "pobre titica", que Deus teria colocado no mundo -nas palavras
de Chico Buarque de Holanda, em "Partido Alto".
É essa a comparação do crítico: "O que
há num de raquítico, há noutra de franzino; nesse, o meneio tem desengonços pacholas de símia ancestralidade; naquela, a
forma guarda-lhe a mesma proporção
desajeitada; o tipo é molengo e pelintra,
não tem o arcabouço firme, a postura sólida, e se arreia com bugigangas dum
mau gosto irritante, cilhas complicadas,
de cores vivas e túmidas de bocetas pra o
relógio, para os níqueis, para os cigarros,
cadeiras pingenteadas de escapulários e
lembranças, gravatas sanguíneas a drapejar pontas soltas, uma vestidura flácida, com larguezas de borjaca, que lhe
dança no escanifro bamboleante da carcaça; a casa retém-lhe a figura, parece
sem resistência para aprumar-se, encosta-se às outras em procura de apoio, e
pretende-se graciosa com seus arremedos decorativos.
Contra o sonho tornado realidade da
reforma de Pereira Passos, o pesadelo da
realidade de uma cidade fundamentalmente capadócia, infestada de capadócios de "símia ancestralidade", obrigando
nosso crítico de arte a tornar-se um crítico da cultura muito peculiar, a perambular por aqui, num lugar repleto de tipos
pelintras, a sonhar com os feitos e com a
vida espiritual "dos fortes, claros, sérios
povos da Civilização...".
Nota
1. "Graves e Frívolos", Lisboa, Clássica, 1910. Segunda edição, Rio de Janeiro, Fundação Casa de
Rui Barbosa, Sette Letras, 1997. "Contemporâneos", Rio de Janeiro, Typographia Benedicto de
Souza, 1929.
Tadeu Chiarelli é professor de história da arte
brasileira na Escola de Comunicação e Artes da
USP.
Texto Anterior: Metal colorido Próximo Texto: Beethoven plural Índice
|