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Beethoven plural
Música e Política - A "Nona" de Beethoven
Esteban Buch
Tradução: Maria Elena Ortiz Assumpção
Edusc (Tel. 0/xx/14/235-7111)
396 págs., R$ 39,00
JORGE COLI
A leitura de "Música e Política: a "Nona" de Beethoven",
escrito pelo argentino Esteban Buch, é exigente. Não que
sua exposição seja obscura, mas o estilo é seco e concentrado, encerrando um levantamento de informações que
invade os parágrafos. É preciso não desencorajar, porém,
mesmo diante de alguns tropeços na tradução. O livro
traz uma forma inteligente de musicologia, inserindo-a
na história política e na história da cultura.
Mas traz também a dificuldade de oferecer, numa resenha, o conteúdo de seus capítulos, tão estribados em informações minuciosas e num raciocínio detalhado. Qualquer resumo lhe fará injustiça, pois não poderá dar uma
idéia verdadeira da densidade contida em cada página.
Resta que as análises cerradas do livro revelam-se exemplares, num sentido preciso: elas podem servir de modelo
para outras empreitadas ambiciosas do mesmo gênero.
O autor examina as funções musicais e simbólicas que
tomou a "Nona Sinfonia", de Beethoven, desde sua criação, em 1824. Não deixa nada escapar, num levantamento
mais que completo. A "Nona Sinfonia" brota de um século 18 que inventa a música política moderna.
O início parte da Inglaterra, onde Haendel terá um papel definitivo, onde a música se erige como metáfora da
política, mais ainda, como agente congregante e onde
também se assiste à aparição dos hinos nacionais. Esse
fluxo adquirirá nova força e nova inflexão com a Revolução Francesa, suas necessidades exaltadas, suas solenidades cuidadosamente organizadas pelo pintor David. Brota, então, a "Sinfonia Coral", preparada por esse passado
recente.
A segunda parte do livro, mais longa, consagra-se à "recepção política da "Ode à Alegria'". Beethoven nacional,
europeu, universal; Beethoven e o nazismo; Beethoven
nazista; o retrato firme de Romain Rolland; Beethoven
marxista -os musicólogos Jean e Brigitte Massin escrevendo: "O que é seguro é que a seus próprios olhos (os de
Beethoven) o fator social e econômico, mesmo quando
não é o mais importante, é sempre aquele que permite a
coagulação nesse conjunto que chamam Destino e que se
opõe à liberdade". Beethoven e Adorno, que renega como
ideologia, como "cultura afirmativa", a "Nona Sinfonia",
para exaltar a pureza incólume dos últimos quartetos.
Beethoven e Kubrick. Beethoven e a música do século 20.
E, está claro, também Beethoven e as formas simbólicas
de libertação recentes -as mais espetaculares sendo a
presença da "Nona Sinfonia" na queda do Muro de Berlim e sua execução, em Sarajevo, no ano de 1996, sob a direção de Yehudi Menuhin.
O ensaio termina com um apelo à consciência do acréscimo extramusical à obra beethoveniana (ou "beethoviana", como curiosamente grafa a tradução), diante da pergunta: "Sobre que basear o conteúdo moral da música de
Beethoven? (...) Ao longo deste ensaio, talvez tenha ficado
claro que tal valor moral não pode ser baseado na própria
linguagem musical". E mais: "É preciso, realmente, aceitar o princípio que a arte é a garantia última da moralidade do empreendimento humano? E nesse caso, é preciso
sempre tomar Beethoven como testemunho desse fato?
Beethoven contra Auschwitz, contra a Guerra do Vietnã,
contra o Muro de Berlim, contra a guerra na ex-Iugoslávia, contra os massacres por vir, seja; mas somente durante o prosseguimento dessa crítica da tradição que permanece a tarefa principal, se se pretende que a "Nona Sinfonia", vestígio de um mundo cada vez mais longínquo, nos
fale ainda de uma maneira significativa -ou que estejamos prontos para aceitar a idéia que um dia -por que
não?- ela se torne muda sem que isso seja, necessariamente, uma catástrofe".
Não seria uma catástrofe talvez na perspectiva de uma
composição despojada das atribuições que arrastou ao
longo do tempo (se isso fosse possível, mas é verdade que
o autor joga com o argumento de uma distância temporal
cada vez mais acentuada). Ela voltaria assim a ser "puramente" música. Até que ponto, porém, carregada que
vem de versos e de um passado que o próprio livro tratou
de desvendar? Talvez, apenas, quando, e se, ela se transformar num fóssil arqueológico.
Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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