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A identidade da marca
Sem Logo - A Tirania das
Marcas em um
Planeta Vendido
Naomi Klein
Tradução: Ryta Vinagre
Record (Tel. 0/xx/21/2585-2047)
544 págs., R$ 50,00
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
Em 1990, o filósofo Gilles Deleuze escreveu em "Post-Scriptum
Sobre as Sociedades de Controle":
"Trata-se de um capitalismo de
sobreprodução. Não compra
mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra
produtos acabados ou monta peças destacadas. O que ele quer
vender são serviços e o que quer
comprar são ações. Já não é um
capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é,
para a venda ou para o mercado.
(...) O serviço de vendas tornou-se
o centro ou a "alma" da empresa.
Informam-nos que as empresas
têm alma, o que é efetivamente a
notícia mais aterradora do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social e forma
a raça impudente de nossos senhores".
A aguda percepção de Deleuze
sobre as transformações de fundo
no capitalismo contemporâneo
impõe-se com tamanha força durante a leitura de "Sem Logo" que
parece quase impossível não ver
boa parte do livro como sua involuntária ilustração. Isso, porém,
não diminui em nada o mérito do
trabalho de Naomi Klein, publicado dez anos depois -até porque
ao panorama da expansão estratégica das marcas ela contrapõe a
disseminação das lutas que se desenvolveram durante toda a década contra as corporações e que
ainda não haviam despontado no
cenário político internacional
quando o filósofo escreveu o texto
acima.
Trata-se de um livro militante,
escrito em linguagem jornalística,
que deve ser lido na esteira do
movimento antiglobalização,
portanto à luz das revoltas de
Seattle, Montreal, Washington,
Gênova e das reuniões do Fórum
Social Mundial de Porto Alegre.
Como esclarece a autora, na
"Introdução": "O título "Sem Logo" não deve ser interpretado como um slogan literal (como em
"Chega de Logomarcas!") ou como um logo pós-logo (já existe
uma linha de roupas "No Logo",
ou assim me disseram). Em vez
disso, é uma tentativa de apreender uma atitude anticorporação
que vejo surgir em muitos jovens
militantes. Este livro apóia-se em
uma hipótese simples: quando
mais pessoas descobrirem os segredos das grifes da teia logo-mundial, a revolta estimulará o
próximo grande movimento político, uma grande onda de oposição dirigida contra corporações
transnacionais, particularmente
aquelas com marcas muito conhecidas".
Agentes de significado
A jornalista canadense concebeu seu livro em quatro blocos:
"Sem Espaço", "Sem Opções",
"Sem Empregos" e... "Sem Logo".
Os três primeiros descrevem criticamente a formação de uma rede
tentacular de marcas que ambiciona colonizar o planeta, conquistando os corações e as mentes
por meio de sua onipresença e valorização incessante; o último
procura mapear as manifestações
que, nascendo nos "campi" e nas
comunidades, nas ruas ou na cena cultural, nos tribunais ou na
internet, no Primeiro ou no Terceiro mundos, fizeram da rebeldia contra as marcas e da atitude
anticorporação o vetor de expressão da resistência à globalização
neoliberal. Como se Klein pretendesse primeiro nos fazer ver a força específica do capitalismo na
era do marketing, para depois esboçar as linhas de contra-ataque.
Vamos, porém, por partes. Os
capítulos de "Sem Espaço" narram o deslocamento de foco da
fábrica para a empresa, da fabricação para a promoção de vendas
e principalmente das coisas-produtos para as imagens de marca.
Vários autores já apontaram a importância socioeconômica desse
processo de "desmaterialização"
e dele tiraram as mais variadas
conclusões. Aqui, entretanto, interessa saber como a Reebok, a
Disney, a Levi's, a Calvin Klein ou
a Body-Shop passam de fabricantes de produtos a "agentes de significado", já que o "branding"
consiste em desenvolver a espiritualidade do produto como encarnação da transcendência corporativa.
Como escreve Naomi Klein: "Se
as marcas são "significado" e não
características de produto, então
a maior proeza do "branding" surge quando as empresas fornecem
a seus consumidores oportunidades não apenas de comprar mas
de experimentar plenamente o
significado de sua marca". Assim,
num mundo completamente desencantado e dessacralizado, a
mercadoria emerge efetivamente
como fetiche, não só no sentido
conferido por Marx, mas também
como uma aura que será louvada
pelas corporações e adorada pelos
consumidores.
Culto da marca
Apagando as fronteiras entre
comércio, religião e cultura, o
marketing promove o culto obsessivo da marca, cuja presença se
revela não só na paisagem urbana
ou nas telas eletrônicas mas também na música, nos esportes, nos
eventos comunitários e escolares,
e até mesmo nos banheiros das
universidades! Tanto a esfera pública quanto a privada se vêem
portanto crescentemente invadidas e remodeladas, todo espaço
atual ou virtual torna-se passível
de apropriação, inclusive o próprio corpo do consumidor, a ponto de o jovem empresário da internet, Carmine Collection, assim
justificar sua decisão de tatuar o
logo da Nike no umbigo: "Acordo
toda manhã, pulo para o chuveiro, olho para o símbolo e ele me
sacode para o dia. É para me lembrar a cada dia de como tenho de
agir, isto é, "Just do It'".
Com efeito, quando o "branding" passa a imaginar no lugar
do inconsciente, o conceito de cidadão já foi absorvido pelo de
consumidor e o de indivíduo é
desconstruído e recombinado,
lendo como as corporações "processam" as questões da identidade pessoal e da diversidade étnica
e sociocultural, parece que na
perspectiva do capitalismo global
a única identidade que ainda faz
sentido e deve ser preservada é a
identidade da marca.
A ocupação dos espaços é
acompanhada de um encolhimento progressivo das alternativas. No bloco "Sem Opções", a
autora explora como as corporações combatem as marcas concorrentes e asseguram sua onipresença por meio do sistema de
franquias (que leva à canibalização dos pontos de venda), das fusões (que tornam imbatível a sinergia das empresas gigantes) e
da censura corporativa (que não
tolera um arranhão na imagem
das marcas, no momento mesmo
em que pratica a marcação de
nossos corpos e mentes). Basta
lembrar que o McDonald's travou
uma batalha de 26 anos contra
um homem chamado Ronald
McDonald, cujo McDonald's Familly Restaurant, em uma minúscula cidade em Illinois, funcionava desde 1956...
O terceiro bloco, "Sem Emprego", é dedicado ao descarte da fábrica, à flexibilização do trabalho
e à transformação dos criadores
de emprego em criadores de riqueza. Em suma, aqui Naomi
Klein trata da degradação das
condições de produção e de vida
dos trabalhadores como a outra
face da glorificação das marcas e
supermarcas. Não há mais valor
em produzir coisas: o valor é agregado pela pesquisa, pela inovação
e pelo marketing.
O toque de Midas
Como "imagem é tudo", as empresas terceirizam alegremente a
produção, concentrando-se na
dimensão incorpórea. Uma incursão da jornalista em Cavite, na
Indonésia, permite então descobrir como os tênis, computadores, roupas etc. são produzidos
em condições subumanas, nas
chamadas zonas de livre comércio -hoje 27 milhões de pessoas
vivem e trabalham nesses bolsões
do Terceiro Mundo que constituem o paraíso da "globalização
de risco zero" e o inferno da superexploração da mão-de-obra.
Trabalho infantil, violência,
achatamento salarial, horas extras, medo e ameaça constante de
fechamento das fábricas, segregação: vale tudo para fazer com que
um tênis vendido por US$ 120 na
Nike Town de São Francisco custe
US$ 2 para ser produzido na Indonésia; ou que a camiseta Pocahontas da Wal-Mart se equipare a
quase cinco dias de salário dos
operários que a confeccionaram
no Haiti. Na outra ponta, os executivos globais que consumam o
processo de desmaterialização
são contaminados pelo "toque de
Midas" que o halo das marcas
lhes dá e se tornam eles próprios
"superstars".
Finalmente, "Sem Logo" discute a contestação às marcas e às
corporações. Primeiro a esperta
"culture jamming", que consiste
na apropriação indébita dos logos, seja desvirtuando seu significado, seja desrecalcando toda a
sua perversidade latente. A ela se
acrescentam a reivindicação de
espaços não-colonizados, expressa pelo bem-humorado movimento de resgate das ruas e as
campanhas de ataque e boicote às
marcas, particularmente à Nike, à
Shell e ao McDonald's, cujas histórias são relatadas no livro.
Questionadas e pressionadas, as
corporações tentaram preservar
sua imagem formulando "códigos de ética empresarial". Mas já
era tarde demais: no final da década o conflito extrapolara para
além da marca, somara-se a outros processos e lutas, engrossando o movimento de resistência à
globalização.
Agora os sem-terra, os índios de
Chiapas, os militantes de todas as
causas, os ambientalistas, as minorias do Primeiro e do Terceiro
mundo formam uma "coalizão de
coalizões" para afirmar que "um
outro mundo é possível". Até que
ponto tal movimento configura a
existência de alternativa(s) à globalização neoliberal é, evidentemente, uma questão em aberto.
De todo modo, algo está acontecendo. Otimista, Naomi Klein arrisca: "Deve ter alguma coisa,
acho eu, com a própria definição
de revolução".
Laymert Garcia dos Santos é professor
de sociologia na Universidade Estadual
de Campinas.
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